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domingo, 3 de junho de 2012

A maldição do superávit e de uma falsa ética empurrando a recessão


A ideologia nos diz que “o Governo tem que fazer poupança para pagar os juros” (terminologia da Globo para justificar o superávit primário), enquanto o suposto combate à corrupção paralisa o conjunto dos investimentos públicos, sobretudo em transportes, em nome da ética. Como consequência, o Governo retira da sociedade, sob a forma de impostos líquidos, mais do que lhe devolve em gastos públicos. A consequência é contração econômica. O artigo é de J. Carlos de Assis.

O crescimento da economia brasileira de pífios 0,2% no primeiro trimestre do ano não surpreendeu ninguém, exceto os ortodoxos. A queda da taxa básica de juros e a queda menos expressiva das taxas de aplicação do sistema bancário são um fenômeno recente demais para alterar o ritmo dos investimentos. Ao lado disso, a política fiscal de realização de superávits primários recorrentes é de natureza contracionista, ao que se acrescenta o fato de que o investimento público se contraiu 2 pontos percentuais este ano, sobretudo nos transportes.

Estamos sob a dupla maldição da ideologia neoliberal e de um desarranjado combate à corrupção. A ideologia nos diz que “o Governo tem que fazer poupança para pagar os juros” (terminologia da Globo para justificar o superávit primário), enquanto o suposto combate à corrupção paralisa o conjunto dos investimentos públicos, sobretudo em transportes - o setor que mais vinha investindo -, em nome da ética. Como consequência, o Governo retira da sociedade, sob a forma de impostos líquidos, mais do que lhe devolve em gastos públicos. A consequência é contração econômica.

Em economia política, todo princípio normativo rígido está condenado a falhar em algum momento. O ciclo é da natureza do sistema capitalista. Há sempre uma sucessão de períodos de boom e de recessão. Se for aplicada, na recessão, uma regra válida para os períodos de boom, o resultado pode ser desastroso. A regra da realização de superávits primários é uma boa regra para períodos de alto crescimento. Com suas receitas líquidas, o governo pode eliminar o déficit público e reduzir drasticamente a dívida pública, reduzindo ao mesmo tempo tensões inflacionárias.

Contudo, em períodos de recessão, o governo deve gastar mais do que arrecada, cobrindo a diferença com empréstimos ao setor privado estimulados pela taxa baixa de juros induzida pelo Banco Central. Nós estamos fazendo metade do dever de casa, ou seja, o Banco Central está reduzindo corretamente a taxa de juros. Entretanto, insistimos em fazer superávit primário. Uma justificativa é que ainda temos elevado déficit nominal. É verdade. Porém, enquanto as taxas de juros ainda estiverem em patamar elevado, os juros que se pagam ao setor privado continuarão girando na dívida pública, sem alimentar o investimento e a demanda, e portanto sem risco de gerar inflação.

A Europa está sob a maldição de ter que fazer elevados superávits orçamentários, o que a impede de voltar a uma trajetória de crescimento. Temos que tomar cuidado para não trilhar o mesmo caminho. Felizmente, estamos longe de estrangular o mercado interno como eles estão fazendo, mas isso acabará acontecendo se insistirmos na linha de fazer altos superávits primários. 

Os ortodoxos alegam que tivemos uma boa performance econômica a despeito dos elevados superávits primários da era Mantega. Acontece que nem a performance foi tão boa, nem faltaram fatores especiais que compensaram o superávit. Em termos de performance, se olharmos para a série histórica do PIB, veremos que os anos realmente bons foram 2004 – cujo crescimento foi logo abortado pelo BC de Meirelles, em nome de nos enquadrarmos a um fetichista produto potencial -, 2007 e 2010, este último de recuperação da crise. O resto da série são números medíocres, mascarados pelo oba oba dos BRICS.

O principal fator de crescimento, não apenas do produto mas das reservas, foi a expansão da produção e exportação de commodities, efetivada independentemente – como sempre acontece com commodities – da valorização cambial. A esta última devemos uma progressiva deterioração do setor produtivo industrial em tal escala que muitos, inclusive eu, falamos em desindustrialização. Ora, hoje, com o desaquecimento chinês, europeu e americano, temos pouca chance de vermos uma expansão significativa de aumento do valor das exportações de commodities. Por outro lado, perdemos parte de clientela industrial.

Diante disso, reforçar o mercado interno, como se pretende, não pode se limitar a cortar IPI e mesmo reduzir juros. Juros baixos, como se sabe desde a Grande Depressão dos anos 30, são como manipular uma pedra com um barbante: você puxa a pedra (com juros altos, fazendo recessão), mas não empurra (fazendo crescimento). É preciso, corajosamente, enfrentar os ideólogos internos e externos da austeridade burra expressa na realização de superávits primários elevados em tempo de recessão. 

Como gastar esse superávit? Simples: perdoando parte da dívida pública dos Estados condicionando essa redução à realização por eles de um programa consistente de investimentos públicos. Isso teria grandes vantagens: liberaria a maioria dos Estados de um injustificável sufoco financeiro que os estrangula há décadas, desconcentraria o investimento público e aceleraria o processo de investimento, mediante sua diversificação. Paralelamente, para os investimentos públicos próprios, o Governo teria que conciliar combate rigoroso à corrupção com manutenção de investimentos prioritários, sem o que uma ética falsa acabará por nos arrastar indefinidamente para a recessão.

(*) Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, junto com o físico-matemático Francisco Antonio Doria, do recém lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, pela Civilização Brasileira. Este artigo é publicado também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.

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