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terça-feira, 6 de março de 2012

Resenha de ‘Crack: um desafio social’, por Eva Patricia Alvares Lopes


CRACK: UM DESAFIO SOCIAL. Sapori LF, Medeiros R, organizadores. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; 2010. 220 p.
ISBN: 978-85-60778-70-6
Dividido em sete capítulos, o livro Crack: Um Desafio Social reúne autores de diversas áreas relacionadas à temática, os quais apresentam a questão sob o enfoque da saúde e da segurança públicas. A obra traz os resultados de uma pesquisa quantitativa e qualitativa realizada entre dezembro de 2008 e julho de 2010 com o objetivo de compreender os mecanismos sociais e simbólicos do tráfico e do consumo decrack em Belo Horizonte. Embora apresente um panorama da região metropolitana da capital mineira, a publicação traz conceitos e estudos facilmente aplicados a todo o Brasil, principalmente no que se refere ao tratamento dos dependentes.
Bernardo Starling Albuquerque, no capítulo “Idade Doida da Pedra”: Configurações Históricas e Antropológicas do Crack na Contemporaneidade, apresenta um histórico e contextualização do uso de drogas, inclusive ocrack. O autor faz uma associação entre, por um lado, o capitalismo e a sociedade de consumo (de qualquer substância/objeto) e, por outro, a felicidade, afirmando que a mídia é um dos mecanismos que mais influenciam o comportamento consumista. Para ele, o crack ocupa, hoje, na sociedade, uma posição diferenciada das outras drogas, sendo compreendido como o maior responsável “por todos os problemas da sociedade”, o que também é reforçado pela mídia.
No capítulo A Relação entre o Comércio do Crack e a Violência Urbana na Região Metropolitana de Belo Horizonte,os sociólogos Luis Flávio Sapori e Bráulio Figueiredo Alves da Silva, juntamente com a pesquisadora em segurança pública, Lúcia Lamounier Sena, exploram, por meio de estudos relacionados à incidência de homicídios, o impacto das drogas ilícitas na dinâmica da criminalidade. Ao analisar a evolução dos homicídios num período de 20 anos, a tese é de que o recrudescimento dos assassinatos em Belo Horizonte esteve relacionado à consolidação do tráfico do crack na cidade. O capítulo apresenta o papel das redes de drogas e a dinâmica no comércio destas, bem como a organicidade do processo comercial, incluindo a autorregulação da violência no interior do tráfico do crack.
Os cientistas sociais Gustavo dos Santos Fantauzzi e Bruna de Fátima Chaves Aarão afirmam, no capítuloO Advento do Crack no Contexto Político Brasileiro, que a temática está diretamente ligada ao âmbito da saúde e da segurança públicas, além de aos direitos humanos. Em uma análise de 53 normas institucionais (legislações) criadas desde 1938, nas três esferas de governo, 77,4% não têm foco em medidas para a saúde e 60,3% têm caráter proibicionista; apenas 11,3% têm foco em medidas de segurança pública. Os autores apresentam, também, os diversos órgãos criados pelo governo federal.
Segundo Fantauzzi e Aarão, não há interação entre as políticas existentes: a Política Nacional, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, está ligada, direta ou indiretamente, à segurança pública; já a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas ressalta a necessidade da diversidade e pluralidade de ações neste campo. As duas políticas são diferentes em suas correntes ideológicas, o que gera problemas em suas execuções. Os autores criticam a ênfase negativa dada, pelo governo, aos usuários de crack, por meio da mídia e de instituições de tratamento, comparativamente aos usuários de outros tipos de psicoativos.
O sociólogo Radamés Andrade Vieira, no capítulo As Injunções da Pedra, traz o dramático depoimento dos usuários. Os dependentes inveterados de crack se veem como sujeitos doentes com necessidades de acesso aos dispositivos de saúde; eles apresentam histórico de uso intercalado de álcool, tabaco, maconha e cocaína. Por meio de relatos, são apresentados ao leitor os ritos de consumo, as recaídas, as abstinências e convivência com os traficantes.
