“Ganhe quem ganhe, continuará tudo igual. Só espero
que não ganhe o Aécio, porque aí seria uma guerra”, diz o líder do MST.
A luta pela reforma agrária,
que durante os séculos XIX e XX visava o combate ao
latifúndio para democratizar o acesso à terra, hoje, tem outros adversários: “o
capital financeiro, que domina a produção agrícola,
as grandes empresas transnacionais e, óbvio, os fazendeiros que se modernizaram
e aderiram a essa aliança”, esclarece João Pedro Stédile à IHU
On-Line. Esses atores, que formariam a nova classe dominante do campo, se
somam aos meios de comunicação para justificar “ideologicamente à população que
o agronegócio é a única alternativa possível, que ele sustenta o Brasil,
que produz alimentos baratos, etc.”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente,
quando esteve na Unisinos, Stédile explica quais são as análises
internas do MST em relação à reforma agrária,
avalia os 12 anos dos governos Lula e Dilma e rebate as críticas,
recebidas por setores intelectuais, de que os movimentos sociais foram
cooptados pelo Estado a partir da ascensão do PT à presidência.
“Não é aí que devemos fazer a crítica”, assinala. E
enfatiza: “O problema está quando um movimento social se subordina aos
governos, e aí cada um que faça a sua avaliação. (...) O MST passou o
tempo inteiro dos governos Lula e Dilma se mobilizando. Ninguém
neste país tem moral para dizer que o MST parou de lutar. (...)
Recomendaria que reflitam melhor a quem dirigem suas pedras, porque, na nossa
concepção, mesmo que tenhamos críticas a outros parceiros da classe
trabalhadora, temos de ter cuidado”.
Para Stédile, o
ex-presidente Lula nunca “propôs reformas estruturais”. Ao contrário,
acentua, o programa que Lula defendeu na campanha presidencial de 2002,
e que lançou as bases do chamado neodesenvolvimentismo, tinha três
objetivos claros: crescimento econômico, maior participação regulatória do
Estado e distribuição de renda. “Nesse programa, não precisa fazer reforma
agrária, não precisa tarifa zero [nos transportes], não precisa
universidade para todos. Eu acho que Lula foi honesto; não enganou
ninguém. Ele cumpriu o seu programa”, avalia.
O líder do MST também comenta as manifestações de junho de
2013 e assegura que elas “são parte da luta de classes”, ainda que
alguns grupos não se identifiquem com essa análise. “Claro que eles são fruto
da luta de classes, porque essa hegemonia da burguesia financeira e
multinacional não resolve os problemas da classe trabalhadora — porque, se
falta moradia, falta para a classe trabalhadora; se não há acesso à
universidade, são os filhos da classe trabalhadora que não têm acesso; o
transporte público afeta diretamente a classe trabalhadora”, acentua.
Em relação às eleições
presidenciais deste ano, Stédile é pontual: “A candidatura Dilma
e a candidatura Eduardo e Marina são candidaturas alternativas de
um mesmo projeto: o neodesenvolvimentismo, cujos parâmetros estão
bloqueados e não resolveram os problemas estruturais. A candidatura do Aécio
seria o fim do mundo, a volta do modelo neoliberal”.
João Pedro Stédile é
graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
– PUCRS e pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México. É membro
da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, do
qual é um dos fundadores. Participa das atividades da luta pela reforma agrária
no Brasil, pelo MST e pela Via Campesina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O MST realizou recentemente mais uma
mobilização do Abril Vermelho. Este ano, entretanto, praticamente não houve
repercussão na mídia, ao contrário da mobilização realizada em anos anteriores.
Na sua avaliação, por que ocorreu esta falta de repercussão?
João Pedro Stédile – Do ponto de vista do calendário
de mobilizações, neste ano, o dia 17 de abril caiu na Semana Santa, e
decidimos fazer uma jornada de outro tipo, mais prolongada e duradoura, de
acordo com a conjuntura de cada estado. Em alguns estados foram realizadas
ocupações, como em Pernambuco; em outros estados, recém iniciaram-se as
marchas, como em São Paulo; em outros, ainda, realizamos atividades nas
cidades, como as feiras agroecológicas em Alagoas, e o lançamento do
documentário O veneno está na mesa II,
de Sílvio Tendler, no Rio de Janeiro. Então, o processo de
mobilização ainda está em curso e não ficou concentrado numa só semana.
Entretanto, de fato, um dos grandes problemas que a
luta social enfrenta no Brasil é a natureza da mídia, porque,
além de ser uma mídia concentrada entre seis ou sete grupos econômicos, que
usam os meios de comunicação para acumular riquezas — e não é por nada que a
família Marinho é a segunda ou terceira família mais rica do Brasil
—, essa mídia, nos últimos 10, 15 anos, adquiriu um papel ainda mais ideológico
na sociedade e, em especial, na relação com as lutas sociais no campo.
