A Síria é uma nova Ruanda (*) - Blog A CRÍTICA

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quinta-feira, 10 de abril de 2014

A Síria é uma nova Ruanda (*)

Quando pensamos em Ruanda, hoje, provavelmente não nos lembramos do genocídio que começou há 20 anos, mas da repressão recente que o presidente Paul Kagame teria usado contra os seus adversários e do modo como explorou o caos no vizinho Congo. Kagame comprometeu a reputação do Ruanda e a sua condição de vítima.

Entretanto, não deveríamos permitir que os crimes de Kagame eclipsassem as extraordinárias realizações do povo ruandês nos últimos 20 anos - graças em parte ao próprio Kagame. Ele conquistou o direito de continuar a chamar a atenção para a sua actuação que consistiu em impedir massacres recíprocos, como numa recente entrevista à revista Foreign Affairs.

As atrocidades ruandesas foram maiores e muito mais pessoais do que as ocorridas nos Bálcãs; mas os ruandeses superaram-nas de maneira muito mais efetiva do que os bósnios. Indubitavelmente, isso aconteceu em grande parte por causa da posição dominante de que os tutsis desfrutam atualmente e da disciplina imposta aos hutus; mas isso não teria sido possível sem uma disposição geral à reconciliação.

Essa é uma parte essencial do legado do genocídio de Ruanda. E quanto ao legado internacional? Indagado sobre a possibilidade de os crimes de Ruanda voltarem a ocorrer, Edward Luck, ex-assessor do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, salientou que a vergonha do fracasso, naquela ocasião, e o surgimento de normas como a "responsabilidade de proteger", fizeram com que a ONU e os países passassem a responder muito mais rapidamente a atrocidades do que há 20 anos.

Na República Centro-Africana, para dar um exemplo, uma combinação das forças francesas e da União Africana conseguiu, até ao momento, impedir que os massacres mútuos de muçulmanos e cristãos acabassem por tornar-se uma carnificina generalizada.

Realmente, o mundo sai-se melhor nas ações preventivas, ainda assim não muito bem. Hoje, o Departamento de Operações de Paz da ONU não ocultaria um desesperado telegrama de advertência a respeito de um pogrom iminente, como ocorreu no caso do Ruanda. No entanto, resta o fcto de que "outra Ruanda" está a acontecer neste momento na Síria.

O Ruanda não é a analogia mais feliz quando tentamos refletir no facto de o mundo não responder às atrocidades na Síria. O genocídio poderia ter sido impedido por uma decisiva ação preventiva, mas as matanças aconteceram de maneira tão rápida que, uma vez desencadeadas, a hesitação mundial selou o destino do povo tutsi.

Por outro lado, o caos na Bósnia, assim como na Síria, foi instaurado por um exército nacional e por paramilitares como uma política de Estado, o que tornou ainda mais difícil preveni-lo. Ambos continuaram durante anos, proporcionando aos que estavam de fora inúmeras oportunidades para intervir.

O presidente dos EUA na época, Bill Clinton, recusou-se a intervir na Bósnia. Ele temia os custos políticos do fracasso depois do fiasco da operação realizada na Somália (conhecida como a Batalha de Mogadíscio), em 1993. Estava convencido de que as disputas sangrentas nos Bálcãs ocorrem há tempos imemoriais e são incuráveis, e, portanto, que qualquer envolvimento maior dos EUA falharia.

O presidente Barack Obama tem reiterado que a situação na Síria é infelizmente insolúvel. Numa recente entrevista, Obama insistiu que é "uma falácia acreditar que, de algum modo, nós estávamos em condições de impedir o tipo de adversidade que vemos na Síria com alguns ataques selectivos".

Evidentemente, ninguém sugeriu que "alguns ataques seletivos" derrubariam o regime sírio. Ao contrário, em 2012, vários dos assessores mais experientes, como a secretaria de Estado, Hillary Clinton, e o diretor da CIA, David Petraeus, propuseram um esforço maior para armar os rebeldes moderados. Obama recusou-se a agir, assim como fez Clinton, até que a carnificina em Srebrenica finalmente o obrigou a forçar a mão. Obama também espera uma solução negociada que de modo algum terá qualquer chance de sucesso sem a ameaça da força.

Não sabemos ao certo o que se passa na cabeça do presidente Obama. O que sabemos é que ele adiou uma ação enquanto pôde, depois de um evento da mesma gravidade de Srebrenica - os ataques químicos que mataram 1,2 mil sírios que ultrapassaram a "linha vermelha" - e então aproveitou da proposta russa de tirar as armas químicas do regime em vez de lançar ataques aéreos.

Obama está convencido de que um maior envolvimento americano está fadado a fracassar e sabe que esse fracasso teria graves custos políticos. Por outras palavras, uma profunda consciência dos custos predispõem-no a ouvir os seus assessores, segundo os quais, qualquer tipo de intervenção não teria a menor eficácia.

O número de mortos na Síria ultrapassa os 150 mil, enquanto o governo de Damasco despeja bombas de barril de helicópteros em ataques sobre áreas civis. Obama optou por não destruir esses helicópteros com ataques aéreos ou equipar os rebeldes com a capacidade de derrubá-los. Esse, porém, é o presidente que criou o Conselho para a Prevenção de Atrocidades e se cercou dos mais importantes promotores da "responsabilidade de proteger", como Susan Rice (conselheira da Casa Branca) e Samantha Power (embaixadora dos EUA na ONU).

Então, qual é o legado do Ruanda? Em primeiro lugar, que a reconciliação é possível, mesmo no caso da violência mais horrenda. Em segundo lugar, que o mundo criou agora mecanismos e reflexos diplomáticos que podem ser empregados para impedir que a violência expluda em assassinatos em massa.

Organizações regionais como a União Africana estão agora dispostas, em alguns casos, a enviar tropas para acabar com tal violência. Mas quando a matança só puder ser contida pela força que o Ocidente tem condições de organizar, o mundo olhará para os EUA e o seu líder.

O triste legado de Ruanda que testemunhamos agora em Washington é um presidente que considera as suas opções com um cepticismo muito maior do que os defensores da ação. Ele só agirá quando a probabilidade de sucesso for muito grande.

O preço do fracasso continuará proibitivamente elevado enquanto os eleitores sentirem uma escassa urgência de acabar com as atrocidades lá fora. Se, por outro lado, o público em geral clamar por algum tipo de intervenção, o cálculo político do presidente mudará.

Nenhum líder, porém, deve esperar que, numa questão tão angustiante quanto essa, a opinião pública se modificará por conta própria. Precisamos de um presidente corajoso para explicar os motivos pelos quais agir em circunstâncias tão trágicas é do seu interesse e do interesse da humanidade.

(*) James Traub - Foreign Policy

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