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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Vicenç Navarro: As limitações dos programas de combate à pobreza

Artículo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Pensamento Crítico” no diário PÚBLICO da Espanha.

Neste artigo Navarro aponta as limitações e insuficiências dos programas de combate à pobreza com base na transferência de recursos públicos para os pobres para garantir uma renda mínima para retirá-los da pobreza. O artigo cita a experiência da América Latina, que, embora bem sucedida no caso da pobreza extrema, teve muita limitação para reduzir o impacto global da pobreza. O artigo aponta outras políticas públicas mais eficazes que foram desenvolvidas em outras partes do mundo.

A evidência de que a aplicação de políticas neoliberais leva a um crescimento da desigualdade e da pobreza, bem como ao aumento do endividamento da população e o conseqüente aumento do setor bancário é enorme. Experiências na América Latina (onde essas políticas foram realizadas com uma vingança no final do século XX ) e na União Europeia (onde foram implementadas ao longo das últimas duas décadas) mostram claramente esse fato. As desigualdades, tanto na América Latina, então como agora , na União Europeia cresceram drasticamente, assim como a pobreza, e o setor financeiro.

Embora muito tenha sido escrito sobre esta situação na UE, pouco se sabe sobre as conseqüências do neoliberalismo na América Latina, o que é preocupante, porque muito do que está acontecendo agora na UE ocorreu antes na América Latina. E daí a importância particular de estudar a experiência latino-americana. Uma dessas experiências que merece atenção especial é a resposta dos partidos de esquerda e de centro-esquerda para o problema do aumento da pobreza que ocorreu predominantemente no período neoliberal. Antes de expandir esse tópico, é importante fazer dois pontos. Uma delas é que a América Latina é um continente como a Europa. E segundo, que tanto a América Latina como a Europa são continentes com uma ampla gama de países, tornando-se difícil falar sobre, sem acrescentar experiências latino-americanas imediatamente as nuances entre os diferentes países que compõem o continente.

O caso da América Latina

Dito isto, deixe-me falar sobre a situação social, enfatizando certos elementos que essas experiências têm em comum. E um deles é o elevado nível de desigualdades existentes na maioria dos países, um nível que é ainda mais pronunciada durante a era neoliberal, e que, como resultado da aplicação de políticas públicas neoliberais, precisamente, para as desigualdades crescentes tem criando como conseqüência, o enorme crescimento da pobreza. Vamos ver os dados.

Olhe-se como se olhe, e escolha o indicador que for escolhido, todos os indicadores apontam  a América Latina como um dos  continentes mais desiguais  do mundo hoje. E entre eles, o Brasil alcança o nível mais elevado. O índice de Gini (indicador mais utilizado para medir a desigualdade) é uma dos mais altas do mundo, 0.529 em 2011. Quanto maior o número, maior é o nível de desigualdade num país (indo de 0 a 1) .

Dizer que um país é muito desigual  nos permite prever  que outros indicadores estão presentes. Alta desigualdade significa alta concentração de riqueza, o que significa grande influência política dos ricos no estado e na vida política, o que quer dizer poucas políticas fiscais muito pouco progressivas e  muito regressivas, o que significa que a receita do Estado é muito pobre. Isto é o que acontece em Espanha (incluindo a Catalunha), e em dimensões muito maiores  é também o que acontece no Brasil e a maioria dos países latino-americanos. As receitas para o Estado derivadas de impostos diretos (ou seja, imposto sobre o rendimento) representam apenas 19% de todas as receitas para o Estado no Brasil, uma porcentagem muito menor do que existe na médias dos países da OCDE de impostos diretos (33%). Esta é uma causa de que os estados são tão pobres .

A receita para o Estado, no entanto, pode aumentar ou diminuir sem mudanças significativas nas políticas fiscais. E isso é uma consequência do estado da economia. Por exemplo, se a economia cresce muito, aumentando assim o consumo e, assim, as receitas para o Estado com base no consumo, como aconteceu na Espanha na época do boom imobiliário. E isso é também o que aconteceu na América Latina, quando houve um resultado do aumento dos preços de seu boom de exportação. Na realidade, a situação é ainda mais acentuada na América Latina. No Brasil, por exemplo, os impostos indiretos - impostos sobre o consumo - representam 49% de todos os impostos, uma percentagem mais elevada do que a média da OCDE, 34%.

O que fizeram os partidos de esquerda coma pobreza

O fracasso das políticas neoliberais explica a substituição dos partidos governantes que impuseram tais políticas  por partidos de esquerda e centro-esquerda na grande maioria dos países latino-americanos (a partir dos anos noventa). E os dados mostram as consequências desta mudança. Segundo a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) o gasto público passou  de 318 dólares per capita em 1990 para US$ 819 em 2008 (em dólares constantes) na média latino-americana. E se olharmos para o gasto social como porcentagem de todos os gastos públicos, vemos que aumentaram durante o mesmo período, de 45% para 63%. Isto é um indicador da sensibilidade social da esquerda.

