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domingo, 1 de dezembro de 2013

ZYGMUNT BAUMAN: A CULTURA NA ERA DO CONSUMO

Zygmunt Bauman analisa como a economia e o mercado transformaram os bens culturais em objetos de compra e venda. 
Sobre a base de estudos realizados na Gram Bretanha, Chile, Hungria, Israel e Holanda, uma equipe de treze membros dirigido pelo respeitado sociólogo de Oxford John Goldthorpe chegou à conclusão de que já não é possível diferenciar facilmente a elite cultural de outros níveis mais baixos na correspondente hierarquia mediante os signos que outrora eram eficazes: a assistência regular a  ópera e a concertos, o entusiasmo por tudo o que em algum momento se considere “arte elevada” e o hábito de contemplar com desprezo “lo comum, desde as cancões pop até a televisão comercial". Isso não equivale a dizer que já não existam pessoas consideradas - em grande medida por elas mesmas- integrantes de uma elite cultural: verdadeiros amantes da arte, gente que sabe melhor que seus pares não tão cultivados de que se trata a cultura, em que consiste e que se julga comme il faut ou comme il ne faut pas -apropriado ou inapropriado- para um homem ou uma mulher de cultura. Exceto que, a diferença de aquelas elites culturais da modernidade, já não são “connoisseurs” no sentido estrito de menosprezar o gosto do homem comum ou o mal gosto dos ignorantes. Pelo contrário, hoje resulta mai apropriado qualificá-los de “omnívoros”, recorrendo ao termo proferido por Richard A. Peterson, da Vanderbilt University: em seu repertório de consumo cultural há espaço para a ópera e também para o heavy metal, o punk, para a “arte elevada” e também para a televisão comercial, para Samuel Beckett y também para Terry Pratchett. Um Mordisquito disto, um bocado de aquilo, hoje uma coisa, amanhã outra. Uma miscelânia. De acordo com Stephen Fry, autoridade em tendências da moda expert da mais exclusivs sociedade londrinense (assim como estrela de exitosos programas televisivos). Fry admite publicamente:
Uma pessoa pode ser fanática pelo digital a outra vez ler livros; pode ir à ópera, assistir a uma partida de criquet e reservar entradas para um recital de Led Zeppelin sem partir-se em pedaços. Você gosta da  comida tailandesa? O que tem de mal à italiana? Epa, calma. Gosto das duas. Sim, se pode. Eu posso gostar de rugby, de futebol o de  musicais de Stephen Sondheim. O gótico victoriano e d as instalações de Damien Hirst. Herb Alpert & The Tijuana Brass e as obras para piano de Hindemith. Os hinos ingleses e Richard Dawkins. As edições originais de Norman Douglas, e ademais os iPods, o billar inglês, os dardos e o balet.
Então, tal como  enunciou Peterson em 2005 sintetizando vinte anos de investigação: “Observamos um deslizamento na política dos grupos de elite, desde aquela intelectualidade esnobe que desdenha toda la cultura baixa, vulgar ou popular de massas [.] até a intelectualidade omnívora que consume um amplio espectro de formas artísticas populares assim como cultas”. Em outras palavras, nenhuma obra da cultura me é estranha: não me identifico com nenhuma cem por cento, de maneira total e absoluta, e menos ainda o preço de negar-me outros prazeres. Em todas as partes me sinto como em casa, apesar de que (ou quem sabe porque) não há nenhum lugar que possa considerar minha casa. Não se trata tanto da confrontação entre um gosto (refinado) e outro (vulgar), como do omnívoro contra o unívoro, a disposição a consumi-lo todo contra a seletividade melindrosa. A elite cultural está viva e rabeando: hoje está mais ativa e ávida que nunca. porém está tão ocupada seguindo hits e outros eventos culturais célebres que não tem tempo para formular cânones de fé o converter a outros.
Aparte do princípio de “não ser meticuloso, não ser exigente” e “consumir mais”, não tem nada que dizer à  multidão unívora que está na base da hierarquia cultural.
