AMANDA GURGEL: “A DOENÇA DA EDUCAÇÃO É A PRECARIEDADE” - Blog A CRÍTICA

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

AMANDA GURGEL: “A DOENÇA DA EDUCAÇÃO É A PRECARIEDADE”



A rotina da professora que calou os deputados do Rio Grande do Norte, ao denunciar o caos da educação pública no estado, não é diferente da dos demais educadores de todo o país. Foi essa semelhança que fez milhões de pessoas se identificarem com seu discurso. O dia a dia cansativo e estressante, com duas ou três jornadas em escolas diferentes, salários baixos e péssimas condições de trabalho, é uma regra no Brasil. Não seria exagero dizer que todos os professores têm vidas parecidas. Assim como para a maioria dos trabalhadores, o dia da professora Amanda Gurgel também começa muito cedo, quando o sol ainda nem deu as caras direito. “Eu acordo às 5 horas da manhã e preciso me organizar rapidamente para poder pegar o primeiro ônibus, que passa mais ou menos dez minutos antes das seis. Eu tenho de ser rápida. É tomar um banho rápido e organizar o meu material.”, conta.

Amanda mora em Nova Parnamirim, zona sul da região metropolitana de Natal, e trabalha em duas escolas do outro lado da cidade. A correria de todos os dias retira da professora até mesmo o direito a um café da manhã tranquilo. “São três ônibus que eu pego para chegar às escolas. Eu até poderia pegar dois, mas como o transporte público em Natal é muito precário eu preciso pegar mais um para chegar no horário.”.

O cansaço e o estresse já começam nas primeiras horas da manhã, ainda dentro do transporte. A viagem é longa e Amanda se esforça para manter o mesmo ânimo de quando acordou. “Eu levo em média uma hora e meia para chegar até a escola. Já chego na escola cansada”, diz a professora.

Dupla jornada escolar
A primeira jornada de trabalho é dada na Escola Municipal Amadeu Araújo, no bairro de Nova Natal, zona norte da capital potiguar. Durante toda a manhã, Amanda é responsável pelas atividades escolares no laboratório de informática, onde muitas vezes a internet se torna um mistério para os alunos, já que as condições são precárias. “Aparentemente pode parecer uma tarefa simples. Mas não é. Todas as turmas da escola passam por mim. São doze turmas do ensino fundamental ao todo.”, diz.

Mas o acúmulo de trabalho na primeira escola é só o começo. À tarde, a professora ensina Língua Portuguesa na Escola Estadual Myriam Coeli, no mesmo bairro da primeira, onde encara mais seis turmas do segundo e terceiro anos do Ensino Médio. E é dentro da sala de aula que a irresponsabilidade dos governos com a educação pública vai ganhando formas mais definidas. Os alunos da professora Amanda não tiveram professor de Português durante todo o ano passado. “É muito complicado. Eu tento me adaptar. Tenho que passar os conteúdos da série em que eles estão matriculados, sem deixar de falar daqueles assuntos que eles não viram antes. É muito difícil. Não é simples. É bastante sacrificado.”, conta ela, com uma mistura de tristeza e revolta.

A revolta aumenta quando chega a hora da merenda escolar. Há três meses, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte e a Justiça do Estado proibiram os professores de compartilhar a alimentação do aluno, sob pena de responderem administrativamente e criminalmente pelo ato. “Geralmente, o meu café da manhã é a merenda da escola. Querem passar a imagem de que os professores são os vilões da história só porque se alimentam de uma parte da merenda dos alunos. Mas o que acontece, na verdade, é que temos uma rotina bastante cansativa, corrida, e não temos tempo nem condições para fazermos as refeições adequadas.”, explica.

A professora culpa os governos por essa situação humilhante, sobretudo o governo federal e seu Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE. “Não temos dinheiro suficiente para comer o dia todo e todos os dias fora da escola, já que a gente trabalha o dia inteiro e nossos salários são muito baixos. A gente não é super-herói, somos de carne e osso e precisamos nos alimentar. Não tenho nenhum constrangimento de falar sobre isso. Se existe um erro nisso tudo, ele não é nosso. É do governo federal e do PNAE, que não vê que a escola é formada por alunos, pais, professores e funcionários. Portanto, toda a comunidade escolar deveria ter acesso à merenda.”, desabafa Amanda.

