‘O Capital no século XXI’: A esquerda abandonou a luta pela igualdade - Blog A CRÍTICA

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sexta-feira, 16 de maio de 2014

‘O Capital no século XXI’: A esquerda abandonou a luta pela igualdade

A problemática das desigualdades retoma o tema da esquerda, relação essa que se esfumaçou. A esquerda esqueceu-se – ou, talvez, seja melhor dizer abandonou (conscientemente) – a luta pela igualdade. De acordo com o pensador político italiano Norberto Bobbio, um dos elementos que distingue a esquerda da direita é justamente o lugar e a importância concedidos à igualdade.

Mas, nas últimas décadas – marcadas por uma nova revolução tecnológica, pela emergência da economia financeira, que resultou na globalização hegemonizada pelo mercado e, concomitantemente, no fim dos grandes discursos interpretativos e na crise da esquerda em todo o mundo – assistiu-se a um lento e progressivo retorno das desigualdades econômicas e sociais. A esquerda historicamente fez da luta pela igualdade uma das suas principais bandeiras. Entretanto, abandonando sua ousadia e criatividade, ou rendendo-se à realpolitik na medida em que a política passou a estar cada vez mais próxima da gerência empresarial, a esquerda foi se descaracterizando a ponto de alguns se perguntarem se a distinção entre direita e esquerda ainda fazia sentido ou se não se tornara “anacrônica”.

Bobbio, por sua vez, nunca concordou e, por isso mesmo, sempre insistiu na distinção. E, para ele, o núcleo por excelência da distinção não está na liberdade, mas na igualdade. Isso porque, enquanto a direita tende a ser não-igualitária e a propor ou promover políticas que efetivamente tornam os cidadãos menos iguais, a esquerda tem a igualdade como sua estrela polar e procura promover políticas que contrastem com as desigualdades. Com outras palavras, enquanto o partidário da esquerda acredita que os homens são mais iguais do que desiguais e que a maioria das desigualdades são sociais e, portanto, elimináveis, o partidário da direita acredita, ao contrário, que os homens são mais desiguais do que iguais, e que a maioria das desigualdades é natural e ineliminável.

É essa verdade elementar que foi esquecida ou abandonada pela esquerda no mundo e no Brasil. Engolida pelos cantos de sereia do mercado e da mercantilização inclusive da política – quando os políticos se tornam gestores – a esquerda tem “medo de dizer seu nome”, como diz o filósofo brasileiro Vladimir Safatle. Neste contexto, ele avalia criticamente as conquistas dos governos Lula e Dilma, como governos, em teoria de esquerda, mas que pararam “de pensar a desigualdade como o problema central da sociedade brasileira”.

Orlando Alves dos Santos Jr., por sua vez, refletindo sobre o “legado oculto” do modelo de desenvolvimento no Brasil, evidencia como a “racionalidade do mercado” está se sobrepondo à da “justiça social”. Um parágrafo relativamente longo ajuda a explicitar esta ideia e iluminar a perspectiva de uma esquerda mais preocupada em fazer o bolo crescer, do que em dividi-lo.

Diz Orlando em sua entrevista especial à IHU On-line: “Nessa conjuntura, ganha força no senso comum a ideia de que as cidades teriam um papel protagonista no desenvolvimento econômico. Daí o processo de o poder público começar a atuar como uma empresa. Isso é fortemente aceito nesta ideologia na qual estamos inseridos, na qual os governos devem investir em áreas que são capazes de atrair investidores e recursos, assim como incorporar os princípios de competitividade entre as cidades. Com isso se vão adotando os critérios do mercado. Não se trata de que o desenvolvimento econômico estivesse ausente das agendas dos municípios, mas, antes, a ideia era de que o papel dos governos consistia em promover o bem-estar social e atuar nos desequilíbrios gerados pele mercado, ou seja, diferente do papel de mercado. A preocupação central do antigo padrão era o conjunto, a totalidade. No novo padrão o que há de importância são os locais possíveis de atrair investimentos. Isso é o que chamamos de neoliberalização, e isso tem a ver com as moderações de forças, com os acordos e os conflitos em cada localidade em que isso vai ser mais ou menos aceito. A ideia de desenvolvimento está fortemente vinculada à ideia do econômico vinculado às lógicas de mercado. Uma perspectiva crítica deveria se opor a essa noção a partir da ideia de justiça social, do desenvolvimento humano”. Uma explicitação da tese abordada em uma Conjuntura da Semana anterior, ou seja, a de que o Brasil não se libertou do economicismo.

Também o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira constata, em artigo, o deserto de ideias novas e criativas na atual conjuntura brasileira (aliás, a mesma constatação de Safatle). “Hoje, falta aos brasileiros tanto projeto de desenvolvimento quanto projeto de distribuição. Teremos eleições no final do ano, mas os candidatos não têm projetos. Na verdade, nunca a sociedade brasileira foi tão dividida politicamente entre ricos e pobres, e falta à nação um projeto – sobra o mal-estar”, analisa. Mais grave ainda, aponta Bresser-Pereira nas entrelinhas, é que esse projeto foi abandonado por toda a sociedade brasileira – e não apenas pela esquerda, embora ela tenha a missão de manter a pira da igualdade sempre acesa.