E no entanto , como se ler em una obra de Pierre Bourdieu de  apenas umas décadas, houve um tempo em que cada oferta artística estava dirigida a uma classe social específica, e somente a essa classe, em tanto que era aceitada unicamente -ou primordialmente- por essa classe. O triplo efeito de aquelas ofertas artísticas -definição de classe, segregação de classe e manifestação de pertencimento a uma classe- era, de acordo com Bourdieu, se essencial razão de ser, a mais importante de suas funções sociais, quem sabe inclusive seu objetivo oculto, se não declarado.
Segundo Bourdieu, as obras de arte destinadas ao consumo estético indicavam, assinalavam e protegiam as divisões entre classes, demarcando e fortificando legivelmente as fronteiras que separava, umas de outras. A fim de traçar fronteiras inequívocas e protegê-las com eficácia, todos os objets d’art, ou ao menos uma significativa maioria, deviam estar destinados a conjuntos mutuamente excludentes, cujos conteúdos não correspondia mesclar nem aprovar ou possuir de forma simultânea. O que contava não eram tanto seus conteúdos ou qualidades inatas como suas diferenças, sua intolerância mutua e la proibição de conciliá-las, características erroneamente apresentadas como manifestação de sua resistência inata e imanente às relações morganáticas. Havia gostos das elites - "alta cultura" por natureza-, gostos medíocres ou “filisteus” típicos da classe média e gostos “vulgares”, venerados pelas classes baixas: e mesclar esses gostos era mais difícil que mesclar água com fogo. Talvez a natureza abominara do vazio, porém o induvidoso era que a cultura não tolerava uma mélange. Na distinção, Bourdieu disse que a cultura se manifestava antes de tudo como um instrumento útil concebido na consciência para marcar diferenças de classe e salvaguardá-las: como uma tecnologia inventada para a criação e a proteção de divisões de classe e hierarquias sociais.
Em resumo, a cultura se manifestava tal como a havia descrito Oscar Wilde um século antes: “Quem encontram significados belos nas coisas belas são espíritos cultivados [.]. São os eleitos, e para eles as coisas belas somente significam beleza”. “Os eleitos”, digo, os que cantam louvores e aqueles valores que eles mesmos mantém, ao tempo que se asseguram o triunfo no concurso de canções. É inevitável que encontrem significados belos na beleza, já que são eles quem decidem o que é a beleza; inclusive antes de que começara a busca da beleza, quem se não os eleitos decidiram onde buscá=la (na ópera e não na music hall ou em um posto de férias; n as galerias e não n as paredes da cidade ou n as reproduções baratas que decoram as casas obreiras e campesinas; em volumes com tampas de couro e não na gráfica do periódico ou em outras publicações que se adquirem por centavos). Os eleitos não são eleitos na virtude de sua  percepção do belo, sim mais bem em virtude de que la asserção “isto es belo” é vinculante precisamente porque tem-na pronunciado elos e tem confirmado com sus ações.
Sigmund Freud creia que o saber estético busca em vão a essência, a natureza e as fontes da beleza, suas qualidades imanentes, por assim dizer, e geralmente oculta sua ignorância em uma torrente de pronunciamentos pomposos, presuntuosos e em última instância vazios. “A beleza não tem uma utilidade evidente -decreta Freud-, nem é manifesta sua necessidade cultural, e sem embargo a cultura não poderia viver sem ela.”
