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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Conflito aprofunda crise da água no Médio Oriente

A recente disputa entre o Egito e a Etiópia pela água do Nilo é um exemplo dos conflitos que se avizinham no Médio Oriente pelo direito a este recurso essencial. Artigo de Thomas W. Lippman, no IPS.

O conflito aparentemente sem fim do Médio Oriente desvia a atenção e os recursos de uma ameaça mais grave que se forma sobre toda a região no longo prazo, a crescente escassez de água. E a situação vai piorar antes de melhorar, se em algum momento isso ocorrer.

Anos de guerra, gestão descuidada das reservas de água, crescimento demográfico descontrolado, políticas agrícolas imprudentes e subsídios que fomentam o consumo transformaram uma zona basicamente árida do mundo numa voraz consumidora de água. A trajetória não é sustentável.

Essas foram as conclusões, sombrias embora não surpreendentes, de uma conferência de três dias sobre o tema realizada este mês em Istambul, na Turquia. No território que vai da Líbia até Iraque e Iemen, muitas pessoas e muitos animais utilizam o recurso da água além de seus limites. Alguns países onde a insurgência é maior, como Síria ou Iemen, são os menos equipados para evitar uma grave crise.

A Jordânia, sempre com escassez de água, está sufocada pela avalanche de refugiados da Síria. O Iraque, que no passado teve recursos mais do que suficientes, perdeu reservas fundamentais devido à guerra e às represas que a Turquia construiu nos rios Tigre e Eufrates. O Egito, com os seus 86 milhões de habitantes, tem uma população duas vezes maior do que há 50 anos, mas sem recursos de água adicionais.

A isolada Faixa de Gaza lida com uma crise hídrica há anos. E as escassas reservas do Iemen são absorvidas pela produção descontrolada de kat (Catha edulis), um cultivo especial da zona tropical africana e arábica que consome muita água e possui valor nutricional nulo. Mastigar a folha ligeiramente narcótica de kat é o passatempo nacional no Iemen. “Se tiverem mais água, cultivarão mais kat”, lamentou um participante da conferência.

Porém, nem todas as notícias são ruins. Países estáveis com muito dinheiro, liderados pela Arábia Saudita, exibem avanços notáveis nas suas reservas, na gestão e educação do consumidor. Noutros lugares, entretanto, o prognóstico é pouco animador. Ninguém prevê que se desencadearão “guerras pela água” ou conflitos armados pelas reservas, um fantasma que se evoca com frequência, mas que nunca se materializou.

Porém, em algum momento do futuro não muito distante, a escassez de água poderá provocar grandes migrações, penúrias, más colheitas e uma seleção de prioridades nas populações, na medida em que os governos forem obrigados a destinar as reservas de água, disseram os conferencistas, cujas identificações não são permitidas pelas normas da conferência.

Tudo isso não passou despercebido. O problema da água no Médio Oriente é objeto de notícias, análises de órgãos como a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e de estudos feitos por centros de pesquisa e grupos humanitários durante anos.

No encontro mais recente, cientistas, analistas políticos e académicos de oito países se reuniram em uma ilha do Mar de Mármara para a conferência de Istambul intitulada Secas: Como Abordar o Desafio da Água no Médio Oriente, organizada pelo Centro Hollings e pelo Programa de Estudos Estratégicos Príncipe Muhammad Bin Fahd da Universidade de Flórida Central, nos Estados Unidos. Mas esse tipo de encontro conseguiu pouco porque a região não tem estabilidade suficiente para que uma solução integral e multilateral seja possível.

Análises do Banco Mundial, Departamento de Estado norte-americano e outros, indicam que a maioria dos países definidos como “pobres em água” (com acesso inferior a mil metros cúbicos por pessoa ao ano) estão no Médio Oriente e norte da África. O Departamento de Estado também prevê que a mudança climática agravará o problema ao provocar “níveis consistentemente mais baixos de chuvas”.

Nenhum governo nem organismo internacional pode aumentar as precipitações. Mas os congressistas de Istambul disseram que o exemplo da Arábia Saudita, o maior país do mundo sem rios, mostra que os Estados com muito dinheiro e tempo suficiente para se dedicarem a um tema podem fazer muito.

A Arábia Saudita centralizou o planejamento e a gestão da água na década de 1990. A maior parte da água do país é usada com fins pessoais e o abastecimento doméstico é feito por unidades de dessalinização cuja construção começou nos anos 1970. Mas a construção e operação dessas unidades têm um custo alto, o que as deixa fora do alcance econômico de países como o Iemen.

A Arábia Saudita lidera a região na recaptura e reutilização de águas residuais. Uma lei do ano passado, por exemplo, exige que as suas fazendas leiteiras funcionem com água reciclada adquirida da Companhia Nacional da Água e não com as águas subterrâneas como se fazia no passado.

Esse país chegou a ser quinto ou sexto exportador mundial de trigo, cuja produção exige grandes quantidades de água, mas agora esse cultivo estará proibido a partir de 2016 e o reino reorientará sua agricultura para a produção em estufas de frutas e verduras. Também foram proibidos os cultivos de forragem para gado, como a alfafa. Os produtores pecuários devem comprar forragem importada, disseram os participantes da conferência.

A Arábia Saudita perdia até 25% de sua água por vazamentos nas tubulações de distribuição. Para resolver o problema privatizou sua rede de distribuição e incentivou a participação de empresas de engenharia e de gestão estrangeiras. O reino aumentou o preço da água para empresas e instituições, mas não deixa de subsidiar a água destinada às famílias. Assim, o elemento vital é barato e há poucos incentivos para limitar seu consumo. Acabar com os subsídios seria politicamente arriscado num país onde os subsídios da água, gasolina e eletricidade são esperados pela população, que não tem voto nem outro tipo de influência sobre o governo.

O Egito, de longe o país mais povoado da região, tem um problema diferente de atitude dos consumidores. Os egípcios dão por assente a disponibilidade de água desde que foi construída a represa de Assuã, em 1970. Assim, utilizam-na com sensatez em casa e bombeiam mais para a irrigação de seus campos.

Mas a maior preocupação atual do Egito é o plano da Etiópia de construir uma grande barragem hidroelétrica na cabeceira do rio Nilo, o que reduzirá a corrente e a quantidade de água armazenada no lago Nasser, atrás da represa de Assuã. Quando recentemente perguntado ao chanceler egípcio, Nabil Fahmy, se o seu país estava em negociações sobre a distribuição da água do Nilo com os países rio acima, respondeu que “não, mas gostaria que estivesse”.

Os participantes em Istambul concordaram que não há uma solução única para a crise da água. As respostas existentes vão desde o simples e evidente, como educação dos consumidores e instalação de acessórios de banho de baixo caudal, ao desenvolvimento de unidades dessalinizadoras que funcionem com energia solar.

Como é habitual nesse tipo de evento, os organizadores prepararão um documento com suas recomendações. Mas será difícil aplicar as soluções até que cessem os tiroteios, os refugiados tenham um lar e os governos tenham uma estabilidade suficiente para colocá-las em prática. E isso não acontecerá logo. 


* Thomas W. Lippman é investigador-adjunto do Middle East Institute e autor de Saudi Arabia on the Edge (Arábia Saudita no Limite). Artigo publicado no portal do IPS

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