“Não tínhamos carteiras”
A humilhação dos professores e o descaso com a educação não tem limites. Na sala de aula, Amanda enfrenta problemas básicos de infraestrutura, que chegam a beirar o absurdo. Uma realidade que se repete não só por todo o Rio Grande do Norte, mas no Brasil inteiro. Salas quentes e abafadas, com lâmpadas queimadas e instalação elétrica à mostra. Tudo isso por falta de investimento. “O dinheiro enviado pelo governo é pouco. É uma angústia você precisar trabalhar com um determinado material e a escola não ter esse material. Em geral, a situação é precária. Na minha escola, a gente passou quatro anos solicitando carteiras à Secretaria Estadual de Educação. No ano passado, fizemos um ato público, com alunos e professores, todo mundo exigindo carteiras. Imagine isso. Não tínhamos carteiras.”, diz a professora. “As carteiras só foram aparecer depois que aquele meu vídeo ganhou repercussão”, completa.

Amanda diz que qualquer pessoa sabe que todos os materiais se desgastam com o tempo. “Se na nossa casa uma cadeira se desgasta, imagine numa escola, com três turnos funcionando. É natural que tenhamos carteiras com defeito porque já foram usadas por vários anos e não servem mais. Mas o governo quer que as carteiras durem o resto da vida. Parece que a ideia é que todo material da escola precisa durar para sempre.”, critica. Os alunos também reclamam e Amanda os incentiva a reivindicarem uma educação melhor. “Eu tenho conversado bastante com os alunos sobre isso. E depois do vídeo eles se sentiram mais empolgados com essa questão de reivindicar melhores condições e de reclamar sobre a situação da escola.”.

A falta de professores para diversas disciplinas é outro grave problema que atormenta alunos e superexplora os profissionais que estão na ativa. A professora se preocupa com a questão e reconhece que parte das extensas jornadas de trabalho se explica pela insuficiência de profissionais. Mas não só por isso. “Existe carência de tudo na educação. Faltam professores, funcionários, vagas e escolas. E isso tem a ver diretamente com o novo PNE do governo Dilma, que está tramitando no Congresso. O plano utiliza a palavra otimizar, que é bem pomposa, para maquiar os problemas da educação. O plano diz que é preciso otimizar o espaço, otimizar os recursos. Mas o que precisamos mesmo é de mais vagas, mais salas de aula, mais professores, mais escolas. Enfim, precisamos é de mais investimentos, o que o novo PNE não prevê.”, aponta.

Por causa da quantidade excessiva de turmas e alunos, uma média de 40 por sala, Amanda admite que é impossível acompanhar todos com a qualidade que merecem, por mais que se esforce. “O processo de aprendizado pressupõe um acompanhamento individual, um acompanhamento dos avanços dos alunos. Isso o professor não consegue fazer. É muito difícil associar os problemas encontrados nas avaliações com o rosto de cada aluno. Não há como dar acompanhamento exclusivo a um aluno enquanto os outros 39 estão esperando atenção. Realmente não há condições de se fazer um trabalho decente assim.”, lamenta.

"Indústria da ignorância”
Foi com grande revolta que a professora Amanda recebeu, no início de outubro, a notícia de que a governadora Rosalba Ciarlini (DEM) pretende cortar R$ 96,2 milhões da pasta da educação no Rio Grande do Norte. Some-se a isso o já gigantesco corte de R$ 3,1 bilhões da presidente Dilma, e está traçado o futuro da educação pública nos próximos anos. Para Amanda, além de servirem para aumentar o pagamento dos juros da dívida pública aos banqueiros, os cortes do governo na educação têm ainda outra função. “Os cortes na educação servem para cumprir com esse projeto do governo de seguir com a indústria da ignorância.”, argumenta.

Para combater essa realidade, é que Amanda tem feito muitos esforços para divulgar a Campanha dos 10% do PIB Já para a Educação Pública. Ela defende que este é um projeto para ser abraçado por todos os trabalhadores. “O governo tem tratado os 10% do PIB para educação como se já fosse um absurdo de investimento. Na verdade, isso é o mínimo necessário para que a gente dê o primeiro passo na direção de uma educação ideal. Eu vejo essa nossa campanha como um projeto daqueles que tem compromisso com a educação. De todos aqueles que constroem o país. Operários, médicos, professores, todos. Todos os trabalhadores deveriam se engajar nessa campanha porque reflete diretamente nas nossas vidas.”, convoca.