Porém por outra parte, tal como sugere Bourdieu, a beleza tem seus benefícios e há uma necessidade de que exista. Ainda que,  os benefícios não são “desinteressados”, como asseverava Kant, são benefícios de todos os  modos, e  a necessidade não é necessariamente cultural, é social; e é muito provável que tanto os benefícios como a necessidade de distinguir entre beleza e feiura, ou entre delicadeza e vulgaridade, perdurem embora existam a necessidade e o desejo de distinguir a alta sociedade da baixa sociedade, assim como o perito de gostos refinados de quem tem mau gosto, das vulgares massas, da plebe e da gentalha…
Em consequência de considerar atentamente estas descrições e interpretações, fica claro que a “cultura” (um conjunto de preferências sugeridas, recomendadas e impostas em virtude de sua correção, excelência ou beleza) era para os autores citados, em primeiro lugar e em definitiva, uma força “socialmente conservadora”. A fim de demostrar sua eficácia nesta função, a cultura tinha que por em prática, com igual tensão, dos atos de subterfúgio aparentemente contraditórios. Tinha que ser tão enfática, severa e inflexível em suas avaliações como em suas censuras, em outorgar como em negar entradas, em autorizar documentos de identidade como em negar direitos de cidadania. Ademais de identificar que era desejável e recomendável por ser “como deve ser” - familiar e acolhedor-, a cultura necessitava significantes para indicar que coisas mereciam desconfiança e deviam ser evitadas a causa de sua baixeza e sua ameaça encoberta; letreiros que advertiram, como mais adiante dos confins de Roma nos mapas antigos, que hic sunt leones: aqui têm  leões. A cultura devia assemelhar-se ao náufrago de aquela parábola inglesa aparentemente irônica porém de intenção moralizante, que a fim de sentir-se como em casa, é dizer, de adquirir una identidade e defendê-la com eficácia, teve que construir três moradas na ilha deserta onde havia naufragado seu barco: a primeira era sua vivenda, a segunda era o clube que frequentava todos os sábados e a terceira cumpria a única função de ser o lugar cujo umbral o náufrago não devia cruzar, e em consequência evitou cruzar assiduamente em todos os largos anos que passou na ilha.
Quando foi publicado há mais de trinta anos, a distinção de Bourdieu pôs patas acima o conceito original de “cultura” nascido com a Ilustração e logo transmitido de geração em geração. O significado de cultura que descobria, definia y documentava Bourdieu estava a uma distância remota do conceito de “cultura” tal como o havia moldado e introduzido na linguagem corrente durante o terceiro quarto do  século XVIII, quase ao mesmo tempo que o conceito inglês de refinement e o alemão de Bildung.
De acordo com seu conceito original, a “cultura” não devia ser uma preservação do statu quo sim um agente de mudança; mais precisamente, um instrumento de navegação para guiar a evolução social tinha uma condição humana universal. O propósito original do conceito de “cultura” não era servir como um registro de descrições, inventários e codificações da situação imperante, sim melhor fixar uma meta e uma direção para as iniciativas futuras. O nome “cultura” foi assimilado à uma missão proselitista que se havia planejado e empreendido como uma série de tentativas cujo objeto era educar as massas e refinar seus costumes, para melhorar assim a sociedade e conduzir o “povo” - é dizer, a quem provinham das “profundidades da sociedade - Tinha suas mais altas cúpulas. A “cultura” se associava a um “raio de luz” que passava “embaixo dos beirais” para ingressar nas moradas do campo e da cidade, Chegando aos escuros esconderijos do prejuízo e da superstição que, como tantos outros vampiros (se creia), não sobreviveriam à luz do dia. De acordo com o apaixonado pronunciamento de Matthew Arnold em seu influente livro com o sugestivo título Cultura e anarquia (1869), a “cultura” “procura suprimir as classes sociais, difundir em todas as partes o melhor que se tenha pensado ou conhecido no mundo, lograr que todos os homens vivam em uma atmosfera de beleza e inteligência”; ademais, de acordo com outra opinião expressada por Arnold em sua introdução à Literature and Dogma (1873), a cultura é a combinação dos sonhos e dos desejos humanos com o esforço de quem quer e pode satisfazê-los: “A cultura é a paixão pela beleza e a inteligência, e (mais ainda) a paixão por fazê-las prevalecer”.
A palavra “cultura” ingressou no vocabulário moderno como uma declaração de intenções, como o nome de uma missão que ainda era preciso empreender. O conceito era tanto um slogan como um chamado à ação. Igual ao conceito que proporcionou a metáfora para descrever esta intenção (o conceito de “agricultura”, que associava os agricultores com os campos que cultivavam), exortava ao lavrador e ao semeador a que araram e semeavam o solo árido para enriquecer a colheita mediante o cultivo (inclusive Cicerón usou esta metáfora ao descrever a educação dos jovens com o término da cultura animi). O conceito suponha uma divisão entre os educadores chamados a cultivar as almas, relativamente escassos, e os numerosos sujeitos que haviam de ser cultivados; os guardiães e os guardados, os supervisores e os supervisados, os educadores e os educandos, os produtores e seus produtos, sujeitos e objetos, assim como o encontro que devia ter lugar entre eles.