Mas o que também caracteriza as respostas da esquerda para o enorme crescimento das desigualdades (resultado das políticas neoliberais) foi a alta prevalência dos programas de combate à pobreza em suas políticas públicas, programas que dependem de transferências públicas para diferentes grupos populacionais sujeita às condições e exigências aos beneficiários do programa. Em suma, os programas de combate à pobreza são destinadas a reduzir a pobreza, ou pela transferência de fundos, oferecendo um bom crédito ou cheques às famílias (geralmente gerenciados pela mãe ou esposa da família), garantindo uma renda mínima. Na verdade, os gastos com esses programas de combate à pobreza como uma percentagem do PIB cresceu muito mais rápido (3,5% durante o período 1990-2008), do que os que iam   para os serviços do Estado de bem-estar público, como saúde, educação, habitação e saneamento, entre outros. Assim, a saúde aumentou apenas 1 %, e apenas 0,4 % a habitação. Resultado, o gasto social de combate à pobreza (programas de transferência de dinheiro para os pobres) passou a representar mais de 50% do aumento dos gastos sociais entre 1990 e 2008. Isto levou a algumas situações contraditórias (como aponta Lena Lavinas, em seu excelente artigo "“21st Century Welfare” en New Left Review, Nov/Dez 2013, que eu tiro a maioria dos dados apresentados neste artigo), tais como algumas transferências públicas se fazem condicionadas a que as famílias  enviem seus filhos às escolas ou à saúde pública, quando na verdade não existem tais centros ou escolas em áreas onde essas famílias residem.

Seriam esses programas bem-sucedidos?

A resposta a esta questão não pode ser um simples sim ou não. A pobreza tem caído na maioria desses países. No entanto, o que parece claro, a partir da evidência, é que, exceto no caso da pobreza extrema, na pobreza geral o impacto redutor tem sido limitado. Outros fatores têm desempenhado um papel muito maior na redução da pobreza. Em um dos estudos mais detalhados e precisos sobre as causas da redução da pobreza no Brasil, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE citou Lavinas) documentou que as principais causas do declínio na pobreza no Brasil desde 2001, foram (1) o crescimento do emprego e dos salários, como resultado de um maior crescimento econômico, (2) o aumento do salário mínimo, que aumentou 94 % no período 2001-2012, e  ( 3 ) programas de combate à pobreza. O maior impacto deste último tipo de programas tem sido entre a extrema pobreza, mas entre a pobreza, em geral, tem sido muito limitado.

Além disso, a prioridade dada a programas de transferência  públicas para a redução da pobreza foi feita em vários países à custa de manter (e mesmo acentuar) a pobreza dos serviços públicos do Estado de Bem-estar, tais como saúde e educação. Assim, no Brasil, os gastos com saúde pública (das mais baixas da América Latina) passou de 13% de toda a despesa pública em 2001 para 11% em 2010 (gastos com a saúde pública do governo federal representa apenas 0,8 % do PIB). Lavinas critica que enquanto os consumo de telefones móveis, computadores e máquinas de lavar roupa tem crescido exponencialmente, o acesso a água potável ou saneamento pouco melhorou. Uma consequência deste empobrecimento dos serviços públicos tem sido o aumento significativo nos serviços privados, com um crescimento notável de seguro de saúde privado e um aumento do crédito ao financiamento (aumentando assim o setor financeiro).

A baixa prioridade dada pelos partidos de esquerda para as políticas públicas redistributivas e reformas fiscais para, assim com um aumento das receitas do Estado,  alcançar maiores efeitos redistributivos, tem impedido o estabelecimento de programas universais, ou seja, os serviços de saúde pública e educação pública, por exemplo, para todos os cidadãos. Estes programas, juntamente com os programas de criação de emprego e salários mais altos, têm mais aprovação popular, maior impacto de redução da  pobreza e maior impacto redistributivo que programas de apoio aos sectores mais vulneráveis ​​através de programas de transferência para os pobres, tal como demonstram Walter Korpi e Joakim Palme e Vicenç Navarro, entre outros. Estes últimos têm um menor impacto na redução da pobreza e redução das desigualdades. A evidência disso na América Latina e na Europa é forte e convincente. Enquanto a pobreza extrema diminuiu, as desigualdades permanecem muito elevadas e os serviços públicos permanecem subfinanciados. Países com menos pobreza, como os países nórdicos europeus alcançaram este objetivo através do primeiro, e não através dos últimos tipos de intervenções. O enorme crescimento da desigualdade e da pobreza na Espanha (incluindo a Catalunha) não serão resolvidos através da transferência de fundos para os pobres para manter uma renda (geralmente  mínima), mas por meio de nível macroeconômico de criação de emprego e salários maiores (com um aumento considerável no salário mínimo, entre outras intervenções) e de políticas sociais universais, com correção de enorme déficit social na Espanha ( incluindo a Catalunha).

Vicenç Navarro
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).

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