O olhar condescendente da burguesia
Na época do capitalismo industrial,
a luta pela reforma agrária dos camponeses era contra o latifúndio. A própria
burguesia industrial nos olhava com certa condescendência, porque, afinal,
depois que nós conquistássemos a terra e se multiplicasse o campesinato,
geraríamos mais compras na indústria, maior integração no mercado. A burguesia
em si não se sentia afetada e foi por isso que ela nos tolerou. Porém, de dez
anos para cá, a nova classe dominante do campo não é mais nem o latifúndio, nem
a burguesia industrial; formou-se uma nova classe dominante. E essa
classe é formada pelo capital financeiro, que domina a produção agrícola,
pelas grandes empresas transnacionais e, óbvio, pelos fazendeiros que se
modernizaram e aderiram a essa aliança. E ainda há um quarto elemento da
composição de classes: os meios de comunicação. A burguesia usa os meios de
comunicação para justificar ideologicamente à população que o agronegócio é a
única alternativa possível, que ele sustenta o Brasil, que produz
alimentos baratos, etc. Quem faz esse discurso todos os dias? A mídia. Então,
ela deixou de ser um canal informativo e passou a ser um palanque ideológico da
burguesia. Ela participa permanentemente da luta de classes.
Basta ver as manifestações de junho de 2013
para saber como a mídia se comportou. No campo acontece a mesma coisa. A mídia
procura invisibilizar as lutas sociais. Há companheiros nas universidades dizendo
que o governo está criminalizando as lutas sociais. Não. Nosso problema não é
só repressão policial. Nosso problema é a repressão ideológica que os meios de
comunicação fazem contra qualquer luta social.
IHU On-Line - O que a mobilização organizada,
a partir da realização dos grandes eventos, como a Copa do Mundo e as
Olimpíadas, indica sobre o estágio atual das articulações do MST? O Movimento
dos Sem Terra perdeu seu papel de liderança na política nacional?
João Pedro Stédile – O MST nunca se propôs a
ser protagonista nem vanguarda de nada. Nós queremos apenas contribuir na luta
pela reforma agrária e para as mudanças na sociedade. A luta de classes no Brasil
e em qualquer parte do mundo, de acordo com a teoria da escola britânica de
marxistas — Eric Hobsbawm, Giovanni Arrighi, etc. —, se dá em
ondas de enfrentamentos entre as classes antagônicas num mesmo período
histórico. No Brasil, desde 1989 houve um refluxo das massas após a
classe trabalhadora ter sido derrotada no seu projeto democrático popular. A
última grande greve no país foi em 1988, a última grande conquista que tivemos
foi a Constituição de 88. Com a derrota [eleitoral] de 1989,
quando de fato aflorou o neoliberalismo, e a burguesia virou hegemônica na
sociedade brasileira, a classe trabalhadora refluiu e foi defender a
sobrevivência.
O campesinato e as forças populares do campo, como
não estavam ligados à luta direta pelo emprego, continuaram a mobilização até
2005. Então, a classe trabalhadora como um todo refluiu, porém os camponeses não.
Nós, do MST, de 1997 a 2005, assumimos um protagonismo na luta contra o
neoliberalismo que não esperávamos, porque continuamos mobilizados, e os outros
não. De 2005 para cá, fruto de todo esse processo da luta, os camponeses também
refluíram e, nós do MST juntos, como parte dessa onda histórica de
refluxo.
"Nosso problema é a repressão ideológica que
os meios de comunicação fazem contra qualquer luta social"
|
Significados
das manifestações de junho
No ano passado, o ressurgimento das manifestações
com a juventude teve dois significados: primeiro, que aquele programa de
composição de classes do neodesenvolvimentismo, aplicado pelo Governo
Lula-Dilma, não foi suficiente para resolver os problemas do povo e, em
especial, da juventude (de universalização da educação, de moradia, de
transporte público razoável), e por isso a juventude foi para a rua;
o outro significado é que a juventude sempre é o termômetro que indica quando
vai começar o reascenso, porque, como ela está fora do sistema de produção,
enxerga e se mobiliza antes.
Então o grande anúncio das mobilizações do ano
passado é de que há sinais de que será possível, a curto prazo, ocorrer um novo
reascenso do movimento de massas, porém isso precisa ter um caráter classista.
A classe trabalhadora organizada também está dando sinais de que está
insatisfeita e quer mudanças. Onde encontramos o sinal que é invisibilizado
pela mídia? A média anual das greves da classe trabalhadora industrial durante
os 15 anos do neoliberalismo, inclusive no governo Lula, foi de
200 ações. Já no ano passado foram feitas 900 greves da classe trabalhadora, no
setor industrial e dos bancários, que há anos não faziam uma greve nacional.
Essas 900 greves são um sinal de que a classe trabalhadora pode não estar na
rua, em marcha, mas começou a estar disposta a se mobilizar. O que falta é, no
próximo período, construirmos pontes de unidade entre a juventude e a classe
trabalhadora, para que seja construído um programa unitário de mudanças e
reformas estruturais e se aglutinem energias para mobilizações sociais.
IHU On-Line – Houve luta de classes nas manifestações de junho de 2013?
João Pedro Stédile – Claro. As manifestações são parte
da luta de classes.
IHU On-Line – Embora os manifestantes não
a identifiquem?