Da palavra “cultura” se inferia um acordo planejado e esperado entre quem possuíam  o conhecimento (ou ao menos estavam seguros de possuí-lo) o os incultos (chamados assim por suas entusiastas aspirantes a educadores); um contrato, vale aclarar, previsto de uma só firma, endossado de forma unilateral e posto em marcha baixo a exclusiva direção da flamante “classe instruída”, que reivindicava seu direito a moldear a ordem “nova e melhor” sobre as cinzas do Ancien Régime. A intenção expressa desta nova classe era a educação, a ilustração, a elevação e o enobrecimento do povo, de quem recentemente havian sido investidos no rol de citoyens nos novos état-nations, o aparecimento de uma nação recém formada que se elevava à existência de Estado soberano com o  novo Estado que aspirava a desempenhar o papel de fideicomissário, defensor e guardião da nação.
O “projeto de ilustração” outorgava à cultura (entendida como atividade semelhante ao cultivo da terra) o status de ferramenta básica para a construção de uma nação, um Estado e um Estado nação, uma vez que confiava essa ferramenta às mãos da classe instruída. Entre ambições políticas e deliberações filosóficas, pronto cristalizaram duas metas gêmeas da empresa de ilustração (já se as anunciava abertamente ou se as supusera de forma tácita) o dobre postulado da obediência dos súditos e a solidaridade entre compatriotas.
O crescimento da "população" aumentava a confiança do Estado-nação em formação, pois se acreditava que o aumento do número de potenciais trabalhadores-soldados aumentaria seu poder e garantiria sua segurança. No entanto, uma vez que o esforço conjunto da construção  nacional e o crescimento econômico também resultava em um excedente cada vez maior de indivíduos (em essência, era necessário descartar categorias inteiras da população para levar adiante e fortalecer a ordem desejada e acelerar a criação de riqueza), o novo estado-nação logo enfrentou a necessidade urgente de encontrar novos territórios além de suas fronteiras: territórios com  capacidade de absorver o excesso de população que já não encontrava lugar dentro dos limites do seu.

A perspectiva de colonizar áreas distantes demonstrou ser um poderoso estímulo para a noção iluminista de cultura e dotou a missão proselitista de uma dimensão completamente nova que abarcava em potência o mundo inteiro. Em reflexo exato da ideia de "esclarecimento das pessoas" foi forjado o conceito de "missão homem branco", que constituía-se em "salvar o Selvagem de sua barbárie." Logo esses conceitos seriam dotados de um comentário teórico na forma de uma teoria evolucionista da cultura, o que elevou o mundo "desenvolvido" ao status de perfeição inquestionável, que viria a ser imitado ou desejado pelo resto do planeta. Por causa dessa meta era necessário ajudar ativamente  o resto do mundo, coagindo-o no caso de colocar  resistência. A teoria evolucionista da cultura dava a função à sociedade "desenvolvida" de converter todos os habitantes do planeta. Todas  seus futuros empreendimentos e iniciativas foram reduzidos ao papel que estava destinada a desempenhar a elite educada da metrópole colonial contra a sua própria "população" metropolitana.
