Manuel Castells - Dignidade: o direito a ser e a decidir quem se é - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Manuel Castells - Dignidade: o direito a ser e a decidir quem se é

A revolta ucraniana contra o governo  está sendo interpretada como um movimento nacionalista pró-europeu e anti-russo, alimentada por uma situação econômica insustentável. Há algo disso, mas não é o essencial. Em parte porque os protestos não se limitam a Kiev, mas, além da atenção da mídia global, se espalha para outras 29 cidades, alguns deles, no leste.

Mas o que os próprios manifestantes dizem é que é uma luta pela dignidade.

Por seus direitos como cidadãos e como pessoas que são atingidas por manipulação política e a corrupção generalizada nas instituições e na polícia. Não só o governo, mas uma grande parte de diferentes tendências políticas.

O que é significativo é que se repete na Ucrânia a mesma palavra simbólica utilizada durante três anos pelos movimentos sociais que surgiram ao redor do mundo: dignidade.

As revoluções árabes aumentaram a partir do coração do povo, para defender a sua dignidade. Os espanhóis ficaram indignados  contra a indignidade. Quando em junho passado em São Paulo os políticos queixavam-se aos jovens o espalhafato que  faziam por alguns centavos no preço do transporte, eles disseram : "Não se trata de centavos, mas de nossos direitos, da nossa dignidade". Como os estudantes chilenos cujas exigências (a futuro presidente Bachelet diz aceitar) vão além da educação. E os manifestantes turcos do Gezi Park, que ganharam a anulação do projeto de desenvolvimento, afirmam que este é apenas o início de uma luta pela dignidade, pisoteado por um governo que se esconde por trás das eleições por não cumprir suas promessas, embora decomponha a vida cotidiana sob a corrupção institucional.

Essa mesma palavra é repetida de forma espontânea, sem acordo prévio entre os movimentos que se expandem globalmente, não pode ser coincidência.

Responde à raiz emocional que une todos esses protestos em diferentes contextos e com diferentes reivindicações. É a ferida da humilhação pessoal diária que torna-se insuportável. Por que generaliza precisamente no planeta agora? Lembre-se que em 1999 propôs Amartya Sen redefinir o desenvolvimento como a dignidade humana, e seu ponto de vista tem recebido cada vez mais aceitação entre aqueles que tentam superar a empobrecedora assimilação de desenvolvimento e crescimento econômico. Daí a importância atribuída às instituições internacionais para o desenvolvimento humano como um complemento vital para o crescimento económico.

Mas a perspectiva de Sen e outros analistas de desenvolvimento  não é apenas sobre melhorias na educação, saúde, habitação e condições de vida da população. Tais melhorias são consideradas essenciais para proporcionar às pessoas as habilidades que eles precisam, a fim de decidir a própria vida com uma autonomia materialmente possível.

Mas o objetivo é desenvolver plenamente a possibilidade aos humanos de ser isso. Daí a afirmação dos direitos humanos como um objetivo universal que todos os que pertencem a nossa espécie estão intrinsecamente envolvidos coletivamente.

Negar os direitos humanos para o outro é negar a nós mesmos. E isso vai da fome à tortura, desde o respeito das crianças à igualdade das mulheres, a partir da defesa da identidade de nossa cultura com a solidariedade com a identidade do outro.De modo que o desenvolvimento humano é tanto o crescimento da riqueza, a sustentabilidade ecológica (sem a qual não há nenhum desenvolvimento, porque não há vida humana no planeta), a redistribuição de riqueza na forma de serviços básicos para as pessoas e para o pleno respeito humano, ou seja, o direito de ser humano, em todos os direitos de dimensão.

Mas há mais: a autonomia das pessoas para decidir, individual e coletivamente, a proteção dos direitos humanos, ou seja, o direito de decidir. Se o direito de decidir é confiscado pelas instituições políticas representativas e serviço econômico de algumas organizações, a invocação ritual dos direitos humanos não tem sentido. Quando isso acontece, as pessoas tendem a recorrer a um princípio moral e ético que vai além do que está escrito nas regras e instituições impostas desde as instituições.

Esse princípio é a dignidade do homem, a ideia de que por sermos humanos temos o direito de ser. Direitos que se não nos concedem, eles são nossos.

E isso deve ser respeitado acima de conveniência política ou racionalidades econômicas. Quando se rompem os laços emocionais entre aqueles que governam  a sociedade e aqueles que produzem a sociedade com suas vidas, então  a dignidade é o valor superior em nome do qual  é legítimo  reconstruir o processo de delegação de responsabilidade que foi construído para conviver, mas que nunca deve esquecer sua raiz.

Manifestantes do Basta! de vários confins do mundo têm em comum a desconfiança nas instituições, e naqueles que as controlam no momento em que a emoção transborda.

E a raiva contra a violência policial com a qual se tenta  esmagar qualquer proposta que não seja como prescrito por umas elites encerradas em si mesmas. E, como os manifestantes não se movem por ideologia, mas por indignação e esperança de que outra coisa é possível, não têm mais bandeira comum do que a plantada em seu ser.

Essa é a dignidade e o direito de decidir quem você é.

Como se trata de um argumento que não é consistente com as teorias tradicionais polidas da democracia liberal e não há nenhuma maneira de quantificar em modelos de gestão macroeconômica, não levam em conta aqueles que ordenam e mandam. À espera de que a tempestade passe, mais uma vez, em um ou outro país.

Acontece, porém, que as sociedades contemporâneas são muito mais educadas, informadas e notificadaos de que nunca antes na história. E assim eles formam vários rios que levam a um novo oceano desconhecido.

Manuel Castells . Publicado em: La Vanguardia

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