João Pedro Stédile – Embora não a identifiquem ou
embora alguns grupos se considerem anarquistas. Claro que eles são fruto da
luta de classes, porque essa hegemonia da burguesia financeira e multinacional (que
inclusive maneteia o próprio governo, como diz Olívio Dutra), não
resolve os problemas da classe trabalhadora — porque, se falta moradia, falta
para a classe trabalhadora; se não há acesso à universidade, são os filhos da
classe trabalhadora que não têm acesso; o transporte público
afeta diretamente a classe trabalhadora. Foi um segmento da juventude que
levantou primeiro a bandeira da tarifa zero, mas é uma bandeira da
classe trabalhadora. Os principais estopins para mobilizar o pessoal das
cidades é a recuperação da qualidade do transporte público e a luta pela tarifa
zero, porque é possível, do ponto de vista da economia brasileira,
garantir transporte gratuito para todos os trabalhadores.
IHU On-Line – Estas manifestações do chamado Outono
Brasileiro suscitaram críticas aos movimentos sociais tradicionais, no sentido
de que eles deixaram de fazer mobilizações e de que estariam saturados. Como o
senhor vê essas críticas?
João Pedro Stédile – Isso é natural. Os movimentos
sociais têm as suas características e as suas especificidades, que vêm de 20 ou
30 anos. Ou seja, temos um modus operandi, temos uma metodologia para
organizar a luta, mas isso não quer dizer que ela se contrapõe à liturgia que a
juventude, que está desorganizada enquanto classe, utiliza para ir para a rua.
Eles utilizam outras formas de propaganda, de motivação, de comunicação — o
principal veículo deles era o Facebook. A classe trabalhadora que está
dentro da fábrica não precisa de Facebook; ela utiliza outros métodos.
Então, qual dos métodos é bom ou ruim? Os dois são bons.
Precisamos não cair nesse simplismo, que às vezes
alguns porta-vozes da juventude utilizaram, de criticar os outros movimentos
porque eles fazem diferente. O diferente é bom; não precisamos ser todos
iguais. Mas o importante é que estejamos dispostos a criar condições para todos
lutarmos juntos, porque as conquistas de tarifa zero, de melhoria nos
transportes, de moradia e universidade para todos só serão possíveis se todas
as formas de mobilização popular
se organizarem para enfrentar o poder do outro lado.
“A classe trabalhadora que está dentro da fábrica
não precisa de Facebook; ela utiliza outros métodos”
|
IHU On-Line – O movimento social recebeu muitas
críticas após a eleição do governo Lula, entre elas, a de ter sido cooptado
pelo Estado. Como o senhor recebe as críticas feitas aos movimentos sociais,
inclusive ao MST, de terem sido cooptados pelo Estado?
João Pedro Stédile – É evidente que, dentro do
movimento sindical, dos movimentos sociais, houve deslocamento de lideranças
que tinham feito a luta de classes antes para assumir cargos públicos, mas isso
não é problema nenhum. Ao contrário. As lideranças que se propuseram a
trabalhar no governo não só têm o direito legítimo de fazer isso como
contribuem para melhorar o governo. Porém, não é aí que devemos fazer a
crítica. O problema está quando um movimento social se subordina aos governos,
e aí cada um que faça a sua avaliação. Nós do MST assumimos, como
princípio organizativo, que todo movimento social deve ser autônomo quanto ao
governo, ao Estado, às igrejas, aos partidos. Isso não quer dizer que não vamos
nos relacionar. Ao contrário, nós temos de nos relacionar, mas temos uma linha
política própria, metas próprias, formas de organização próprias.
O MST passou o tempo inteiro dos governos Lula e Dilma
se mobilizando. Ninguém neste país tem moral para dizer que o MST parou
de lutar. Ao contrário, esses mesmos que nos criticam pela esquerda não estavam
nas nossas marchas, nas ocupações de terras que ocupamos, não estavam nos
enterros das vidas que pagamos na luta de classes. As críticas de que o MST
parou de lutar e está cooptado pelo governo não nos atinge. Recomendaria
àqueles que as fazem que reflitam melhor a quem dirigem suas pedras, porque, na
nossa concepção, mesmo que tenhamos críticas a outros parceiros da classe
trabalhadora, temos de ter cuidado. As críticas têm de ser fraternais e em
ambientes de reunião para que sejam construtivas. A crítica ácida, dura e
permanente tem de ser contra os nossos inimigos de classe: a burguesia, os
latifundiários, as multinacionais, as empresas de comunicação.
IHU On-Line – Essas críticas argumentam que o MST
deveria ter um questionamento mais intenso em relação à postura do governo
federal nos incentivos ao agronegócio, por exemplo.
João Pedro Stédile – Vocês são testemunhas, na página
do IHU, do discurso do MST, que é sempre de “pau e pau” no
agronegócio, no governo, quando erra; é só pesquisar no Google, se tiver
paciência. No ano passado nós ocupamos dois ministérios. Qual foi o movimento
social que ocupou algum ministério? Nós não somos contra as críticas; elas em
geral nos ajudam, mas temo que muitas dessas críticas que vêm de setores
esquerdistas são para fazer uma disputa ideológica besta. Era sobre isso que Lenin
afirmava: “o esquerdismo é uma doença infantil”. Para dizer que você é
melhor que os outros, você chama o outro de pelego. Mas se estamos corretos ou
não, se somos melhores ou não para o povo brasileiro, só a história poderá
dizer. No futuro, o povo vai julgar se o MST errou e onde errou. Nosso
compromisso é com as mudanças sociais.
