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domingo, 11 de novembro de 2012

Só o PCC ameaça São Paulo?

A onda de assassinatos que apavora o estado mais rico do país foi iniciada e radicalizada pela Polícia Militar. O governo do estado omite-se. Os média silenciam. Por Antonio Martins, Outras Palavras.


Parte da PM abandonou o seu compromisso com a lei e a ordem pública e passou a agir à moda de um grupo criminoso.

Ao descrever, num ensaio recente (em breve, em português, em Outras Palavras), a situação tormentosa vivida pela Grécia, o jornalista Paul Mason, da BBC, recorre à história da Alemanha, às portas do nazismo. Só uma sucessão de erros crassos, mostra ele, pôde permitir que Hitler chegasse ao poder. Mas havia algo sórdido por trás destes enganos. Embora não fosse conscientemente partidária do terror, a maior parte das elites alemãs desejava o autoritarismo, pois já não conseguia tolerar o ambiente democrático da república de Weimar.
As circunstâncias são distintas: não há risco de fascismo no cenário brasileiro atual. Mas é inevitável lembrar de Mason, e da sua observação sobre a aristocracia alemã, quando se analisa a espiral de violência que atormenta São Paulo há cinco meses. Em guerra com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), parte da Polícia Militar está envolvida numa onda de assassinatos que já fez dezenas de vítimas, elevou em quase 100% o índice de homicídios no Estado e aterroriza as periferias.
Pior: a escalada foi iniciada (e é mantida e aprofundada) por integrantes da própria PM, a força que deveria garantir a segurança e o cumprimento da lei no Estado. Mas apesar de inúmeras evidências, o governo do Estado não age para refrear tal atitude. E os média omitem, ao tratar da onda de mortes, a participação e responsabilidade evidentes da polícia. É como se tivessem interesse em manter, em São Paulo, um corpo armado, imune à lei e ao olhar da opinião pública, capaz de se impor à sociedade e diretamente subordinado a um governador cujos laços com a direita conservadora são nítidos.
Para ocultar o papel de parte da PM na avalanche de brutalidade, a mídia criou um padrão de cobertura. As mortes de autoria do PCC são noticiadas, corretamente, como assassinatos de PMs. Informa-se que o número de crimes deste tipo cresce de modo acelerado — já são 90 vítimas este ano. Mas associa-se a insegurança que passou a dominar o Estado apenas a estes atos. Também se informa sobre parte das mortes praticadas pela PM — seria impossível escondê-las por completo. No entanto, aceita-se, sempre sem investigação jornalística alguma, a versão da polícia: morreram “em confronto”, depois de terem reagido.
Este estratagema permite silenciar três fatos essenciais e gravíssimos: a) parte da PM abandonou o seu compromisso com a lei e a ordem pública e passou a agir à moda de um grupo criminoso, colocando em risco a população e a grande maioria dos próprios polícias, honestos e interessados em cumprir o seu papel; b) diante desta subversão do papel da PM, o comando da corporação e o governo do Estado estão, ao menos, omissos; c) procura-se preservar este estado, evitando, recorrentemente, caracterizar a atitude do setor criminoso da polícia e, muito menos, puni-lo.
II.
Algumas iniciativas permitiram, nos últimos dias, começar a quebrar a cortina de silêncios e omissões. O jornalista Bob Fernandes, editor-chefe do Terra Magazine, sustentou, num comentário corajoso, em noticiário da TV Gazeta, que havia algo além do crime organizado, por trás da onda de assassinatos. “Rompeu-se um pacto entre polícia militar e PCC”, frisou Fernandes — e atribuiu a esta rutura tanto à “guerra” entre os dois grupos como a espiral de morte que se seguiu. “Criminosos matam de um lado? Vem a resposta: alguns, quase sempre em motos, com munição de uso exclusivo de forças polícias , dão o troco e também matam.”
A fala do editor do Terra Magazine teve o mérito de romper o consenso que a mídia fabricavam, até então, em torno de uma explicação inconsistente. Mas a que se referiria ele, ao mencionar, em linguagem quase enigmática, a rutura de um pacto?
Uma das pistas, para encontrar a resposta, é seguir o fio da meada da onda criminosa. Quando teria começado? Por quais motivos? Entre o final de maio e o presente, os jornais estão fartos de notícias sobre os assassinatos, sempre no padrão descrito acima. Mas não é difícil encontrar um ponto de inflexão, o momento a partir do qual o cenário se transforma.
Ele situa-se precisamente em 29 de maio. Nesta data, quando ainda não adotava a confirmação sem verificação das versões da Polícia Militar, O Estado de S. Paulo registra um massacre. Seis pessoas foram mortas pela ROTA, uma unidade da PM conhecida pela truculência. Estavam num estacionamento, próximo à favela da Taquatira, Zona Leste da capital. Foram vítimas de um comando constituído por 26 polícias. A própria PM afirmou, na ocasião, que eram integrantes do PCC. Alegou-se que estariam reunidas (num estacionamento?) para “traçar um plano de resgate de um preso”. Segundo as primeiras versões, teriam “atirado contra os polícias”. Apesar de numerosas (segundo a PM, 14 pessoas, das quais três foram capturadas e cinco fugiram), e “fortemente armadas”, nenhum soldado sequer se feriu.
