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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Žižek: Há mais do que fúria na Bósnia

Ao unirem três etnias da ex-Jugoslávia, os protestos retomam o projeto emancipatório e revelam: é possível enfrentar a onda de fundamentalismo que atravessa o planeta. Artigo de Slavoj Žižek.
Foto retirada do site Outras Palavras.
Na semana passada, cidades ardiam[i], na Bósnia-Herzegovina. Tudo começou em Tuzla, cidade de maioria muçulmana. Os protestos espalharam-se então até a capital, Sarajevo, e Zenica, mas também até Mostar, onde vive um largo segmento da população croata, e Banja Luka, capital da parte sérvia da Bósnia. Milhares de manifestantes furiosos ocuparam e incendiaram prédios públicos. Embora a situação já se tenha acalmado, persiste no ar uma atmosfera de alta tensão.
Os eventos fizeram surgir teorias da conspiração (por exemplo, que o governo sérvio teria organizado os protestos para derrubar o governo bósnio), mas é preciso ignorá-las firmemente, porque, haja o que houver por trás das manifestações, o desespero dos manifestantes é autêntico. Ficamos tentados a parafrasear aqui a famosa frase de Mao Tse Tung: há caos na Bósnia, a situação é excelente![ii]
Por quê? Porque as exigências dos manifestantes são as mais simples que há – emprego, uma hipótese de vida decente e o fim da corrupção – mas mobilizaram pessoas na Bósnia, país que, nas últimas décadas, tornou-se sinónimo de feroz limpeza étnica.
Antes disso, os únicos protestos de massa na Bósnia e em outros estados pós-Iugoslávia tinham a ver com paixões étnicas ou religiosas. Em meados de 2013, dois protestos públicos foram organizados na Croácia, país mergulhado em profunda crise econômica, com desemprego alto e profundo sentimento de desespero: os sindicatos uniram-se para organizar uma manifestação em apoio aos direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que nacionalistas de direita[iii]iniciavam um movimento de protesto contra o uso do alfabeto cirílico em prédios públicos em cidades de minoria sérvia. A primeira iniciativa levou umas duas centenas de pessoas para uma praça em Zagreb; a segunda mobilizou centenas de milhares, como, antes, acontecera num movimento fundamentalista contra o casamento de homossexuais.[iv]
A Croácia está longe de ser exceção: dos Balcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da África Central à Índia, está a começar uma nova Idade das Trevas, com paixões étnicas e religiosas a explodir, e com os valores das Luzes a retroceder. Essas paixões sempre arderam por trás de tudo, mas a novidade é que, hoje, aparecem desavergonhadamente expostas.
Assim sendo, o que fazer? Liberais dominantes dizem-nos que, quando os valores básicos da democracia são ameaçados por fundamentalistas étnicos ou religiosos, temos todos de nos unir numa agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que possa ser salvo e deixar de lado todos os sonhos de transformação social mais radical. A nossa tarefa, dizem eles, é clara: temos de escolher entre a liberdade liberal e a opressão fundamentalista.
Porém, quando nos fazem, em tom triunfalista, perguntas (exclusivamente retóricas!) como “Deseja que as mulheres sejam excluídas da vida pública?” ou “Deseja que todos os que critiquem a religião sejam condenados à morte?”, o que mais nos deve fazer desconfiar da pergunta é a obviedade da resposta.
O problema é que esse universalismo liberal simplório já perdeu a inocência, há muito tempo. O conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é, na verdade, um falso conflito – um círculo vicioso e viciado no qual os dois polos pressupõem-se e geram-se mutuamente, um o outro.
O que Max Horkheimer[v] disse sobre o fascismo e o capitalismo nos anos 1930s (que os que não querem falar criticamente sobre o capitalismo devem também manter-se em silêncio sobre o fascismo) pode aplicar-se ao fundamentalismo de hoje: os que não querem falar criticamente sobre a democracia liberal devem também calar-se sobre o fundamentalismo religioso.