IHU On-Line - Como a questão agrária se insere na
atual conjuntura política nacional? Será um tema presente nas eleições
previstas para este ano?
João Pedro Stédile – A reforma agrária está
paralisada, porque, mesmo quando se desapropria uma fazenda para resolver algum
problema de acampamento, isso não é reforma agrária; é uma solução de um
problema político e social. Em geral, essas desapropriações pontuais só
resolvem o problema de um acampamento específico e não afetam a estrutura da
propriedade da terra.
Reforma agrária no
sentido stricto sensu é um programa de governo para eliminar o
latifúndio e democratizar a propriedade da terra. O que está em curso no Brasil
é uma concentração da propriedade da terra. Agora, por que isso acontece?
Não é só por causa da ação de tal ou qual ministro. Isso acontece porque o
capital financeiro e multinacional tomou a iniciativa de disputar a terra, a
água, as sementes, e isso gerou uma hegemonia do agronegócio. O modelo de
dominação capitalista está presente na produção, nas mercadorias agrícolas, na
mídia, no Estado, no governo, como a força majoritária, e isso bloqueou a
discussão e as conquistas da reforma agrária.
Como esse tema será discutido nas eleições? Não
temos muita expectativa, porque a candidatura Dilma e a candidatura Eduardo
e Marina são
candidaturas alternativas de um mesmo projeto: o neodesenvolvimentismo,
cujos parâmetros estão bloqueados e não resolveram os problemas estruturais. A
candidatura do Aécio seria o fim do mundo, a volta do modelo neoliberal, a
candidatura mais claramente vinculada ao capital financeiro e das
multinacionais, tanto que ele já anunciou que vai privatizar a Petrobras
e dar independência ao Banco Central. E ainda que é o único legítimo
representante do agronegócio! Então, mesmo as duas candidaturas mais fortes que
vão disputar as eleições, não têm como propósito recolocar a questão da reforma
agrária. A questão agrária no Brasil só virá num futuro próximo quando
houver a retomada das manifestações de massa, que vão pautar um projeto de
país. As eleições também não representam mudanças estruturais na política
institucional. Ganhe quem ganhe, continuará tudo igual. Só espero que não ganhe
o Aécio, porque aí seria uma guerra.
IHU On-Line – O MST se posiciona apoiando alguma
candidatura nas próximas eleições? Pretendem apoiar a candidatura da Dilma?
João Pedro Stédile – Como parte dos nossos princípios
ao longo desses 30 anos, o MST nunca definiu em
reunião nenhuma que vamos apoiar Beltrano ou Fulano como
movimento; temos de ter autonomia. E, portanto, o movimento não participa
eleitoralmente enquanto movimento. Porém, a nossa militância e a nossa base
evidentemente participam da vida política, têm opinião política e consciência.
E, naturalmente, a nossa base, por toda a sua trajetória de luta, se posiciona
votando em candidatos progressistas, de esquerda. A nossa base analisa a
conjuntura e toma as suas decisões. Devemos votar em candidatos progressistas,
ainda que — e lamento dizer isso — aqui e acolá há assentados que votam em
candidatos da direita. Nós também temos as nossas contradições, mas em geral a
nossa base sempre se posiciona ao lado dos partidos progressistas.
On-Line – O senhor comentou, durante a palestra,
que Lula nunca prometeu reformas estruturais. Dito isso, era de se esperar o
atual quadro em relação a uma reforma agrária brasileira?
João Pedro Stédile – Não, não era de se esperar,
embora programaticamente o PT tenha recuado. O que eu quis dizer com
isso é que o programa que o Lula defendeu na campanha presidencial de
2002 não foi o programa democrático e popular. O programa que ele defendeu foi
o de brecar o neoliberalismo. Assim, construiu um programa que, agora, a
posteriori, estamos chamando de neodesenvolvimentismo
e que está baseado em três pilares: 1) o crescimento econômico, ou seja,
gerar mais produção e emprego; 2) o Estado retomar o seu papel na
sociedade como indutor da economia e de criador de políticas públicas para os
pobres — porque os neoliberais deixavam tudo para o mercado; e 3)
distribuição de renda, que Lula fez com o aumento do salário mínimo e
com os benefícios da previdência. Esse foi o programa que ganhou. E, nesse
programa, não precisa fazer reforma agrária, não precisa tarifa zero, não
precisa universidade para todos. Eu acho que Lula foi honesto; não enganou
ninguém. Ele cumpriu o seu programa: a economia cresceu, o Estado retomou sua
atividade e houve início da distribuição de renda.
Problemas estruturais
Porém, ao longo desses 12 anos, os problemas
sociais estruturais se avolumaram: a reforma agrária parou, os
estudantes querem mais universidades (só 15% da juventude consegue entrar no
ensino superior), nas cidades falta moradia e aumentou a especulação
imobiliária, a saúde está um caos e precisaríamos criar uma nova política de
transporte público. Todas essas mudanças que estou citando agora precisam de
reformas estruturais.