Bourdieu concebeu sua investigação, coletou os dados e os interpretou no preciso momento em que estas iniciativas começavam a perder seu ímpeto e seu sentido de direção, e em termos gerais já estavam sem vida, pelo menos n as metrópoles onde se tramavam as visões do futuro esperado e postulado, embora não tanto nas periferias do império, de onde as forças expedicionárias eram chamadas a voltar muito antes de que tivessem logrado elevar a vida dos nativos aos padrões adotados as metrópoles. Em quanto a estas últimas, a já bicentenária declaração de intenções havia logrado estabelecer nelas uma ampla rede de instituições executivas, financiadas e administradas principalmente pelo Estado, com suficiente vigor como para apoiar-se no seu próprio ímpeto, sua rotina arraigada e sua inércia burocrática. Já se havia moldeado o produto desejado (um “populacho” transformado em um corpo cívico) e se havia assegurado a posição das classes educadoras na nova ordem, ou ao menos se havia logrado que fossem aceitas como tais. Longe daquela audaz e arriscada tentativa, cruzada a missão de ano passado, a cultura se assemelhava agora a um mecanismo homeostático: uma espécie de giroscópio que protegia o Estado nação dos ventos de mudança e das contracorrentes, uma vez que o ajudava, apesar das tempestades e os caprichos do tempo instável, a “manter o barco em seu rumo correto” (o ao menos, como diria Talcott Parsons mediante sua expressão até  então em voga, permitir que o “sistema” “recobre seu próprio equilíbrio”).
Em resumo, a “cultura” deixava de ser um estimulante para transformar-se em tranquilizante, deixava de ser o arsenal de uma revolução moderna para transformar-se em um depósito de produtos conservantes. A “cultura” passou a ser o nome das funções adjudicadas a estabilizadores, homeostatos o giroscópios. Quando Bourdieu a captou, imobilizou, registrou y analisou à maneira de uma instantânea na distinção, a cultura se encontrava em pleno cumprimento destas funções (que pronto se revelariam como efêmeras). Bourdieu não logrou separar ao destino da proverbial coruja de Minerva, essa deusa de toda sabedoria: observava uma paisagem iluminada pelo sol poente, cujos contornos haviam adquirido uma nitidez momentânea que pronto se fundiria no iminente crepúsculo. O que captou em sua análise foi a cultura em sua etapa homeostática: a cultura ao serviço do statu quo, da reprodução monótona da sociedade e o mantimento dol equilíbrio do sistema, justo antes da inevitável perda de sua posição, que se aproximava a passo redobrado.
Essa perda de posição foi o resultado de uma série de processos que estavam transformando a modernidade, levando-a de sua fase “sólida” a sus fase “líquida”. Uso aqui o termo “modernidade líquida” para a forma atual da condição moderna, que outros autores denominam “pós-modernidade”, “modernidade tardia”, “segunda” o “hiper” modernidade. Esta modernidade se torna “líquida” no transcurso de uma “modernização” obsessiva e compulsiva que se propulsa e intensifica a si mesma, como resultado da qual, à maneira do líquido - daí a eleição do termo-, nenhuma das etapas consecutivas da vida social pode manter sua forma durante um tempo prolongado. A “dissolução de todo  sólido” ha sido a característica inata e definidora da forma moderna de vida desde o começo, porém hoje, diferente de antes, as formas dissolvidas não hão de ser substituídas -nem são substituídas- por outras sólidas às que se julgue “melhoradas”, no sentido de ser mais sólidas e “permanentes” que as anteriores, e em consequência ainda mais resistentes à dissolução. Em lugar das formas em processo de dissolução, e portanto não permanentes, vem outras que não são menos -si é que não são mais- suscetíveis à dissolução e  igualmente desprovidas de permanência.
Ao menos nessa parte do planeta onde se formulam, se difundem, se leem com fruição y se debatem apaixonadamente as apelações em favor da cultura (a que, recordemos, se havia elevado antes de seu rol de assistente das nações, os Estados e as hierarquias sociais em processo de autodeterminação e auto-confirmação),esta perde rapidamente sua função de serva de uma hierarquia social que se reproduz a si mesma. As tarefas até então encomendadas à cultura foram caindo uma por uma, caíram abandonadas ou passaram a ser cumpridas por outros meios e com diferentes ferramentas. Liberada das obrigações que lhe haviam imposto seus criadores e operadores -obrigações consequentes com o rol primeiro missionário e logo homeostático que cumpria na sociedade -, a cultura pode agora concentrar-se na satisfação e a solução de necessidades e problemas individuais, em pugna com os desafios e as tribulações das vidas pessoais.
