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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Nem os EUA nem a Espanha são “países de classe média”

O desaparecimento da análise e do discurso de classes é um indicador do enorme domínio da classe capitalista nos maiores meios de produção e reprodução de valores. Termos como burguesia, pequena burguesia e classe trabalhadora desapareceram do discurso oficial. Por Vicenç Navarro.
Procura-se ocultar o conflito entre as classes sociais, e muito em particular entre a classe capitalista e a classe trabalhadora.
Uma das características do nosso tempo, em que vivemos sob a hegemonia do pensamento liberal, é o desaparecimento nas análises e narrativas da estrutura social da Espanha de qualquer referência à existência de classes sociais. Termos como burguesia, pequena burguesia e classe trabalhadora desapareceram do discurso oficial do país, tanto nos meios de informação como nos fóruns políticos, e mesmo na literatura sociológica. No seu lugar, o termo utilizado é o de classe média, que envolve toda a cidadania que vai desde a pessoa quase rica à quase pobre, incluindo assim a grande maioria da população. Neste novo esquema, a nova estrutura social é constituída pelos ricos, a classe média e os pobres. Esta nova classificação aparece também em setores da esquerda, que dividem a população entre os 1% e todos os demais (os 99%).
Esta nova classificação social que substituiu a anterior é nova em Espanha, mas não o é nos Estados Unidos. Na realidade, a definição dos EUA como um país de classe média, assinalando que a maioria da cidadania é desta classe social, desempenha um papel central na reprodução do sistema político-social dos Estados Unidos. Todos os anos, meios de grande difusão norte-americanos publicam relatórios que tentam mostrar que a maioria da população nos EUA é e se considera classe média. A maneira de chegar a essa conclusão é perguntar à nação se se considera de classe alta, de classe média ou de classe baixa. Já que o interrogado assume que classe alta são os ricos e classe baixa os pobres, a grande maioria responde classe média, resposta que tem falta de valor analítico, pois só indica que a maioria da população não se considera nem rica nem pobre.
É interessante sublinhar que, nas poucas ocasiões em que foi perguntado à população dos EUA se é de classe alta, de classe média ou de classe trabalhadora, há mais cidadãos e residentes nos Estados Unidos que se definem como classe trabalhadora do que aqueles que optam por se definir de classe média. Este resultado ocorre também na Espanha, como bem mostra a melhor analista da estrutura social do país, a catedrática de Sociologia da Universidade Autónoma de Barcelona Marina Subirats (Barcelona: da necessidade à liberdade. As classes sociais nos alvores do século XXI. 2012).
Mais, os estudos de maior credibilidade da estrutura social dos Estados Unidos mostram que a classe social das pessoas é uma das variáveis mais importantes para conhecer os seus hábitos culturais, a sua perceção das políticas públicas, o seu comportamento eleitoral, a sua maneira de vestir, o tipo de moradia em que vive, o bairro da cidade onde vive, e inclusive o sotaque da sua linguagem, além da maneira de se exprimir. Nem é preciso dizer que outras variáveis sociológicas – tais como raça e género – desempenham um papel importante na definição da pertença social do cidadão interrogado à estrutura social. Mas a variável classe social tem um papel determinante. Mais, muitas das características que se observam noutros coletivos – como a mortalidade maior entre os negros que entre os brancos – não tem nada a ver com a raça, mas sim com a classe social na qual o racismo coloca os negros, forçando-os a localizar-se na classe trabalhadora não qualificada, que tem maior mortalidade que a classe trabalhadora qualificada e que a classe média.
O projeto político de negação das classes sociais
Nos EUA, o desaparecimento da análise e do discurso de classes é um indicador do enorme domínio da classe capitalista nos maiores meios de produção e reprodução de valores. O maior domínio da vida política e mediática de um país por parte da classe capitalista – que nos EUA é conhecida como a Corporate Class (a classe constituída pelos grandes proprietários e gestores das grandes corporações financeiras e industriais) –, maior é a diluição e desaparecimento do discurso de classe, convertendo a maioria na categoria de classe média.
E o objetivo desse desaparecimento é múltiplo. Um, de grande relevância, é a tentativa de que desapareça a consciência de classe na classe trabalhadora (que constitui a maioria da cidadania), transferindo o debate político para o mundo do consumo, dividindo a população sobre os seus rendimentos e o seu consumo, e distanciando esse debate do mundo da produção e da distribuição de bens e serviços.
Outro objetivo, relacionado com o anterior, é evitar que se analise a realidade político-económico-mediática do ponto de vista das classes sociais, ocultando o conflito entre as classes sociais, e muito em particular entre a classe capitalista e as outras classes, e muito em especial com a classe trabalhadora. Luta de classes é um termo inexistente nos meios de informação e na cultura do país. A americanização da cultura política e mediática europeia (um fenómeno muito acentuado em Espanha) faz que também tenham desaparecido a análise e a narrativa de classes sociais, sendo substituídos pela tipologia de ricos, classes médias e pobres.
O problema é bem mais que os 1%
Dentro do esquema ricos, classe média e pobres, tem aparecido dentro do movimento radical contestatário norte-americano (no movimento Occupy Wall Street) a imagem de que os EUA se dividem entre os 1% da população (os membros da Corporate Class) e todos os demais. Baseada no estudo de Joseph Stiglitz, que assinala que os 1% do mundo controlam os meios de produção, aplica-se esta interpretação à estrutura social nos EUA. Esta imagem de 99% contra 1% é, no entanto, dramaticamente insuficiente e pode levar a subavaliar o enorme problema da transição do sistema atual a um novo sistema que permita responder às necessidades da maioria da população, em vez de prosseguir um sistema de acumulação de capital.
Como bem me indicava um colega sindicalista em Baltimore (onde está localizada a The Johns Hopkins University), “queria eu que o problema se centrasse só nos 1%. Seria mais fácil mudar esse sistema”. Os 1% precisam, para o seu domínio e reprodução, outros 9% (alguns consideram 14%) que incluem os gestores do sistema, e cuja situação privilegiada deriva dos seus serviços aos 1%. Esse estrato social, que inclui grandes sectores da burguesia, pequena burguesia e classe média profissional de rendimentos elevados, não existiria noutro sistema cujo objetivo fosse servir as necessidades da população em vez do objetivo de acumular capital. Entre eles estão os grandes gestores e porta-vozes dos maiores meios de informação. Daí que o problema seja maior que eliminar o poder de 1%.
Mas, por outro lado, os 99% estão divididos em diferentes classes sociais, que têm interesses diferentes que é necessário compatibilizar dentro do projeto reformador, tendo em conta que as classes trabalhadoras têm maior vocação transformadora que as classes médias (ao estar mais prejudicadas). Não ser sensível a estas diferenças está a levar as esquerdas políticas a um desastre, como estamos hoje a ver num grande número de partidos social-democratas que estão a perder as suas bases eleitorais. As suas constantes referências à classe média (o candidato Zapatero no seu discurso de candidatura utilizou o termo classes médias 18 vezes, sem nunca utilizar o termo classe trabalhadora) explicam o crescente distanciamento das classes trabalhadoras em relação à direção destes partidos, com um número preocupante a apoiar partidos contestatários radicais de ultradireita. O fascismo de base popular na Europa é um indicador mais do fracasso desses partidos.
11 de dezembro de 2013
Artigo publicado na revista TEMAS PARA O DEBATE, dezembro de 2013, retirado do Publico.es
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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