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sexta-feira, 13 de junho de 2014

Vicenç Navarro: A farsa das explicacões neoliberais da crise atual

Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Dominio Público” no diário PÚBLICO da Espanha

Uma constante na explicação da atual crise econômica e financeira que tem afetado muito acentuada países periféricos da Zona Euro (GIPS, Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha) é a que atribui esta situação a que os trabalhadores desses países recebem salários muito altos, trabalham muito pouco, recebem muitos benefícios, têm proteção social excessiva e aposentam-se cedo demais. Esta percepção dos países GIPS, promovida pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e  Comissão Europeia) e pelos governos de caráter conservador, democrata-cristão, liberal e sociais-liberais  que dominam a governança da zona do euro, atingiu o categoria de dogma. Na verdade, essa percepção vem de longe, e foi a motivação para o Banco Central Europeu, sob pressão do Banco Central alemão, forçar a adoção dos critérios de Maastricht, como condição de adesão ao euro: um déficit de não mais do que 3% do PIB e a dívida pública não superior a 60% do PIB (ver el libro de John F. Weeks, Economics of the 1%, 2014, p. 175). A intenção destas condições é disciplinar esses países e evitar o excesso de gastos resultantes de um comportamento irresponsável, evitando assim que gastem mais do que t~em. Escusado será dizer que estas regras de Maastricht aplicada a todos os países da zona euro, mas, desde o início, pensava-se nos países GIPS como necessitando de uma maior disciplina fiscal, considerando-os muito desperdiçadores. 
As falsidades do establishment neoliberal europeu
O que é notável é que cada um destes pressupostos é falso, como é evidente através dos dados. Vamos ver. Todos esses países GIPS tiveram, antes da crise, proteção social e gasto público social abaixo (não acima) da média da União Europeia dos Quinze (UE-15), o grupo de países mais ricos da União Europeia, a que pertencem. O país que tinha maior despesa pública com  proteção social na zona do euro era a Alemanha. Todos os países GIPS (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha) tinham quando a zona euro foi criado, e continuam a ter, média muito abaixo da alemã e bem abaixo da UE-15, o gasto social público. Da mesma forma, a idade de aposentadoria nestes países (em 2010) era idêntica, não menos, do que os homens na Alemanha e na França, exceto na Grécia, onde eles poderiam se aposentar aos 60 anos de idade.

A mesma falsidade é dada em termos do número de horas trabalhadas por trabalhador. Na verdade, em todos esses países se trabalha mais horas por trabalhador por ano do que na Alemanha, onde o trabalhador grego é o que trabalha mais horas (2038 horas por ano, mais de 40 horas por semana), 43% a mais do que o trabalhador alemão.

Quanto à irresponsabilidade excessivo dos dirigentes governamentais que gastaram mais do que tinham, gerando enormes déficits e dívidas, os dados também mostram a falácia dessa suposição. O Estado espanhol estava em superávit, sem déficit e a dívida pública era menor do que a média da UE-15, incluindo a Alemanha. A Grécia foi o país que teve déficits e dívida pública mais elevada (80% do PIB em 2007). Mas a Irlanda tinha, como a Espanha, um superávit em suas contas do Estado, enquanto o déficit na Grécia foi de apenas 3 pontos acima da do PIB da Alemanha, o que não era exagerado.

A situação das contas públicas nesses países não pode ser apresentada como uma das causas da crise. O famoso dito de que esses estados dos países GIPS gastavam mais do que tinham, desperdiçando de recursos não é sustentável. Os que contribuíram para a crise e um notável aumento do défice e da dívida pública, foram os enormes resgates a bancos e a  redução das receitas para o Estado, tendo como resultado, este último, o abrandamento do crescimento econômico causado pela menor demanda, resultado do declínio dos salários e redução dos gastos públicos, todas as políticas de austeridade impostas pela Troika. Aí estão as causas, silenciadas nos maiores meios de informação e persuasão.
O  que se cala ou se oculta
Por que as políticas neoliberais, com cortes nos gastos públicos e cortes de salários, foram promovidas e continuam a ser promovidas na zona euro? A resposta é extremamente clara, mesmo que você, leitor, não leia nos principais jornais ou veja-as na televisão. A crise que tem prejudicado muito as classes populares dos países GIPS foi programada para aumentar os benefícios do sistema financeiro-bancário e, mais particularmente, do sistema bancário alemão e também do setor exportador alemão. Tome nota de que o leitor não fala alemão, mas as elites financeiras, midiáticas, econômicas e políticas dominantes na Alemanha, não se entende o que está acontecendo na zona do euro sem compreender a aliança estabelecida entre estes componentes das classes dominante em cada país e do sistema de governança da zona do euro, incluindo a Troika. Estas elites estão impondo um sacrifício enorme (com redução de salários e gastos sociais) para as classes populares, incluindo a alemã, coisa que tem sido facilitada pelo domínio que essas elites têm sobre a concepção e promoção de políticas públicas na zona do euro.

De fato, a redução do poder de compra da classe trabalhadora alemã (resultado das reformas Schröder e Merkel) disparou as exportações do país, criando um enorme superávit na balança de pagamentos, por causa de a balanças serem negativas nos países GIPS, forçando que os salários destes países sejam reduzidos para competir com a Alemanha e a aumentar as exportações e, assim, reduzir o seu saldo negativo. Durante o período de 2008-2010 a Alemanha alcançou um superávit de 523 bilhões de euros, enquanto o GIPS teve um déficit de 623 bilhões de euros. Este enorme desequilíbrio é o que criou a sensação de que o euro estava em perigo (percepção que, por sinal, estava errada, porque o euro nunca esteve em perigo). Aqueles que se estavam em perigo, e continuam a estar, são as massas dos países GIPS, como resultado das políticas públicas do governo Merkel (consistindo de baixas salariais e subsídios para os exportadores e o capital), favorecendo os interesses de grupos econômicos e  financeiros. É a vitória de 1% (a população mais abastada que gera sua renda da propriedade e exportador de capital financeiro) sobre todos os outros. Se você vai para a Alemanha e ler a mídia mais influente (todos controlados por 1% mais rico da Alemanha), que irão apresentar a crise como resultado da preguiça das classes trabalhadoras no sul. Eles tentam ver que o trabalhador alemão tem o trabalhador do Sul como seu inimigo. O nacionalismo tenta mobilizar as pessoas para ver os seus interesses ligados aos interesses do 1%. Seu temor é que as classes populares na Eurozona e aliem e rompam o seu domínio e controle. Com isso se iniciaria a Europa dos povos, o que seria uma contradição e alternativa clara à Europa da hegemonia do capital financeiro, que é a Europa de hoje. Tão claro.

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