Os debates sobre as desigualdades assumiram, com frequência, um viés de direita, servindo para acentuá-las, em vez de atenuá-las.

Vê-se, assim, que o livro de Thomas Piketty tem o mérito de jogar nova luz sobre uma problemática crucial para o mundo hoje e redireciona os debates econômico-políticos. Além disso, tem o mérito de recuperar uma bandeira característica da esquerda – a luta contra as desigualdades sociais que, de acordo com Pierre Rosanvallon, se mundializaram. E, portanto, diz respeito a todas as sociedades indistintamente.

PT abandou a ‘bandeira’ da taxação dos mais ricos

Um aspecto interessante da obra de Piketty, mencionado anteriormente, é o de desafiar a narrativa de centro-esquerda, particularmente da social-democracia que acreditou que o liberalismo poderia coexistir com a distribuição de renda. A ideia do “iate do oligarca coexistindo com o banco de alimentos para todo o sempre”, em síntese de Paul Krugman sobre o Piketty.

É por isso que a esquerda fracassou na Europa e também a pretensa esquerda dos democratas americanos. Elas jamais se atreveram em alterar a dinâmica concentradora de renda.

Com a esquerda latino-americana, particularmente a brasileira, se deu o mesmo. A chegada da esquerda no poder no Brasil não alterou a dinâmica concentradora de renda dos mais ricos. O que se assistiu e ainda se assiste é que os que sempre ganharam muito continuam ganhando.

O PT abandonou as ‘bandeiras’ de taxação dos mais ricos. Recuou na auditoria da dívida externa – um ralo que absorve quase metade do orçamento para o pagamento dos encargos da dívida, disse não à taxação do capital financeiro na reunião da cúpula do G20 em Toronto, em 2010, nunca esboçou sequer um projeto – proposta que historicamente defendia – de taxação da riqueza e da herança patrimonial e não ousou numa reforma tributária progressiva de tirar dos mais ricos para transferir para os mais pobres.

O PT fracassou rotundamente num projeto de afrontar a escandalosa renda dos mais ricos.

A taxação dos fluxos financeiros internacionais – a chamada Taxa Tobin – uma bandeira histórica de diversos movimentos internacionais, como a ATTAC – Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos – chegou a constar no item 54 do próprio “Programa de Governo Lula 2002″, denominado “Concepção e Diretrizes para o Governo do PT para o Brasil” e depois sumiu. O PT também já defendeu que os paraísos fiscais fossem taxados internacionalmente, a fim de combater a evasão de divisas e abastecer fundos de cunho social. Também, nunca mais falou disso.

O programa anti-capitalista do PT foi abandonado. Na crise econômica mundial de 2008, Lula chegou até a criar um Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional – PROER – para ajudar os banqueiros.

A esquerda acabou sendo seduzida pela economia liberal e de certa forma rendeu-se ao pensamento único propalado pelo capitalismo global, cuja ascensão apresentou-se como um destino contra o qual não se podia lutar – a tese de que deveríamos nos adaptar a ele ou perderíamos o passo da história e seríamos esmagados.

A única coisa que se podia fazer era tornar o capitalismo global o mais humano possível. “A esquerda passou a fazer coisas que até mesmo a direita não foi capaz”, afirma Slavoj Zizek.

A penúria da esquerda talvez encontre uma explicação na aguda intuição de Zizek, a de que o próprio neoliberalismo foi legitimado por determinada esquerda. Segundo ele, “no Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis, porém, foi Tony Blair quem conseguiu institucionalizá-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blair quem realmente deu forma ao thatcherismo”, afirma.

O mesmo aconteceu, com matizes diferenciados, nos EUA. Foi Clinton – um democrata com ares de esquerda – quem legitimou a ‘Era Reagan’, ou seja, o ‘Consenso de Washington’ e os valores neoliberais. O mesmo aconteceu com Miterrand na França, com Massimo D`Alema na Itália, para ficar em poucos países. O Norte do hemisfério foi engolido pelo ‘pensamento único’. Mas quem o legitimou, sobretudo, foi aqueles que se diziam de esquerda.

O mesmo de certa forma aconteceu no Brasil. Quem abriu as portas para a entrada do neoliberalismo no país foi primeiro Collor e depois Fernando Henrique Cardoso, mas quem o habilitou como política de Estado foi Lula com o seu programa ‘Pós-Consenso de Washington’. Apenas no segundo mandato Lula assumiu um programa keynesiano, porém, optou por políticas sociais compensatórias – o sucesso, do programa Bolsa Família, perfeitamente compatível com os princípios neoliberais de raiz economicista.

Na opinião de Vladimir Safatle, a experiência de poder do PT é frustrante: “Para qualquer partido de esquerda o problema central vai ser sempre a desigualdade social, econômica e de direitos. E, de fato, num primeiro momento, esse foi o problema que apareceu como foco central do PT. Só que esse problema está cada vez mais difícil de ser encontrado como prioridade do governo. Falta um novo ciclo de políticas de combate à desigualdade. Esse é um sintoma da mortificação política. Do ponto de vista intelectual, temos a estabilidade do cemitério. Por isso, diria que a função deste ciclo terminou”.

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Esta análise contou também com a contribuição de André Langer, professor na Faculdade Vicentina – FAVI. de Curitiba-PR.

EcoDebate, 16/05/2014 - publicado pela IHU On-line

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