O que isso significa? Que não adianta mais um
programa de agradar a todos, no qual todos vão ganhar. Não. Para pôr metrô e
transporte com qualidade e quantidade necessárias nas cidades, o Estado tem de
pegar dinheiro do capital financeiro; ou seja, os bancos têm de perder, porque
mesmo no neodesenvolvimentismo se manteve intacta a política de superávit
primário que destina de 30% a 40% de toda a arrecadação dos impostos para
pagar juros.
E sem mexer na taxa de juros e sem mexer no superávit primário,
não é possível fazer reforma estrutural. Como destrinchar esse bloqueio? Pela
via institucional ele continuará bloqueado, porque nem o Congresso quer,
nem os governos têm força — a própria Dilma queria, mas não teve força.
Para destrinchar isso, somente com mobilização de massa, para arrancar a
reforma política. Por isso, além de eleger os mais progressistas, temos que
impedir o Aécio, porque seu governo seria a volta do neoliberalismo.
Temos que, ao mesmo tempo, seguir as mobilizações de massa para que elas
alterem a correlação de forças na sociedade e produzam reformas estruturais,
começando pela reforma política.
“No ano
passado nós ocupamos dois ministérios. Qual foi o movimento social que ocupou
algum ministério?”
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IHU On-Line - Qual é a relevância da reforma
agrária para a redução da pobreza e da desigualdade social nos dias atuais, já
que a concentração de terra aumentou ao longo dos últimos anos?
João Pedro Stédile – A concentração da propriedade de
terra aumentou porque a ação do capital independe do governo. Então, quando se
compra uma fazenda, ninguém pede se o governo deixa ou não, se o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - Incra quer ou não. O capital tem uma lógica de
acumulação e vai concentrando. Nós somos vítimas desse processo. Com a crise
de 2008, vieram para o Brasil 200 bilhões de dólares de capital
fictício que foram aplicados só em recursos naturais. Esses 200 bilhões
compraram terras, usinas de etanol, usinas hidrelétricas, etc. A Nestlé
e a Coca-Cola compraram reservas de água no lençol freático. Isso
produziu uma enorme concentração da terra, da produção e da propriedade dos
recursos naturais no Brasil, fruto desse movimento do capital
internacional. Inclusive a burguesia brasileira perdeu dinheiro com isso. O
setor sucroalcooleiro (da cana), por exemplo, que afeta mais o estado de
São Paulo, era um setor típico da burguesia brasileira, inclusive até
familiar. Famílias eram donas da cana e das usinas. De 2008 para cá, a
avalanche de capital para controlar a cana-de-açúcar e o etanol foi tão grande
que hoje 58% de toda a produção brasileira de cana-de-açúcar e etanol é
controlada por três empresas multinacionais: a Bunge, a ADM e a Cagil;
se colocar mais a Shell Química, que tem um pouquinho de participação,
vai para 60% o controle sobre o etanol e a cana produzidos no Brasil. As
melhores terras de São Paulo estão hoje dedicadas à cana e sob o
controle dessas empresas.
Mas, voltando à questão da reforma agrária...
No capitalismo industrial, no século XX, a reforma agrária
cumpria um papel essencial de resolver um problema do campesinato, que era ter
acesso à terra e deixar de trabalhar para os outros. Com a reforma agrária, se
eliminava o arrendamento da terra, a renda da terra do grande proprietário.
Portanto, o camponês iria ter renda para ele, e com essa renda ele comprava
coisas da indústria, na cidade, e ativava a economia. Ou seja, a reforma
agrária clássica tinha um papel também de desenvolvimento do capitalismo
industrial e do mercado nacional. Ao mesmo tempo que, para o camponês,
resolvia o seu problema de sobrevivência, de subsistência da sua família, e o
integrava à sociedade. Porque ele, como sem terra, é um pária. Ele só é
espoliado, não tem direito a nada. Mas essa reforma agrária clássica não
se viabilizou no Brasil. Por quê? Porque a burguesia industrial não teve
interesse. A burguesia industrial brasileira é tão espoliadora que, em vez de
projetar um mercado nacional de massa para os seus produtos, preferiu bloquear
a reforma agrária e usar o campesinato como mão de obra barata, como o seu
exército reserva de mão de obra, e com isso garantir baixos salários aos
operários, aumentando seu lucro por aí!
"Nosso problema é a repressão ideológica que
os meios de comunicação fazem contra qualquer luta social"
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O que a burguesia industrial fez no Brasil
no século XX foi estimular o êxodo rural, para que essa massa viesse
para a grande cidade e pressionasse os salários para baixo. Por isso, não fez a
reforma agrária. O período mais próximo que tivemos de uma reforma agrária
clássica foi na crise do capitalismo industrial da década de 1960,
quando tínhamos um governo popular, o de João Goulart, formado por
ministros fantásticos como Celso Furtado e Darcy Ribeiro. Celso
Furtado propôs: "Presidente, para sairmos da crise do capitalismo
industrial, só uma reforma agrária, assim como os países do hemisfério Norte
fizeram". O presidente topou e o governo apresentou um projeto de reforma agrária que
foi fantástico, o melhor projeto de reforma agrária elaborado até hoje —
previa, inclusive, a desapropriação de todas as fazendas acima de 500 hectares.