Pode-se dizer que a cultura da modernidade líquida (e mais em particular, ainda não de forma exclusiva, sua esfera artística) se corresponde bem com a liberdade individual de eleição, e que sua função consiste em assegurar que a eleição seja e continue sendo uma necessidade e um dever inevitável da vida, em tanto que a responsabilidade pela escolha e suas consequências está onde fica situada a condição humana da modernidade líquida: sobre os ombros dol individuo, agora designado gerente general e único executor de sua “política de vida”.
Não falamos aqui de uma mudança de paradigma nem de sua modificação: resulta mais apropriado falar do começo de uma era “pós-paradigmática” na história da cultura (e não só da cultura). Embora o termo “paradigma” ainda não haja desaparecido do vocabulário cotidiano, se tem adicionado à família das “categorias zumbis” (como dirua Ulrich Beck), que cresce a passo acelerado: categorias que devem ser usadas sous rature [em rascunho] se, em ausência de substitutos adequados, todavia não estamos em condições de renunciar a elas (como preferia dizer Jacques Derrida). A modernidade líquida é uma arena onde se libra uma constante batalha de morte contra todo tipo de paradigmas, e com efeito contra todos os dispositivos homeostáticos que servem à rotina e ao conformismo, é dizer que impõem a monotonia e mantém a previsibilidade. Ele se aplica tanto ao conceito paradigmático herdado de cultura como à cultura em sentido amplo (é dizer, a soma total dos produtos artificiais ou o “excedente da naturaleza” feito pelo ser humano), que aquele conceito intentou captar, assimilar intelectualmente e fazer inteligível.
Hoje a cultura não consiste em proibições sim em ofertas, não consiste em normas sim em propostas. Tal como assinalou antes Bourdieu, a cultura hoje se ocupa de oferecer tentações e estabelecer atrações, com sedução e iscas em lugar de regulamentos, com relações públicas em lugar de supervisão policial: produzindo, semeando e plantando novos desejos e necessidades em lugar de impor o dever. Se há algo em relação com o qual a cultura de hoje cumpre a função de um homeostato, não é a conservação do estado presente se a abrumadora demanda de mudança constante (ainda quando, a diferença da fase iluminista, se trata de uma mudança sem direção, ou bem em uma direção que não se estabelece de antemão). Poderia dizer-se que serve não tanto às estratificações e divisões da sociedade como ao mercado de consumo orientado pela renovação de existências.
A nossa é uma  sociedade de consumo: nela a cultura, da mesma forma que o resto do mundo experimentado pelos consumidores, se manifesta como um depósito de bens concebidos para o consumo, todos eles em competência pela atenção insuportavelmente fugaz e distraída dos potenciais clientes, empenhando-se em captar essa atenção além da palpitação. Tal como assinalamos no  início, a eliminação das normas rígidas e excessivamente meticulosas, a aceitação de todos os gostos com imparcialidade e sem preferência inequívoca, a “flexibilidade” de preferências (no atual nome politicamente correto para o carácter irresoluto), assim como as eleições transitórias e inconsequentes, constituem a estratégia que se recomenda agora como a mais sensata y correta. Hoje a insígnia de pertencimento a uma elite cultural é a máxima tolerância e a  mínima picuinhas. O esnobismo cultural consiste em negar ostentosamente o esnobismo. O princípio do elitismo cultural é a qualidade onívora: sentir-se como em casa em todo entorno cultural, sem considerar nenhum como o próprio, e muito menos o único próprio. Um crítico e crítico de TV da imprensa intelectual britânica elogiou um programa do ano novo 2007-2008 por sua promessa de “brindar um conjunto de entretenimentos musicais para satisfazer o apetite de todos”. “O bom -explicou- é que seu atrativo universal permite a um entrar e sair do show segundo a preferência.” É uma qualidade  digna de elogio e em si admirável d oferta cultural em uma sociedade onde as redes substituem as estruturas, enquanto que um jogo ininterrompido de conexão e desconexão dessas redes, assim como a interminável sequência de conexões y desconexões, substituem à determinação, a fidelidade e a adesão.
