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sábado, 21 de dezembro de 2013

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS – DÉCIMA CARTA ÀS ESQUERDAS: DEMOCRACIA OU CAPITALISMO?

No início do terceiro milênio, a esquerda está dividida entre dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo, e o crescimento econômico sem fim (capitalista ou socialista) como um indicador básico do desenvolvimento e do progresso. Neste artigo vou me concentrar no primeiro desafio.
Archivo: Difusióndeideas.svg
Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos, pode fazer-nos pensar,  a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, mesmo contradição. O foicertamente nos países periféricos do sistema mundial, no que foi chamado de Terceiro Mundo por muito tempo e hoje é conhecido como do Sul global. Mas também nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição estiveram sempre presentes. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.
Uma análise mais aprofundada da relação entre capitalismo e democracia exigiria distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e seu domínio em diferentes períodos e regiões e entre diferentes tipos e graus de intensidade da democracia. Nestas linhas concebo o capitalismo sob o seu modo de produção geral e me refiro ao tipo que dominou nas últimas décadas: o capitalismo financeiro. No que diz respeito à democracia, eu me concentro em democracia representativa como foi teorizado pelo liberalismo.
O capitalismo só se sente seguro se  é governado por quem tem capital ou se identifica com suas "necessidades", enquanto a democracia é idealmente o governo da maioria que não têm o capital e não há razão para identificar-se com as "necessidades" do capitalismo, mas sim o oposto. O conflito é, no fundo, um conflito de classes porque as classes são identificadas com as necessidades do capitalismo (basicamente, a burguesia) são uma minoria em relação às classes que têm outros interesses, cuja satisfação se choca com as necessidades do capitalismo (classes médias, os trabalhadores e as classes populares em geral). Sendo um conflito de classes é apresentado como um social e politicamente distributivo conflito: em primeiro lugar, o impulso para a acumulação e concentração de riqueza por parte dos capitalista, e por outro lado, a demanda por redistribuição da riqueza gerada o em grande parte por trabalhadores e suas famílias. A burguesia sempre teve medo de que a maioria pobre tomem o poder e tem usado o poder político concedido às revoluções do século XIX para evitar que isso aconteça. Ele concebeu a democracia liberal como a forma de garantir que as mesmas medidas através de que mudaram ao longo do tempo, mas manteve o seu objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta dos direitos de propriedade individuais, sistema político e eleitoral com várias válvulas de segurança, a repressão violenta da política política fora das instituições, a corrupção política, a legalização do lobby... E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve aberta a possibilidade de recorrer a ditadura, algo que aconteceu muitas vezes.
Após a Segunda Guerra Mundial, muito poucos países tinham democracia, vastas regiões do mundo foram submetidas ao colonialismo europeu, que serviu para fortalecer o capitalismo euro-americano, a Europa foi assolada por uma guerra que tinha sido causada pela supremacia alemã, e no Leste o regime comunista, que aparecia como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal. Neste contexto surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo democrático, um sistema de economia política baseada na ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo deve ser fortemente regulado, o que significou a nacionalização de setores-chave da economia, tributação progressiva, imposição de negociação coletiva e até mesmo, como na Alemanha Ocidental da época, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Em termos científicos, Keynes representava então a ortodoxia econômica e Hayek, a dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direito ao trabalho, educação, saúde e seguridade social, garantido pelos Estado) havia sido o principal instrumento para estabilizar as expectativas dos cidadãos e para enfrentar as flutuações constantes e imprevisíveis dos "sinais do mercado". Essa mudança alterou os termos do conflito distributivo, mas não eliminou-o. Pelo contrário, tinha todas as condições para instigá-lo depois que o crescimento econômico de três décadas atenuara-se. E assim aconteceu.