Projeto proposto por Celso Furtado e João Goulart. Imagina se eu,
João Pedro, em nome do MST, propusesse isso hoje: desapropriação
de todas as fazendas acima de 500 hectares. A imprensa iria me chamar de louco,
comunista, comedor de criancinhas...
IHU On-Line - Naquela época o projeto era viável?
João Pedro Stédile - Naquela época era viável e
necessário. Tanto é que a burguesia se assustou, e qual foi a sua resposta? O golpe
militar. Aliaram-se aos Estados Unidos. Tiveram que barrar a manu
militari, à custa de vidas e toda esta repressão de 20 anos. O que mudou
hoje? O próprio capitalismo industrial não está mais no centro do
desenvolvimento capitalista. Portanto, nem sequer temos mais burguesia
industrial como burguesia específica. Agora nós temos uma burguesia que é
dominada pelo capital financeiro e que é dona de uma indústria, que é
dona de um comércio, que é dona de terras, etc. Não há mais uma burguesia
industrial típica, como foi gestada nos séculos XIX e XX.
Esta etapa do capitalismo criou para o campo
o modelo do agronegócio. No agronegócio não
precisa mais de camponês, nem sequer para o exército de mão de obra reserva,
porque na cidade eles não precisam mais ampliar o número de operários
industriais. O aumento da produtividade do trabalho, que o IHU
acompanha, como tenho visto nos debates, foi reduzindo inclusive a classe
trabalhadora industrial. Tanto é que quem migra hoje para as cidades vai cair
onde? No trabalho informal, no comércio, na venda ambulante, nos serviços em
geral. O trabalhador não vai mais à porta da fábrica pedir emprego, como a
minha geração. Então, nestas circunstâncias, mudou também o caráter daquela
reforma agrária do século XX. Agora a reforma agrária precisa ter outras
balizas, outros paradigmas. Claro, começando pela democratização da propriedade
da terra. Porque, sem ter posse real da terra, você não consegue produzir. A
terra é um fator de natureza imprescindível para você produzir na
agricultura, para você produzir riqueza.
Democratização da propriedade
Qualquer reforma agrária, de qualquer tipo, tem que
partir da democratização da propriedade da terra. Porém, não pode ficar nisso.
E o que há a mais? Agora a reforma agrária tem que ser planejada para
produzir alimentos. E aí é que entra o interesse de toda a população: alimentos
sadios e baratos. E isso só o campesinato pode produzir, porque o agronegócio
só produz com veneno. E o veneno no seu estômago algum dia vai virar câncer.
“O
período da Copa não é um período bom para você discutir um projeto para o
país”
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O Instituto Nacional do Câncer advertiu
agora mesmo, em fevereiro, que para este ano a previsão é de 546 mil novos
casos de câncer no Brasil. E eles, como cientistas da área, dizem:
"se a população descobrir que está com câncer cedo, nós vamos salvar 60%
destas pessoas". Mas 40% delas irão a óbito. E quais são os tipos de
câncer que estão mais proliferando: o câncer de mama e o câncer de próstata,
porque são as células mais frágeis, onde aqueles princípios ativos químicos dos
venenos agem. Então é aí que aparece a degradação do nosso organismo. É por
isso que hoje, ao ler os jornais, ou nas nossas famílias, notamos que o câncer
de mama aparece até nas meninas que nem menstruaram ainda.
Porque ele já não é resultado, digamos, da
degradação das células pela idade, que em geral afetava as pessoas mais idosas.
Agora não. A origem é outra, os alimentos contaminados.
Fazer uma reforma agrária apenas para
produzir alimentos sadios e salvar a população desta tragédia já seria um sucesso.
Mas, além disso, temos que adotar uma nova matriz tecnológica, a qual chamamos
de agroecologia, que é a produção na agricultura
em equilíbrio com a natureza. O Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE divulgou e o jornal O Estado de São Paulo
publicou que, dos 5,5 mil municípios brasileiros, 2.276 tiveram ocorrências de
tragédias naturais provocadas pelo homem, com graves consequências para toda
sua população. Isso vem de onde? Vem da monocultura, da destruição da
biodiversidade, realizada pelo agronegócio, que altera o clima. Nós temos que
voltar a produzir alimentos com agroecologia para que haja um equilíbrio na
natureza. Isso salva a cidade das tragédias anunciadas.
Outro parâmetro que nós temos adotado se refere à
própria agroindústria. Ela é necessária para conservarmos os alimentos,
mas nós temos que acabar com esse controle oligopólico de grandes grupos que
controlam todas as agroindústrias. A indústria do leite, por exemplo, é
controlada por três empresas: Nestlé, Parmalat e Danone.
As cooperativas de agricultores têm os preços definidos pelos grandes grupos. A
maior empresa nacional de leite, que é a Itaimbé, de Minas Gerais,
foi comprada agora pelo grupo Friboi, o que concentra ainda mais a
agroindústria. Nós poderíamos ter empresas de laticínios em todos os municípios
do Brasil na forma de cooperativas, controladas pelos trabalhadores.
