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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Egito: Uma traição para entrar na história

Desde o derrube do presidente Mohamad Morsi, no dia 2 de julho, a esmagadora maioria dos dirigentes com algum tipo de inserção na juventude ou nos círculos operários passou a apoiar ou integrar o atual governo dirigido pelo Exército. E pior, o processo de adesão ao regime ocorre em meio ao derramamento de sangue de dezenas de trabalhadores e camponeses apoiantes do presidente deposto, que estão a ser massacrados pelas Forças Armadas. Por Aldo Sauda, do Cairo
O nasserista Hamdeen Sabahy. Sabahy, principal figura da esquerda egípcia, apoiou o novo governo dos militares. Foto de Terence Gilheany

Em países com pouca tradição marxista, sem grandes legados de lutas abertamente anticapitalistas ou com vanguardas frágeis e com pouca experiência política, a capitulação às forças da ordem tendem a se dar de forma generalizada. Mas em pouco lugares e em poucos momentos traiu-se com tal intensidade como nos últimos dias no Cairo.
Desde o derrube do presidente Mohamad Morsi, no dia 2 de julho, a esmagadora maioria dos dirigentes com algum tipo de inserção na juventude ou nos círculos operários passou a apoiar ou integrar o atual governo dirigido pelo Exército. E pior, o processo de adesão ao regime ocorre em meio ao derramamento de sangue de dezenas de trabalhadores e camponeses apoiantes do presidente deposto, que estão a ser massacrados pelas Forças Armadas.
Só no inicio da semana passada, 50 simpatizantes da Irmandade Muçulmana, que integravam um protesto em defesa do governo Morsi, foram executados por tropas da Guarda Republicana. A este número somam-se outros sete que morreram em confrontos com a polícia segunda-feira. Enquanto o derramamento de sangue não para, as principais figuras públicas da revolução de 25 de janeiro aderem ao regime.
25 de janeiro X 30 de julho
O discurso atual, tanto do Exército e da polícia, quanto da imprensa burguesa, é que, em termos comparativos, o levante popular que derrubou Hosni Mubarak, ocorrido no dia 25 de janeiro de 2011, foi um processo inferior à “Revolução do 30 de Julho”. Circula a ideia de que o “25” foi mais uma conspiração que uma revolução, orquestrada pela Irmandade Muçulmana para tornar o Egito uma república islâmica.
Dentro deste contexto de islamização, o Exército teria realizado a dita “Revolução Redentora”. A suposta defesa de um país mais ou menos laico é o que tem justificado as adesões em massa de amplos setores da oposição ao novo governo. Segundo os capituladores, o Exército, descrito como bastião do secularismo egípcio, seria o principal pólo da resistência democrática ao fanatismo religioso.
Da noite para o dia, as Forças Armadas, até então descritas por liberais e nacionalistas de esquerda como o principal adversário à democratização do país, tornaram-se os grandes paladinos da liberdade.
Não por acaso, em meio a este cenário, circulam uma série de acusações quase lunáticas de que todos os crimes cometidos pelo Exército ao longo destes últimos dois anos e meio foram de responsabilidade exclusiva da Irmandade. Este sentimento tem até mesmo produzido um grau de xenofobia que não existia no inicio da revolução. Desde o derrube de Morsi há um ódio generalizado contra os refugiados sírios e palestinos que moram no país, muito dos quais têm sido acusados de apoiar o governo deposto dos “irmãos”.
“Não houve muito tempo para as massas acumularem experiência no processo” afirma Tamer Wagdee, dirigente de um pequeno grupo trotskista no Egito. “O Exército agiu de forma cirúrgica, derrubando Morsi 48 horas após o povo ir às ruas”. A mobilização, inclusive, foi bastante diferente que a revolução do dia 25. Naquele momento, durante um período de 18 dias, as massas confrontaram-se diariamente com a polícia, tratando o próprio Exército com algum grau de suspeição. Desta vez não. Os militares, assim como os polícias e muitos integrantes do antigo partido de Mubarak, foram carregados nos ombros do povo.
Se é correto, por um lado, afirmar que o dia 30 de julho realmente mobilizou uma quantidade maior que o “25”, a experiência política desenvolvida por este processo foi muito mais rasa.
Para Tamer, houve também um novo fator a ser levado em conta: a entrada em cena dos camponeses e das pequenas cidades no processo revolucionário. “Em cidades em que nunca houve manifestações políticas, sem nenhuma participação na revolução do 25 de janeiro, houve uma ebulição política contra Morsi”. Segundo o militante, tal facto ajuda a explicar o atraso tão evidente na consciência: “São locais sem experiência política prévia, para quem as manifestações são uma grande novidade”.
Traições que conhecíamos apenas nos livros de História”