No que se refere ao tratamento, as instituições carecem de orientação embasada em diagnósticos técnicos consistentes, uma vez que, em fazendas e comunidades terapêuticas, os indivíduos “matam o tempo” entre relatos, trabalho e excessivas liturgias bíblicas. O autor critica também as instituições governamentais que, embora sejam mais complexas, ainda são deficitárias e não suficientemente integradas.
A Luta do Crackeiro Embaraçado entre a Fissura e a Intoxicação é o tema tratado pela psicóloga Antonieta G. Bizzotto, que ressalta, mais uma vez, o papel da mídia nesse debate: esta seria a encarregada pela demonização do crack com forte sobrecarga moral, associando o seu uso à violência. Para a autora, a dimensão prazerosa da droga não pode ser silenciada por uma moral preconceituosa; o uso do crack é comparado, muitas vezes, ao prazer sexual, existindo um prazer autoerótico no ato de fumá-lo.
Para explorar O Tratamento ao Usuário Compulsivo de Crack: Fissuras no Cotidiano Profissional, o psicólogo Gustavo Satler Cetlin ouviu os profissionais de saúde envolvidos no tratamento. Estes relatam que o usuário de crack não é visto como uma “categoria à parte” nos centros de tratamento, ou seja, ele não ocuparia um lugar ou mereceria uma definição especial. Para o autor, é mais provável que a relação dos profissionais com esse tipo de paciente resulte muito mais da forma como a mídia expõe o assunto e não como o seu dia a dia lhe mostra.
A grande dificuldade no tratamento seria o estabelecimento do vínculo terapêutico com a instituição e o manejo correto, por parte dos profissionais, da fissura. “O manejo da fissura contempla uma dedicação exclusiva do profissional àquele paciente naquele momento, procurando dilatar o tempo do sujeito na instituição“, diz o autor.
No último, e mais longo, capítulo, intitulado Clínica e Croni(cidade): Impactos do Uso/Abuso de Crack na Configuração Urbana e nos Tratamentos da Toxicomania, a antropóloga Regina Medeiros diz que o tema é tratado “como se a droga tivesse o poder de atuar no indivíduo e este na sociedade“, sendo esta a grande vítima do entorpecente, que passaria a ser um personagem dotado de vida própria e poder destruidor.
Mais uma vez, a mídia desempenharia o papel protagonista de estabelecer e legitimar a demonização docrack, localizando e culpabilizando o indivíduo, de forma que o debate seja desviado da dimensão socioeconômica, política, jurídica, clínica e cultural. A antropóloga afirma que o crack “é uma substância que dá à pobreza acesso ao sonhado consumo contemporâneo e, principalmente, permite a essa categoria escapar temporariamente da rotina e mazelas do cotidiano“.
crack torna-se, então, o bode expiatório dos grandes problemas da sociedade contemporânea, e a mídia, porta-voz de um discurso ideológico predominante, definidora da agenda de assuntos que serão levados à sociedade. As notícias apresentam territórios como as cracolândias, por exemplo, como espaços típicos de violência e delinquência, ignorando a organicidade existente ali, com características (e qualidades) como acolhimento, visibilidade, interação social e proteção.
É perceptível a existência de outras drogas talvez mais desastrosas que o crack, as quais causam problemas sociais e de saúde pública também maiores, mas que não estão recebendo a devida atenção da sociedade.
O drama do uso do tabaco, álcool ou cocaína, dentre outros, é, muitas vezes, ignorado. Por outro lado, ainda não está claro se esse chamamento para o “enfrentamento” ao crack se deve ao problema real que a droga causa ao ser humano ou ao fato de a sociedade ter de se deparar com a sua decadência em cada esquina. Quaisquer das alternativas requerem atenção e ação, mas é a consciência do problema real que vai definir estratégias eficazes.
Eva Patricia Alvares Lopes
Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. patriciaalvares77@gmail.com

Cadernos de Saúde Pública
Print version ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.28 no.2 Rio de Janeiro Feb. 2012
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2012000200020  

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