Esta versão fantasiosa foi desmentida logo em seguida. Pouco depois da ação policial, um dos mortos “em confronto” seria executado a sangue frio, por parte dos PMs que haviam participado da operação. Os assassinos agiram em plena rodovia Ayrton Senna, e em área habitada. Uma testemunha presenciou o crime e denunciou-o, enquanto acontecia, pelo telefone 190. A sensação de impunidade dos assassinos levou-os a ser fotografados pela próprias câmaras de vigilância da estrada. Nove dos 26 polícias foram presos, horas depois. Destes, seis foram soltos em dois dias. Três — apenas os que teriam praticado diretamente a execução — permaneceram detidos. Não é possível encontrar, nos jornais, informações sobre a sua situação atual.
Atingido, o PCC reagiu recorrendo, embora em escala limitada, ao método que marcou a sua atuação em 2006. Na região de Cidade Tiradentes, uma das mais pobres da cidade e local de moradia de um dos mortos, o grupo obrigou a população a um toque de recolher no dia do enterro do comparsa, 31 de maio. Tiveram de fechar as portas, entre outras, as escolas municipais Adoniran Barbosa e Wladimir Herzog… Mas, também repetindo o que fizera em 2006, a facção não se limitou a isso. Começaria, logo em seguida, a longa série de assassinatos de polícias militares.
No ano passado, 47 PMs paulistas foram mortos, em serviço ou nas suas folgas. Não é um número excepcional, para uma corporação que reúne quase 100 mil soldados, exerce atividade de risco e vive sob tensão permanente (o índice anual de suicídios é muito próximo ao das vítimas de homicídio). Em 2012, tudo mudou. Até o incidente fatídico de 29/5, haviam sido contabilizadas 29 mortes de PMs — pouco acima da média registrada no ano anterior. Entre 29/5 e 4/11, os ataques disparam. São 61 novos assassinatos, em apenas cinco meses. Há casos dramáticos: uma polícia morta diante da filha; um garoto assassinado apenas por ser filho de polícia, ocasiões em que as próprias bases da PM são atacadas. Inúmeros relatos narram a situação de pânico vivida por milhares de soldados honestos, cuja vida foi subitamente posta em risco numa “guerra” provocada por uma minoria.
Mas aos poucos — e aqui começa um dos pontos mais obscuros de todo o episódio –, a PM parece inclinar-se a favor da sua banda violenta. Além de ter provocado o PCC à luta no final de maio, num ataque cujo caráter criminoso está demonstrado, a polícia paulista empenhou-se, nos meses seguintes, em tornar a disputa cada vez mais sangrenta e mais letal para a população civil.
Alguns episódios são emblemáticos desta tendência e da barbárie produzida por ela. Em 10 de outubro, por exemplo, um soldado de 36 anos foi executado em Taboão da Serra, oeste da Grande São Paulo. Dois homens dispararam seis tiros no seu corpo. Nas horas seguintes, no mesmo município, nove pessoas foram assassinadas. Duas delas foram vítimas da ROTA — execuções, segundo testemunhas. As sete outras, em circunstâncias nunca esclarecidas, mas muito assemelhadas às descritas por Bob Fernandes, no seu comentário recente. Poucos dias antes, na Baixada Santista, um outro episódio, em condições muito semelhantes, deixou, em cinco dias, um rastro de quinze mortos. Em nenhum destes casos houve investigações sobre o comportamento dos polícias — nem por parte de seus pares, nem da mídia…
A esta altura é perturbador, porém inevitável, traçar um paralelo. Radicalizar ao máximo a guerra contra o PCC; afogar o “inimigo” em sangue, sem se importar com o risco de atingir a população como um todo, foi a estratégia que prevaleceu na PM em 2006, quando a força enfrentou pela primeira vez o grupo criminoso. Entre 12 e 20 de maio daquele ano, mais de 500 pessoas foram assassinadas em chacinas e execuções na capital, região metropolitana, interior e litoral de São Paulo. A grande maioria não tinha relação alguma com o PCC, como denunciam, desde então, as Mães de Maio. Adotou-se aparentemente a ideia de que deflagrar terror indiscriminado contra a população forçaria o grupo criminoso a recuar, temeroso de perder apoio de suas bases sociais.
III.
Um personagem destacado é comum aos episódios de 2006 e aos de hoje: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Não estava diretamente à frente do Palácio dos Bandeirantes, durante a primeira rebelião do PCC (deixara o posto um mês antes, para concorrer à presidência da República). Mas havia governado o Estado nos seis anos anteriores e executara uma política de segurança considerada ao mesmo tempo brutal e ineficiente. Sua ligação com os acontecimentos ficou patente ao abandonar, de modo abrupto, uma entrevista em que jornalistas britânicos (ao contrário da grande mídia brasileira) questionaram-no sobre o ocorrido (veja o vídeo abaixo).
Apontado como membro da organização ultra-direitista Opus Dei, até mesmo por integrantes de seu partido (o PSDB), Alckmin é visto, por parte da elite brasileira, como uma liderança importante a preservar. As declarações que tem dado, desde maio, em favor das posições mais belicosas e agressivas, no interior da PM, são eloquentes.
Falta muito a apurar, no trilho tenebroso e caótico para o qual degenerou a segurança (?) pública em São Paulo, desde maio. Por que, após uma tentativa fugaz de investigar ações ilegais e criminosas de parte de seus integrantes, a PM desistiu do esforço? Que levou a imprensa — que também denunciou a truculência, num primeiro momento — a silenciar e a repetir, desde junho, uma versão insustentável? Um setor de polícias especialmente violento terá conseguido impor a sua posição? De que forma estarão envolvidos o governador e a imprensa?
O certo é que, para interromper a escalada sangrenta, a sociedade precisa agir — o quanto antes.
06/11/2012.

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