Reagindo contra caracterizar-se o marxismo como “o Islão do século 20”, Jean-Pierre Taguieff escreveu que o Islã está em vias de mostrar-se como o “marxismo do século 20” para prolongar o violento anti capitalismo do comunismo, depois do declínio do comunismo.
Mas as recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam, pode dizer-se, o antigo insight de Walter Benjamin, de que “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”. O crescimento do fascismo é, em outras palavras, o fracasso da esquerda e, simultaneamente, prova de que subsiste um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda não é capaz de mobilizar. E não se pode dizer exatamente a mesma coisa do hoje chamado “islamo-fascismo”? O surgimento do islamismo radical não é perfeito correlato do desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos?
Quando o Afeganistão é apresentado como país fundamentalista islamista “típico”, quem ainda lembra que, há 40 anos, foi o país de mais forte tradição secular, incluindo um poderoso Partido Comunista que chegou ao poder no Afeganistão, independente da União Soviética?
Esse é o contexto no qual se tem de compreender os recentes eventos na Bósnia. Numa das fotos dos protestos, veem-se os manifestantes a exibir três bandeiras lado a lado: da Bósnia, da Sérvia e da Croácia, mostrando o desejo de ignorar todas as diferenças étnicas. Para resumir, temos aqui uma rebelião contra elites nacionalistas: o povo da Bósnia afinal compreendeu quem é o seu verdadeiro inimigo: não outros grupos étnicos, mas os seus próprios “representantes” políticos que fingem protegê-los contra os demais. É como se o velho e tantas vezes mal usado lema titoísta[vi] da “fraternidade e unidade” das nações jugoslavas ganhasse nova atualidade.
Um dos alvos dos manifestantes era o governo da União Europeia que supervisiona o estado bósnio, forçando a paz entre as três nações e oferecendo considerável ajuda financeira para ajudar no funcionamento do Estado. Pode parecer estranho, porque os objetivos dos manifestantes são, nominalmente, os mesmos objetivos de Bruxelas: prosperidade e o fim das tensões étnicas e da corrupção.
Contudo, o modo como a União Europeia realmente governa a Bósnia cria divisões: a União Europeia só vê, como suas parceiras privilegiadas, as elites nacionalistas, entre as quais faz uma mediação.
O que as explosões na Bósnia confirmam é que ninguém jamais conseguirá superar paixões étnicas impondo-lhes uma agenda liberal: o que uniu os manifestantes foi uma mesma radical exigência de justiça.
O passo seguinte e mais difícil será organizar os protestos num novo movimento social que ignore as divisões étnicas; e organizar novos protestos – já imaginaram uma cena, com bósnios e sérvios furiosos, reunidos num comício conjunto, em Saraievo?
Ainda que os protestos percam gradualmente a força, ainda assim permanecerão como uma fagulha de esperança, como soldados inimigos que se abraçavam nas trincheiras, na primeira guerra mundial. Eventos autenticamente emancipatórios sempre incluem ignorar identidades.
E vale o mesmo para a recente visita de duas representantes do movimento Pussy Riot a New York: num grande show de gala foram apresentadas por Madonna, na presença de Bob Geldof, Richard Gere, etc., toda a gangue dos direitos humanos de sempre. Deveriam ali, isso sim, manifestar solidariedade a Snowden, para mostrar que as Pussy Riot e Snowden são parte do mesmo movimento global. Sem esses gestos que aproximem o que, na nossa experiência ideológica diária, parecem ser coisas incompatíveis (muçulmanos, sérvios e croatas na Bósnia; secularistas turcos e muçulmanos anti capitalistas na Turquia, etc.), os movimentos de protesto sempre serão manipulados por alguma super potência, na sua luta contra outra.

Artigo publicado no Guardian e reproduzido por Outras Palavras
Tradução: Vila Vudu

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