Isso iria gerar renda, distribuir renda, iria equilibrar a nossa sociedade.
Reforma agrária popular
A reforma agrária de agora é de outro tipo.
É uma reforma agrária que nós chamamos popular, porque ela interessa a
todo o povo. Não é mais uma reforma agrária camponesa. Não é mais uma reforma agrária de
sem terras. Os sem terras queriam reforma agrária para quê? Para ter terra. Mas
ter terra não resolve o problema. Agora precisamos de uma reforma agrária mais
ampla, que interesse a todo o povo. E por que é difícil ela sair? Porque a
nossa forma de luta, de ocupar terras, de fazer marchas, era apropriada para
enfrentar e derrotar o latifúndio. Era suficiente como tática de luta para
conquistar a terra. Agora não.
Agora tu enfrentas uma Bunge, uma Monsanto,
a Aracruz. Quando nós fizemos aquela ação das mulheres, há cinco anos,
contra a Aracruz, veja o "massacre" que nós sofremos na
mídia. Porque a população na cidade ainda não tinha consciência de que o
eucalipto é um prejuízo também para a cidade. Nós pagamos sozinhos aquela
conta. E nós seguramos no peito. A nossa sorte é que Deus existe e que o
próprio capitalismo levou a Aracruz à falência. Aquele viveiro no qual
destruímos as mudas, hoje está fechado. Foi fechado pela própria contradição do
capital.
A reforma agrária popular vai ser
mais demorada, mais difícil, porque nós vamos ter que conscientizar a população
da cidade para que ela também se mobilize. É claro que a população da cidade não
precisa ir a uma ocupação de terra, mas ela pode ir para a frente de um
supermercado e dizer: "eu quero comida sadia, eu quero que coloquem no
rótulo do arroz se ele tem ou não veneno", para que a dona de casa que vai
comprar arroz saiba — "este arroz tem glifosato, herbicida" —
e possa decidir se quer comer o arroz com veneno, ou o arroz das cooperativas
da reforma agrária, que não tem veneno. A população da cidade vai ter
que se mobilizar em seu próprio interesse. E os caminhos podem ser esses, pelas
contradições do agronegócio, dos alimentos, das mudanças climáticas, do meio
ambiente, do emprego.
IHU On-Line - Como o senhor vê as mobilizações
contrárias à Copa?
João Pedro Stédile - É natural que os jovens e alguns
setores e categorias de trabalhadores aproveitem o evento da Copa para
alcançar a visibilidade que o oligopólio encabeçado pela Globo esconde.
Há fofocas por aí afirmando que até a Polícia Federal está ameaçando
fazer greve. E se eles fizerem, vai ser um caos. Bom, quando fazem greve fora
da Copa ninguém dá bola, então eles têm direito também, não é?! Há este
aspecto do evento e da visibilidade, que é justo, e as categorias e os setores
que quiserem lutar, acho que é apropriado.
Agora, a nossa reflexão como Movimento Sem Terra
e na plenária nacional de movimentos é que o período da Copa não vai
ainda nos ajudar a construir aquele programa unitário para debater o Brasil,
porque parte do povo brasileiro quer ver a Copa. Então a palavra de
ordem "não vai ter Copa" não consegue envolver todo o povo
brasileiro.
“85% do povo brasileiro é formado pela classe
trabalhadora, trabalha o dia todo para poder sobreviver”
|
IHU On-Line - Ao mesmo tempo em que se quer a Copa,
há toda uma mobilização contrária aos gastos feitos.
João Pedro Stédile – Claro. Temos todo o direito de
denunciar os maus gastos. Mas o período da Copa não é um período bom
para você discutir um projeto para o país, porque você não consegue unidade.
Então, nós estamos dizendo: "ótimo, quem quiser se mobilizar durante a
copa, que se mobilize". Mas nós temos que estimular um processo de
mobilização de massas antes da Copa e depois da Copa, porque é
isso que pode gerar a unidade necessária para um programa de reformas
estruturais. Porque, por mais radical que sejam os black blocs, a
única coisa que eles contestam é os gastos da Copa. O nosso problema, cá
entre nós, não é só os gastos da Copa. Não é esse o nosso principal problema.
Os R$ 8 bilhões que eles gastaram nos estádios corresponde a duas semanas de
juros que o Tesouro Nacional repassa para os bancos, do nosso dinheiro
recolhido nos impostos federais. E sobre os juros ninguém vai se mobilizar?
Ninguém vai querer ocupar o Tesouro Nacional? Esta política econômica não tem
futuro. Tem que mudar. O que eu temo é que estes temas não venham à tona nem na
campanha eleitoral.
IHU On-Line - Como o senhor se sente tendo militado
tantos anos por este projeto mais à esquerda, e agora se depara com todas estas
contradições, no sentido de não serem vislumbradas mudanças significativas?