Nos intervalos das aulas, na sala dos professores, Amanda aproveita os rápidos momentos livres do trabalho para conversar com os colegas de profissão. Os assuntos são variados. “Felizmente, tenho uma relação muito boa com meus colegas de trabalho. A gente conversa sobre tudo. Desde as coisas mais amenas, como o que passou na televisão ou uma matéria boba que saiu numa revista, até os problemas graves da educação. Todos são indignados com os governos. Não só os atuais, mas também os que já passaram. Há ainda a total descrença de que esse sistema possa funcionar. Tenho muitos colegas que votam nulo, que já desistiram.”, revela.

Mas muitas vezes o assunto do dia envolve uma questão bastante delicada para os professores. As condições precárias da educação, com baixos salários e longas jornadas, têm deixado muitos educadores doentes. Só no estado da professora Amanda são mais de 600 professores licenciados por problemas de saúde. “Teve um professor que sofreu um derrame em sala de aula depois de passar por uma contrariedade com um aluno. Ele vinha num processo de estresse muito grande, a gente percebia que era uma bomba relógio. E foi o que aconteceu. Ele explodiu e teve um derrame. Esse professor tinha procurado a junta médica para pedir uma licença. O pedido não foi concedido, mas depois ele teve que, obrigatoriamente, ter a licença por causa da doença. Ele ficou com sequelas. Mas o estado não está nem aí para isso. É por causa desse descaso que a gente adoece. É por isso que a gente morre.”, desabafa.

Para os alunos, o professor é um anti-exemplo
Em condições de trabalho tão deploráveis, o sentimento de frustração muitas vezes é inevitável. Assim como muitos outros professores pelo país, Amanda também já viveu situações, no mínimo, constrangedoras em sala de aula e que a fizeram repensar o papel do professor atualmente nas escolas públicas. “A forma como os governantes encaram a educação faz com que nós, professores, cumpramos um papel contrário ao que deveríamos cumprir. Hoje o professor é um anti-exemplo para os alunos. O aluno não quer ser professor. O aluno não quer morrer de estudar e trabalhar para ter de pegar três ônibus até chegar ao local de trabalho. Não quer morrer de estudar e trabalhar para vir o Ministério Público e dizer que você não pode comer essa merenda. Os alunos percebem que nossa atividade é muito humilhante, muito degradante. Eu ouvi isso de um aluno de dez anos.”, afirma.

Entretanto, nem só de angústias é formada a realidade diária da professora Amanda. Na luta do dia a dia, ela ainda consegue construir uma boa relação com os alunos, mesmo mantendo contato com centenas deles cotidianamente. “Uma vez, estávamos em frente à Prefeitura de Natal, durante um ato contra o aumento da passagem de ônibus, professores e estudantes participando do protesto. E eu encontrei uma ex-aluna minha, que era criancinha quando tinha sido minha aluna. Nos reconhecemos na hora. Foi emocionante encontrá-la ali, lutando junto com os outros.”.

Amanda revela preocupação com uma jornada tão cansativa de trabalho. Não bastasse o esgotamento físico, há também a inquietação com a preparação e a qualidade das aulas. “Eu me sinto muito angustiada com isso porque tenho plena consciência de que se eu tivesse menos turmas e uma jornada menor meu trabalho renderia muito mais. Eu seria uma professora muito melhor do que eu sou.”, admite.

Mas Amanda não se deixa abater. Mesmo com o dia lotado, a professora potiguar encontra tempo para sua atividade de militante. Para ela, não é possível separar a vida de trabalhadora da vida política. “Acho que ser professora ou professor é tentar contribuir para o desenvolvimento do país, da educação. Eu ainda acredito nisso. Ser professor é saber que as transformações que o país precisa não vão acontecer apenas a partir da minha sala de aula. Para mim, ser professora é, acima de tudo, ser uma militante da causa da educação. Ser uma lutadora. Uma pessoa que acredita na luta coletiva. Nada é individual. Acredito numa luta que seja feita por todos”.

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