Desde 1970, os Estados centrais têm manejado o conflito entre as demandas dos cidadãos e das exigências do capital através do uso de um conjunto de soluções que foram gradualmente dando mais poder ao capital. Primeiro foi a inflação (1970-1980), depois a luta contra a inflação, acompanhado pelo aumento do desemprego e o ataque ao poder dos sindicatos (1980), uma medida complementada pelo endividamento do Estado, como resultado da luta do capital contra os impostos, da estagnação econômica e do aumento dos  gastos sociais decorrentes aumento do desemprego (desde meados de 1980), e em seguida, com o endividamento das famílias, atraídos pelas facilidades de crédito concedidas pelo setor financeiro, finalmente livre de legislação estadual, a fim de evitar o colapso das expectativas do consumidor, educação e habitação ( meados de 1990).
Até que a engenharia das soluções fictícias chegou a seu fim com a crise de 2008 e se tornar claro quem havia vencido no conflito distributivo: o capital. O teste foi a conversão de dívida privada em dívida pública, aumento das desigualdades sociais e do ataque final às expectativas de uma vida digna da maioria (trabalhadores, aposentados, desempregados, imigrantes, jovens que procuram emprego) para garantir o retorno esperado da minoria (capital financeiro e seus agentes). A Democracia perdeu a batalha e só evitará ser derrotada em uma guerra, se a maioria perder o medo, se rebelem dentro e fora das instituições e forçar o capital a voltar ter  medo, como era 60 anos atrás.
Nos países do Sul global que dispõem de recursos naturais, a situação agora é diferente. Em alguns casos, por exemplo, em vários países da América Latina, pode-se mesmo dizer que a democracia está prevalecendo no duelo com o capitalismo, e não é por acaso que, em países como Venezuela e Equador começaram a discutir a questão do socialismo do século XXI, mas a realidade está longe dos discursos. Há muitas razões por trás disso, mas talvez o maior tem sido a conversão da China ao neoliberalismo, o que levou, especialmente a partir da primeira década do século, uma nova corrida por recursos naturais. O capital financeiro lá e encontrou ali na especulação com produtos alimentares uma extraordinária fonte de rentabilidade. Isto permitiu que os governos progressistas -chegados ao poder, como resultado de lutas e movimentos sociais das décadas anteriores - puderam desenvolver uma redistribuição significativa de riqueza e, em alguns países, sem precedentes. Dessa forma, a democracia ganhou nova legitimidade no imaginário popular. No entanto, por sua própria natureza, a redistribuição da riqueza não coloca em questão o modelo de acumulação baseado na exploração intensiva dos recursos naturais e, ao contrário, intensifica-a. Esta foi a origem de conflitos, que foram piorando, com os grupos sociais ligados à terra e aos territórios onde os recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.
Nos países do Sul global, com recursos naturais, mas sem uma democracia digna desse nome, o boom de recursos não trouxe impulso para a democracia, embora as condições teoricamente mais favoráveis ​​para uma resolução do conflito distributivo deva facilitar a solução democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhor rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou democracias de baixa intensidade (sistemas quase de partido único), onde é mais fácil corromper as elites, através do seu envolvimento no processo de privatização de concessões e rendimentos de extrativismo. Não é de esperar nenhuma profissão de fé na democracia pelo capitalismo extrativista, mesmo porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política. Enquanto isso, a demanda para a redistribuição da riqueza pela maioria não chega a ser ouvida por falta de canais democráticos e não conta com a solidariedade das pequenas classes médias urbanas que recebem migalhas do rendimento extrativista. As populações mais afetadas pelo extrativismo são os indígenas e os camponeses em cujas terras estão os estabelecimentos de mineração ou onde se deseja instalar a nova economia agroindustrial. São expulsos de suas terras e sujeitos a exílio interno. Sempre que eles resistem são violentamente reprimidos  e sua resistência é tratada como uma questão de polícia. Nesses países, o conflito distributivo nem sequer veio a existir como um problema político.
Desta análise se conclui que o atual questionamento do futuro da democracia no Sul da Europa é a manifestação de um problema muito maior que está surgindo em diferentes formas em várias regiões do mundo. Mas, assim formulado, o problema pode esconder uma maior incerteza do que expressa. Não é apenas questionar o futuro da democracia. Se trata também de questionar a Democracia do futuro. A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e parece que a derrota é reversível. Por isso não há que ter esperança de que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se ele já teve. A democracia liberal vai sobreviver na medida em que o capitalismo global se possa servir dela. A luta dos que vêem a derrota da democracia liberal a emergência de um mundo injusto e repugnantemente incontrolavelmente violento deve se concentrar em encontrar uma concepção mais robusta da democracia, cuja marca genética é o anti-capitalismo. Após um século de lutas populares que trouxeram o ideal democrático no imaginário da emancipação social, seria um grave erro político desperdiçar essa experiência e assumir que a luta anti-capitalista deve ser também uma luta anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático em uma realidade radical que não se renda ante o capitalismo. E, como o capitalismo não exerce seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, principalmente o colonialismo e o patriarcado, essa democracia radical, além de anti-capitalista, anti-colonialista  também deve ser anti-patriarcal. Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária - o nome não importa - mas deve necessariamente ser uma democracia pós-liberal, que não pode perder os seus atributos para atender às exigências do capitalismo. Pelo contrário, deve ser baseada em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo, e em caso de conflito entre capitalismo e democracia, a democracia real deve prevalecer.

Artigo por Boaventura de Sousa Santos, publicado em  blogs.publico.es

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