O atraso na consciência, mais profundo nas manifestações anti-irmandade que nas manifestações anti-Mubarak, abriram a porta para as traições. Praticamente todas as figuras liberais supostamente anti-militaristas e com influência na juventude, como Nobel da Paz Muhamad Baradei, assumiram, assim que puderam, cargos no governo. A atual postura de Baradei, inclusive, contrasta com o seu comportamento no período logo após a revolução do dia 25 de janeiro, no qual o cientista nuclear evitou associar-se ao governo tutelado pelos militares. Desta vez, logo após o massacre dos irmãos, Baradei assumiu o cargo de vice-presidente interino para o período de transição.
O mesmo comentário pode ser feito a respeito do nasserista Hamdeen Sabahy. Sabahy, principal figura da esquerda egípcia, foi o terceiro colocado nas ultimas eleições presidenciais, ficando poucos votos atrás do candidato pró-Mubarak, Ahmad Shafiq, e do proprio Morsi. Apresentado por muitos como principal alternativa independente em meio à polarização entre a irmandade e os apoiantes do Exército, a nova tomada do poder pelos generais mostrou as verdadeiras cores do nasserista.
“As traições que vêm a ocorrer no Egito são do tipo que conhecíamos apenas nos livros de História” afirma Tamer. Elas não se reduziram apenas aos partidos políticos, mas também no campo sindical com as três centrais, uma delas vinculada ao antigo regime de Mubarak. As outras duas foram frutos do processo revolucionário do 25 de janeiro e alinharam-se de corpo e alma ao regime militar.
Pouco poderia se esperar da EFTU, a principal central sindical egípcia, atrelada historicamente ao partido de Mubarak. Apesar de um rearranjo na sua direção após a queda do ditador, e de tentativas da irmandade de ganhar os seus lideres, a central continua essencialmente identificada com o presidente deposto. O seu apelo aos trabalhadores para apoiarem o governo dos militares não assustou a ninguém.
A surpresa, porém, vem da EFITU, a principal cisão da central oficialista, e da CTUWS, uma organização híbrida, que envolve sindicalistas e uma ONG relacionada a diretos laborais. Ambas direções ocuparam um papel de destaque no derrube de Mubarak, convocando greves gerais e chamando os trabalhadores a não confiarem no governo da junta militar que substituiu o ditador.
A lamentável declaração de apoio aos militares, emitida pela CTUWS, para piorar ainda mais o cenário, alimenta abertamente o sentimento anti-palestino das ruas. A declaração, de modo obscuro, tenta atrelar diretamente o governo da Irmandade Muçulmana com o grupo guerrilheiro Hamas, da Faixa de Gaza, tentando assim confundir os trabalhadores a respeito de quem são seus verdadeiros inimigos.
Já a EFITU conseguiu, na sua traição, ir mais longe. Na declaração da entidade, logo após a tomada do poder pelo Exército, assinada pelo presidente da central, Kamal Abu Aita, a organização convoca os trabalhadores a darem tudo de si em nome do capitalismo egípcio. Após chamar todas as glórias para a “Revolução do 30 de Julho”, a central declarou: “Os trabalhadores, que eram campeões em greve durante o regime deposto, devem tornar-se agora os campeões da produção!”
A declaração de Kamal deu resultados. O sindicalista foi nomeado nesta segunda-feira Ministro do Trabalho. A sua nomeação ocorreu em meio ao assassinato de sete simpatizantes da Irmandade nos arredores da Tahrir.
Resistência às traições
Nem todos os sindicalistas da EFITU, porém, capitularam ao militarismo. Fatma Ramadan, convidada internacional do Segundo Congresso da CSP-Conlutas, foi uma das poucas vozes dissidentes do movimento operário a atingir a imprensa. “A atitude de Abu Aita foi vergonhosa” afirma Fatma, “em momento algum ele consultou o resto da direção da entidade para emitir aquele documento”. Logo após o ocorrido, a sindicalista soltou uma carta pública denunciando o presidente da entidade por seus métodos e política.
“O nasserismo de esquerda e próprio Karama, partido integrado por Abu Aita e Hamdeen Sabahey, é muito influente no movimento operário” explica a dirigente. Para Fatma, os que focam os seus olhos nos acontecimentos no Cairo tenderão a deprimir-se com a política egípcia. “A força dos aparelhos burocráticos, principalmente aqueles formados a partir da revolução do 25 de janeiro, tem poluído e travado o cenário político da capital. Mas se olharmos para as regiões do interior do país, há mais espaço para esperança.”
Segundo Fatma, houve grande adesão entre os trabalhadores do interior à campanha contra irmandade e, apesar de não ter havido greves no dia 30 de Julho, houve em alguns locais do Egito profundo movimentações da massa que caminhavam no sentido da desobediência civil. “Caso o exército não houvesse intervido tão rápido” afirma, “o movimento poderia ter se desenvolvido melhor ”.
Para Fatma, nas regiões mais distantes do Cairo há nova disposição entre os operários para lutar. “Estamos tentando organizar uma coligação de trabalhadores dispostos à luta, muitos que atuam nos sindicatos atrelados as diferentes centrais sindicais” disse a dirigente. “Em meio a este cenário complexo, esta é nossa única saída” finaliza.
O brasileiro Aldo Cordeiro Sauda, militante do PSTU brasileiro que morou no Egito em 2011 e acompanhou o derrube do ex-ditador Hosni Mubarak, vive atualmente em Beirute, no Líbano.
Artigo retirado do site do PSTU

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