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domingo, 11 de maio de 2014

Manuel Castells - dignidade: o direito a ser e a decidir quem se é

A revolta ucraniana contra o governo está sendo interpretada como um movimento nacionalista pró-europeu e anti-russo, alimentada por uma situação econômica insustentável. Há algo disso, mas não é o essencial. Em parte porque os protestos não se limitam a Kiev, mas, além da atenção da mídia global, se espalha para outras 29 cidades, algumas delas no leste.

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Mas o que os próprios manifestantes dizem é que esta é uma luta pela dignidade.

Para seus direitos como cidadãos e como pessoas que são atingidas por manipulação política e a corrupção generalizada nas instituições e na polícia. Não só do governo, mas uma grande parte de diferentes tendências políticas.

O que é significativo é que se repete na Ucrânia a mesma palavra simbólica utilizada durante três anos pelos movimentos sociais que surgiram ao redor do mundo: dignidade.

As revoluções árabes aumentaram a partir do coração do povo, para defender a sua dignidade. Os indignados espanhóis se indignaram contra a indignidade. Quando em junho passado em São Paulo os políticos reprovaram aos jovens a diminuição de alguns centavos no preço do transporte, eles disseram: "Não se trata de centavos, mas dos nossos direitos, da nossa dignidade". Como os estudantes chilenos cujas exigências (a presidente Bachelet diz aceitar) vão além da educação. E os manifestantes turcos do Gezi Park, que ganharam a anulação do projeto de desenvolvimento, afirmam que este é apenas o início de uma luta pela dignidade, pisoteado por um governo que se esconde por trás das eleições por não cumprir suas promessas, como  se decompõe a vida cotidiana sob a corrupção institucional.

Essa mesma palavra é repetida de forma espontânea, sem acordo prévio entre os movimentos que se expandem globalmente, não pode ser coincidência.

Responde à raiz emocional que une todos esses protestos em diferentes contextos e com diferentes reivindicações. É a ferida da humilhação pessoal diária que torna-se insuportável. Por que se generaliza no planeta neste momento? Lembremos que em 1999 propôs Amartya Sen redefinir o desenvolvimento como a dignidade humana, e seu ponto de vista tem recebido cada vez mais aceitação entre aqueles que tentam superar a empobrecedora assimilação de desenvolvimento a crescimento econômico. Daí a importância atribuída às instituições internacionais para o desenvolvimento humano como um complemento vital para o crescimento econômico.

Mas a perspectiva de Sen e outros analistas de desenvolvimento não apenas sobre melhorias na educação, saúde, habitação e condições de vida da população. Tais melhorias são consideradas essenciais para proporcionar às pessoas as habilidades que eles precisam, a fim de decidir a própria vida com uma fisicamente possível autonomia.

Mas o objetivo do desenvolvimento pleno é dar a possibilidade aos humanos de serem isso, humanos. Daí a afirmação dos direitos humanos como um objetivo universal que todos os que pertencem a nossa espécie estão intrinsecamente envolvidos de forma indissolúvel e coletiva.

Negar os direitos humanos para o outro é negar a nós mesmos. E isso é de fome à tortura, desde o respeito às crianças à igualdade das mulheres, a partir da defesa da identidade de nossa cultura com a solidariedade com a identidade do outro. Para que o desenvolvimento humano é tanto o crescimento da riqueza, a sustentabilidade ecológica (sem a qual nenhum desenvolvimento, porque não há vida humana no planeta), a redistribuição de riqueza na forma de serviços básicos para as pessoas e para o pleno respeito humano, ou seja, o direito de ser humano, em todos os direitos de dimensão.

Mas há mais: a autonomia das pessoas para decidir, individual e coletivamente, a proteção dos direitos humanos, ou seja, o direito de decidir. Se o direito de decidir for confiscado pelas instituições políticas representativas e organizações econômicas, a invocação ritual dos direitos humanos ficam sem sentido. Quando isso acontece, as pessoas tendem a recorrer a um princípio moral e ético que vai além do que está escrito nas regras e se impõe desde as instituições.

Esse princípio é a dignidade do homem, a ideia de que por sermos humanos temos o direito de sermos. Direitos que não nos são concedidos, eles são nossos.

E isso deve ser respeitado acima de conveniência política ou racionalidades econômicas. Quando os laços emocionais se rompem entre aqueles que governam a sociedade e aqueles que produzem a sociedade com suas vidas, então, a dignidade é o valor mais alto em nome do qual é legítimo reconstruir o processo de delegação de responsabilidade que foi construído para viver, mas que nunca deve esquecer sua raiz.

Os manifestantes do Basta! de vários confins do mundo têm em comum a desconfiança nas instituições, e naqueles que as controlam no momento em que a emoção transborda.

E a raiva contra a brutalidade policial com a qual se tenta esmagar qualquer proposta que não seja como prescrito por umas elites auto-fechadas. E, como os manifestantes não se movem por ideologia, mas por indignação e esperança de que tudo é possível, não têm  bandeira mais comum do que a plantada em seu ser.

Isso é a dignidade:  o direito a ser e a decidir quem se é.

Como se trata de um argumento que não é consistente com as teorias tradicionais polidas da democracia liberal e não há nenhuma maneira de quantificar em modelos de gestão macroeconômica, não são levadas em conta por aqueles que mandam e ordenam. Esperando a tempestade passar, uma e outra vez, em um ou outro país.

Acontece, porém, que as sociedades contemporâneas são muito mais educadas, informadas e notificadas do que nunca antes na história. E assim eles formam vários rios que levam a um novo oceano desconhecido.

Manuel Castells. Publicado em: La Vanguardia

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