Há outro aspecto a destacar nas tendências aqui descritas: uma das consequências de que a arte se remova de cima a carga de cumprir uma função de peso é também a distância, frequentemente irônica ou cínica, que adotam com respeito  tanto a seus criadores como a seus receptores. Hoje o discurso sobre a arte rara vez adquire o tom cerimonioso ou reverencial tão comum no passado. Já não se chega às mãos. Não se levantam barricadas. Não há flashes de punhais. Se se diz algo em relação com a superioridade de uma forma de arte sobre outra, se o expressa sem paixão e sem brio; por outra parte, as visões condenatórias e a difamação são menos frequentes que nunca. Diante deste estado de coisas se esconde uma sensação de vergonha, uma falta de confiança em si mesmo, una sorte de desorientação: se os artistas já não têm a seu cargo tarefas grandiosas e transcendentes, se suas criações não servem a outro propósito que brindar fama e fortuna a uns poucos eleitos, ademais de entreter e comprazer pessoalmente a seus receptores, Como hão de ser julgados se não é pelo sensacionalismo que acaso recebem em um momento dado? Tal como sintetizou habilmente Marshall McLuhan esta situação, “a arte é qualquer coisa que permita a um sair com a sua”. Ou tal como Damien Hirst -atual menino mimado das mais elegantes galerias londrinas e de quem podem dar-se ao luxo de ser seus clientes- admitiu candidamente ao receber o Premio Turner, prestigioso prêmio britânico de arte: “É assombroso o muito que se pode fazer com  um nível médio escolar regular em artes, uma imaginação retorcida e uma serra”.
A forças que impulsam a transformação gradual do concepto de “cultura” em sua encarnação moderna líquida são as mesmas que contribuem a liberar os mercados de suas limitações não econômicas: principalmente sociais, políticas e étnicas. A economia da modernidade líquida, orientada ao consumo, se baseia no excedente e o rápido envelhecimento de suas ofertas, cujos poderes de sedução se murcham de forma prematura. Posto que resulta impossível saber de antemão quais dos bens oferecidos lograrão tentar aos consumidores, e assim despertar seu desejo, só se pode separar a realidade das ilusões multiplicando os intentos e cometendo erros custosos. O fornecimento perpétuo de ofertas sempre novas é imperativo para incrementar a renovação das mercadorias, encurtando os intervalos entre a aquisição e o desejo a fm de substituí-las por bens “novos e melhores”. E também é imperativo para evitar que os reiterados desencantos de bens específicos levem a desencantar por completo essa vida pintada com as cores do frenesi consumista sobre o lenço das redes comerciais.
A cultura se assemelha hoje a uma seção a mais da gigantesca tenda de departamentos em que se há transformado o mundo, com produtos que se oferecem a pessoas que tem sido convertidas em clientes. Tal como ocorre nas outras secções desta megatenda, os estandes repletos de atrações que  mudam  diariamente, e os mostradores estão enfeitados com as últimas promoções, que se  desaparecem de forma instantânea como as novidades envelhecidas que publicitam. Os bens exibidos nos estandes, assim como os anúncios de los mostradores, estão calculados para despertar desejos irreprimíveis, mas momentâneos por natureza (tal como o enunciou George Steiner, “feitos para o máximo impacto e a obsolescência instantânea”). Tanto os comerciantes de bens como os autores de anúncios combinam a arte da sedução com o desejo irreprimível sentido pelos clientes em potencial para despertar a admiração de seus pares e desfrutar de um sentimento de superioridade.
Para resumir, a modernidade de cultura líquida já não tem uma "multidão" que ilustrar e enobrecer, mas clientes para seduzir. Em contraste com a ilustração e o enobrecimento, a sedução não é uma tarefa única, que é realizada de uma vez por todas, mas uma atividade que se prolonga indefinidamente. O papel da cultura não é satisfazer as necessidades existentes, mas  criar novas necessidades, mantendo as já entrincheiradas ou permanentemente insatisfeitas. O principal objetivo da cultura é evitar o sentimento de satisfação em seus antigos súditos e alunos, hoje transformados em clientes, em particular contrariar a sua perfeita, completa e definitiva gratificação, que não deixariam espaços para novos desejos e necessidades que satisfazer.
A cultura no mundo da modernidade líquida
Zygmunt Bauman

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