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quarta-feira, 12 de março de 2014

O ponto da situação do desarmamento nuclear

Se a psicose é uma perda de contato com a realidade, o atual estado do desarmamento nuclear pode ser descrito como psicótico. Artigo de Peter Weiss, no IPS.
Imagem de um teste de armas nucleares norte-americanas nas ilhas Marshall. Foto Governo EUA/Flickr
Por um lado, a questão nuclear começa a despertar da letargia em que esteve durante várias décadas. Por outro, o compromisso dos Estados nucleares com um mundo sem armas atómicas é mais violado do que cumprido.
Comecemos somando os prós e os contras do desarmamento nuclear.
Do lado dos prós temos o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, crucial para o problema, que se manifesta reiteradamente sobre o assunto, embora tenha reduzido a marcha.
Ao discursar na Universidade de Pardue, no dia 16 de junho de 2008, afirmou: “É hora de enviar ao mundo uma clara mensagem: os Estados Unidos buscam um mundo sem armas nucleares. (…) Converteremos o objetivo de eliminar todas as armas nucleares num ponto central da nossa política nuclear”.
Não houve referência a quanto tempo isso poderia levar. Um ano depois, no seu famoso discurso de Praga, a 6 de maio de 2009, Obama afirmou: “Declaro abertamente e com convicção o compromisso dos Estados Unidos de buscar a paz e a segurança de um mundo sem armas nucleares”.
Mas acrescentou que esse objetivo não será alcançado rapidamente, talvez não enquanto ele, que na época tinha 48 anos, estiver vivo.
Quatro anos mais tarde, em 19 de junho de 2013, em Berlim, Obama anunciou: “Paz com justiça significa buscar a segurança de um mundo sem armas nucleares, sem importar o quanto este sonho possa estar longe”.
Para ser sincero, a trajetória para a abolição anunciada em Praga foi implementada ou bloqueada sem responsabilidade do presidente. Foi negociada com a Rússia uma redução substancial das armas nucleares e diminuído o papel das armas nucleares na estratégia de segurança dos Estados Unidos.
A ratificação do Tratado Exaustivo de Proibição de Testes e a negociação de um Tratado de Materiais Físseis, ambos favorecidos pelo governo de Obama, mantêm-se suspensos, um por parte do Senado dos Estados Unidos e o outro por outro país.
Porém, redução não é o mesmo que eliminação, e os departamentos norte-americanos de Defesa e Energia continuam a empreender políticas que são claramente incompatíveis com o desarmamento nuclear, a saber:
• A Estratégia do Emprego Nuclear dos Estados Unidos, emitida pelo Departamento de Defesa, em 19 de junho de 2013, estabelece que as armas nucleares só serão usadas em circunstâncias extremas, mas que é muito cedo para limitar o seu uso estritamente à dissuasão;
• A Avaliação de Tecnologia de Monitoramento e Verificação Nuclear, divulgada em janeiro pelo Conselho de Ciências de Defesa, admite que, pela primeira vez desde que começou a era atómica, os Estados Unidos têm de estar preocupados não só pela proliferação horizontal, por exemplo, aos países que não possuem armas nucleares, mas também pela proliferação vertical, por exemplo, nas nações que as possuem.
Mas o relatório de cem páginas não faz nenhuma referência aos requisitos de monitorização e verificação em um mundo livre de armas nucleares.
No dia 6 de fevereiro, numa evidente violação do espírito, se não do texto, do Tratado de Não Proliferação Nuclear, os Estados Unidos anunciaram ter realizado com sucesso um teste de impacto (sem incluir uma explosão) da bomba nuclear B-61.
Donald Cook, vice-administrador de Defesa nesse departamento, disse que a engenharia da nova bomba já começou e que isso permitiria substituir modelos mais antigos “para meados ou final dos anos 2020”.
Daí a política dos Estados Unidos sobre desarmamento nuclear ser, pelo menos, heterogénea, e a das outras oito potências nucleares armadas não ser muito melhor.
Agora passemos às boas notícias. Em 2013 as potências não nucleares tomaram medidas mais animadoras para o desarmamento do que em anos anteriores:
• Em fevereiro, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), organizou um Fórum sobre a Criação das Condições e da Construção de um Contexto para um Mundo Livre de Armas Nucleares, convocado pela Iniciativa das Potências Médias. Participaram 26 governos e várias organizações da sociedade civil;
• Em março, o Ministério das Relações Exteriores da Noruega, outro país da Otan, convocou em Oslo uma Conferência sobre o Impacto Humanitário das Armas Nucleares, da qual participaram 128 governos e várias organizações da sociedade civil;
• Em 21 de outubro, o embaixador norueguês junto à Organização das Nações Unidas (ONU), Dell Higgie, entregou ao Primeiro Comité do fórum mundial a declaração adotada por 125 países, muitos dos quais participaram da conferência em Oslo. Ali se estabeleceu que a única maneira de garantir que as armas nunca voltem a ser usadas é eliminando-as completamente;
• O grupo especial de trabalho de composição aberta sobre o Desarmamento Nuclear, estabelecido pela ONU, reuniu pela primeira vez em maio, em Genebra, e em agosto produziu um relatório para a Assembleia Geral propondo uma variedade de abordagens destinadas a alcançar o desarmamento nuclear, incluindo um parágrafo sobre o papel do direito internacional;
• Também pela primeira vez, a Assembleia Geral da ONU manteve em 26 de setembro uma reunião de alto nível sobre desarmamento nuclear, na qual país após país, representados pelo seu presidente, ministro dos Negócios Estrangeiros ou por outro alto funcionário, pediu um imediato e efetivo avanço para um mundo sem armas atómicas;
• Por fim, e o mais importante, durante a conferência de acompanhamento de Oslo realizada na cidade mexicana de Nuevo Vallarta, nos dias 13 e 14 deste mês, Sebastian Kurz, ministro das Relações Exteriores da Áustria, anunciou que convocaria uma conferência em Viena no final deste ano, porque “os esforços internacionais de desarmamento nuclear exigem uma mudança urgente de modelo”.
A conferência de Viena não será apenas um terceiro simulacro dos horrores indescritíveis das armas nucleares. Abordará assuntos sérios, talvez inclusive iniciando a redação do rascunho de uma convenção que proíba o uso e a posse destas armas, como sugeriu o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.
Mas há um problema: os países que têm armas nucleares boicotaram tanto a reunião de Oslo quanto a de Nuevo Vallarta. O que ocorrerá se também boicotarem Viena? Essa é a questão. Também é o desafio que enfrenta a crescente comunidade contrária às armas nucleares, tanto oficial como não oficial. A vergonha pode ser uma ferramenta da diplomacia.
O Tratado de Não Proliferação, que para as potências nucleares é apenas meras palavras, exige esforços de boa fé de parte de todos os Estados para conseguir um mundo livre de armas nucleares. Este é um bom momento para lembrar aos Estados nucleares, e particularmente aos cinco grandes, essa obrigação tão importante. 

Peter Weiss é presidente emérito do Comité de Advogados sobre Política Nuclear. Artigo publicado no portal IPS em português

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