João Pedro Stédile - É preciso ter uma visão
histórica dos processos. Pelo menos dentro do MST e, vamos dizer assim,
da nossa formação ideológica, nós sempre defendemos, comungamos e propagamos
que as únicas mudanças possíveis ocorrem a partir da organização do povo, da
luta e da mobilização de massas. Nunca o MST e os movimentos sociais
colocaram a via institucional como o único caminho. A via institucional faz
parte da luta, mas não pode ser a única luta. O erro que o PT fez foi
ficar só nisso. E essa crítica nós temos em relação ao PT e a todos os
partidos, inclusive o PSOL. Quando o PSOL chega lá ele faz a
mesma coisa, porque é da natureza, é da liturgia do cargo.
Os militantes que não têm esta clareza, de que as
mudanças são conquistadas só pela luta de massas, só pelo povo organizado, caem
nestes desvios. Quem entrar lá [no governo] e abandonar isso, vai achar
que toda a crítica é para derrubar [o governo]. E eles nos criticam:
"Vocês falam mal do governo Dilma, vão puxar votos para o Aécio".
Não estou preocupado com isso. É minha obrigação fazer críticas aos erros do
governo. E isso não necessariamente é puxar voto para a direita. O pior dos
mundos para a esquerda é evitar a politização. O que salva a esquerda é a
politização do povo, para que ele tenha clareza da luta de classes.
O Ponto da curva
Por outro lado, e vivemos repetindo isso porque
este debate está ausente da academia, a escola de pesquisadores britânicos
marxistas — que se baseiam em Marx, Lenin e em todos os
pensadores clássicos — interpreta que a luta de classes nos países capitalistas
aparece na forma de ondas. Há momentos em que tu tomas a iniciativa, há
momentos em que há disputa, como foi o caso em 1964 e em 1989, e há momentos de
refluxo. Como militante social e dirigente, é preciso identificar, no
calendário que estamos vivendo, em que ponto da curvinha tu estás. Senão tu
erras. Nós estamos aqui, neste baixo astral, no refluxo do movimento de massas,
e aí vem o PSTU dizer que não, que nós estamos no ascenso do movimento
de massas, que agora vai. Menos, não é?! Será que o povo brasileiro está
lutando? Só porque aconteceu uma greve dos garis, que foi importante e
vitoriosa, isso já é o ascenso [dos movimentos de trabalhadores]? É
óbvio que não. Enquanto os garis estavam fazendo greve, havia dois milhões de
foliões nas ruas, festejando — e 12 mil trabalhadores em greve. Essa é a
sociedade brasileira.
“Só
porque aconteceu uma greve dos garis, que foi importante e vitoriosa, isso já
é o ascenso [dos movimentos de trabalhadores]? É óbvio que não.”
|
Nós temos que ter elementos científicos para
entender qual etapa nós estamos vivenciando da luta de classes, para não
utilizar critérios idealistas. Porque o idealismo é exatamente o que Marx
combatia. O idealismo é só uma expressão da vontade pessoal, "eu quero que
o governo seja socialista", e não das forças reais que a sociedade coloca.
O socialismo que nós sonhamos, as mudanças sociais que nós sonhamos, não
dependem da nossa vontade, dependem da capacidade da classe trabalhadora se
organizar, lutar e querer. Nós só temos que interpretar em que parte nós
estamos. Às vezes a classe quer, às vezes não quer, e fica em casa lutando pela
sobrevivência.
IHU On-Line - A nova classe média em ascensão terá
influência sobre os rumos do país?
João Pedro Stédile - Não existe uma nova classe média
no Brasil. A classe média no Brasil é a mesma de antes do
governo Lula. São aqueles 8% a 10% bem caracterizados, pela renda, pela
ideologia e pela cultura que eles têm. No máximo 10% são classe média no Brasil.
E outros 5% são a burguesia — Marcio Pochmann, em
uma pesquisa fantástica publicada em livro, identificou inclusive o município
onde moram os 5% de burgueses. Mas 85% do povo brasileiro é formado pela classe
trabalhadora, trabalha o dia todo para poder sobreviver. Essa classe
trabalhadora, do ponto de vista ideológico, foi cooptada pelo neoliberalismo,
abandonou as ideias de mudanças? Eu tenho dúvidas. André Singer faz uma
leitura de que esta classe trabalhadora está dividida em três partes: um terço
está organizado em sindicatos, é filiado a partidos e não abandonou o projeto
socialista de mudanças; um terço foi ideologicamente cooptado pelo viés do
consumismo, ganha R$ 1,3 mil por mês, acha que é classe média, vota na direita
— estes eram, por exemplo, os votos do Gilberto Kassab em São
Paulo — e não quer mudanças; e tem um terço, bem no meio, que André
Singer diz que é um eleitorado flutuante, que se guia pelo modismo e é
muito influenciado pela mídia burguesa. Este um terço restante pode ir para a
Dilma Rousseff, pode ir para Eduardo Campos, pode ir para Aécio
Neves. Por isso, as eleições não estão decididas, porque tem um terço que
não tem ideologia, não está organizado, que flutua. É aquele que fica repetindo
o que a televisão diz — e que pode votar pelo modismo, pelo senso comum.
(Por Patricia Fachin e Luciano Gallas)
http://www.ihu.unisinos.br
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