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quarta-feira, 11 de junho de 2014

Masculinidades feministas: Um homem feminista não é um herói

O feminismo é em primeiro lugar uma luta pelos interesses das mulheres, no entanto as suas implicações são mais vastas e mais libertadoras. "O que é um homem feminista" é uma questão que remete principalmente para: o que é um homem?

Por Bruno Góis

Um homem feminista não é um herói, é apenas alguém que abraçou uma das maiores causas da transformação da sociedade. A adesão à crítica teórica e prática da sociedade patriarcal modifica aquilo que somos e como nos relacionamos com as demais pessoas. O feminismo é em primeiro lugar uma luta pelos interesses das mulheres, no entanto as suas implicações são mais vastas e mais libertadoras. "O que é um homem feminista" é uma questão que remete principalmente para: o que é um homem?
Desafiei para escreverem sobre masculinidades feministas alguns amigos, com diferentes experiências e condições, que partilham comigo o fato de serem homens e de serem ativistas do feminismo1. Este tema, no meu entender, não é central nem prioritário, mas aos homens feministas e aos que o possam vir a ser: diz muito.
Para cumprir a minha parte, identifico-me: sou um homem feminista, cisgênero, numa relação heterossexual e monogâmica. Duvidando da expressão "privilegiado", reconheço que juntando o fato de ser branco, só me faltava não ser da classe trabalhadora, mas da exploradora, e ter outras opções ideológicas para ser da casta dominante em todos os sentidos.
O meu feminismo nasceu da prática. Fui criado, a partir dos 7 anos, numa família monoparental: apenas a minha mãe e eu. Ela trabalhou sempre muito e fez muitos sacrifícios por mim. Para mim sempre foi natural a gradual partilha de tarefas domésticas e outras à medida que a idade o permitia. Como não reconhecer na minha mãe, nas minhas colegas de escola ou outras mulheres: pessoas com a mesma dignidade e os mesmos direitos e deveres que eu?
Nunca achei que me competia ser 'como os rapazes devem ser', não tinha de ser igual a ninguém. Não ter de me encaixar nos estereótipos do "rapaz-típico" sempre foi para mim libertador. Salvo o cabelo comprido que usei durante 10 anos ou a tendência para ter mais amigas que amigos, mais nada transparecia de "anõmalo". Mas isto é apenas uma experiência particular que pouco diz sobre o que é ou pode ser um homem feminista. Nada disso tem de se repetir ou ser padrão de uma masculinidade feminista. O ponto era que questionava, e questiono, no pensamento e na ação o que é ser homem.
Talvez o melhor referente da masculinidade feminista seja o homem trans. Não por ser um homem que nasceu com uma vulva, mas por a masculinidade e o seu reconhecimento ser algo que é importante para ele de um ponto de vista claramente emancipatório.
Na verdade, esta questão e toda a controvérsia à volta da identidade de gênero emancipada/emancipatória costuma ser mais evidente quando estamos a falar de mulheres trans. No caso delas, vítimas da trans-misoginia, até de dentro dos movimentos progressistas pode surgir o questionamento ou ataque de "reforçarem os estereótipos" quando assumem características atribuídas ao gênero feminino pela cultura dominante. Quando a questão deveria ser inversa, não é porque é que uma mulher trans se há-de pintar e usar saias e vestidos, ou depilar-se. A questão é: porque é que eu, homem cis, não o faço? Quando os homens assumem que essa questão também lhes pode ser aplicada, o peso do estereótipo sobre eles e as mulheres, cis ou trans, não se desvanece mas ao menos alivia.
Os gêneros são múltiplos e de muitos matizes, a questão intergênero não pode ser deixada de fora. Quanto mais mundo ao longo da história e da geografia vamos percorrendo, mais o constatamos. Há linhas fundamentais que formam a base mas não são tudo: a primitiva divisão sexual do trabalho, a instituição e o reforço do patriarcado com o surgimento da propriedade privada e das várias sociedades divididas em classes. A imensa maioria de mulheres que somam e multiplicam sobre si opressões e explorações deve ser para a identidade política feminista uma linha de fundo. Nem todos os feminismos concordarão, mas assumo esta abordagem como feminista marxista.
Identificar estratégias e prioridades na política feminista não deve significar invisibilizar. Em cada luta identificar o potencial máximo de alianças para avançar. Mas nunca deixar ninguém para trás. Algumas das nossas causas juntam apenas pequenas minorias e/ou são, aparentemente e no imediato, apenas no interesse de pequenas minorias. Nada deve ficar para trás. Questionar tudo.
Discutir as masculinidades feministas é uma dessas coisas que não é prioritária para o movimento feminista, mas que deve ser feita. As campanhas contra a violência no namoro, cuja principal determinação é a violência de gênero, teriam a ganhar com um tal debate que levasse à luta ideológica e à prática social as masculinidades feministas. É um exemplo prático.
A crítica da família patriarcal, da heteronormatividade e, ainda, da mononormatividade implica um questionamento das nossas próprias vidas, particularmente para homens que estejam ou sejam percepcionados dentro da norma. As razões das nossas sexualidades e identidades de gênero são profundamente sociais e são historicamente situadas. Mas não existe nem humanidade fora da história social, nem marca branca tipo "ser humano emancipado 3000". A crítica das estruturas sociais opressivas não nos deve empurrar para o niilismo, mas antes libertar o potencial da diversidade humana.
O ser humano cria-se a si próprio. Desde que o trabalho lhe permitiu iniciar um longo percurso de afastamento das barreiras naturais, que as limitações e os potenciais biologicamente dados a animal humano são refundados na esfera social: erguendo um mundo novo sob a base genética do homo sapiens sapiens. Isto para voltar ao ponto de que a nossa sexualidade não é natural. Ou que o sexo é tão 'natural' quanto beber uma taça de vinho ou comer um bom queijo, porque as necessidades biológicas que estão na base desses atos são mais pretexto que razão. As verdadeiras necessidades, desejos e liberdades que importam na mesa e na cama e vice-versa, ainda que haja outras determinações, são determinadas principalmente pela vida social.
No que me toca estou confortável com a minha relação heterossexual e monogâmica, tenho até o romantismo e a determinação de querer que seja para sempre. 'A prática é o critério da verdade' já dizia um certo revolucionário. E mesmo para pessoas que estão nesta mesma condição que eu, ser feminista e crítico daquelas normatividades é profundamente libertador.
Por um lado, a consciência dos vários favorecimentos sociais que temos pela simples razão de o sermos conduz os homens feministas a terem de lutar contra isso e contra a sua característica intrínseca, nesta sociedade, de potenciais opressores. Isto porque o enraizamento cultural da opressão patriarcal pode submeter de forma que nos é invisível as mulheres à nossa opressão. A vigilância dos nossos próprios atos é uma necessidade.
Por outro lado, o quebrar das normatividades hetero e mono liberta as identidades e as vivências todas para serem mais verdadeiras, para que as pessoas estejam com quem querem estar, de forma livre e consensual. Não porque interesse ao poder do Estado ou à acumulação da propriedade privada, cujas forças sempre se entrelaçam com as malhas conservadoras que aprisionam a sociedade. Mas por ser fruto da liberdade e das histórias dos encontros, desencontros e reencontros da vida.
A construção das masculinidades feministas contra a sociedade patriarcal é um desafio que nos cumpre. Este texto é apenas uma pequena peça.
Artigo publicado em acomuna.net

Bruno Góis
Mestre em Relações Internacionais. Diretor da revista "A Comuna"

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