Sertão: O Mundo de Ariano Suassuna - Blog A CRÍTICA

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." (Millôr Fernandes)

Últimas

Post Top Ad

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Sertão: O Mundo de Ariano Suassuna




Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa (PB), em 16 de junho de 1927, filho de Cássia Villar e João Suassuna. No ano seguinte, seu pai deixa o governo da Paraíba e a família passa a morar no sertão, na Fazenda Acauhan.

Com a Revolução de 30, seu pai foi assassinado por motivos políticos no Rio de Janeiro e a família mudou-se para Taperoá, onde morou de 1933 a 1937. Nessa cidade, Ariano fez seus primeiros estudos e assistiu pela primeira vez a uma peça de mamulengos e a um desafio de viola, cujo caráter de “improvisação” seria uma das marcas registradas também da sua produção teatral.

A partir de 1942 passou a viver no Recife, onde terminou, em 1945, os estudos secundários no Ginásio Pernambucano e no Colégio Osvaldo Cruz. No ano seguinte iniciou a Faculdade de Direito, onde conheceu Hermilo Borba Filho. E, junto com ele, fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1947, escreveu sua primeira peça, Uma Mulher Vestida de Sol. Em 1948, sua peça Cantam as Harpas de Sião (ou O Desertor de Princesa) foi montada pelo Teatro do Estudante de Pernambuco. Os Homens de Barro foi montada no ano seguinte.

Em 1950, formou-se na Faculdade de Direito e recebeu o Prêmio Martins Pena pelo Auto de João da Cruz. Para curar-se de doença pulmonar, viu-se obrigado a mudar-se de novo para Taperoá. Lá escreveu e montou a peça Torturas de um Coração em 1951. Em 1952, volta a residir em Recife. Deste ano a 1956, dedicou-se à advocacia, sem abandonar, porém, a atividade teatral. São desta época O Castigo da Soberba (1953), O Rico Avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955), peça que o projetou em todo o país e que seria considerada, em 1962, por Sábato Magaldi “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”.

Em 1956, abandonou a advocacia para tornar-se professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. No ano seguinte foi encenada a sua peça O Casamento Suspeitoso, em São Paulo, pela Cia. Sérgio Cardoso, e O Santo e a Porca; em 1958, foi encenada a sua peça O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna; em 1959, A Pena e a Lei, premiada dez anos depois no Festival Latino-Americano de Teatro.
Em 1959, em companhia de Hermilo Borba Filho, fundou o Teatro Popular do Nordeste, que montou em seguida a Farsa da Boa Preguiça (1960) e A Caseira e a Catarina (1962). No início dos anos 60, interrompeu sua bem-sucedida carreira de dramaturgo para dedicar-se às aulas de Estética na UFPe. Ali, em 1976, defende a tese de livre-docência A Onça Castanha e a Ilha Brasil: Uma Reflexão sobre a Cultura Brasileira. Aposenta-se como professor em 1994.

Membro fundador do Conselho Federal de Cultura (1967); nomeado, pelo Reitor Murilo Guimarães, diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPe (1969). Ligado diretamente à cultura, iniciou em 1970, em Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais. Convocou nomes expressivos da música para procurarem uma música erudita nordestina que viesse juntar-se ao movimento, lançado em Recife, em 18 de outubro de 1970, com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial” e com uma exposição de gravura, pintura e escultura. Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, no Governo Miguel Arraes (1994-1998).

Entre 1958-79, dedicou-se também à prosa de ficção, publicando o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão / Ao Sol da Onça Caetana (1976), classificados por ele de “romance armorial-popular brasileiro”.

Ariano Suassuna construiu em São José do Belmonte (PE), onde ocorre a cavalgada inspirada no Romance d’A Pedra do Reino, um santuário ao ar livre, constituído de 16 esculturas de pedra, com 3,50 m de altura cada, dispostas em círculo, representando o sagrado e o profano. As três primeiras são imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora e São José, o padroeiro do município.

Membro da Academia Paraibana de Letras e Doutor Honoris Causa da Faculdade Federal do Rio Grande do Norte (2000).


O GÊNIO MÁXIMO DA HUMANIDADE
Aquilo também me interessava profundamente, pelo que, sem querer; dei uma esporeada no vazio de "Pedra Lispe", que deu uma poupa. Reequilibrei-me e falei:
- Como é? E o cargo de "Gênio Máximo da Humanidade" também ainda está vago? Pergunto, porque, no "Seminário da Paraíba", a gente estudava Retórica num livro do Doutor Amorim Carvalho, as Postilas de Retórica e Gramática. Esse Doutor era "Retórico do Imperador Pedro II", de modo que sua palavra não é brincadeira, e ele afirma que, de todos os Poetas, "o primeiro, no tempo e na glória, é Homero"!
- Discordo inteiramente, porque está absolutamente errado! - disse Clemente. Essa idéia da autoria individual das obras é reacionária e está ultrapassada! Hoje, está provado que Homero nunca existiu! Os dois poemas que são a "obra da raça grega" foram compostos aos poucos, pelo Povo, e reunidos depois pelos eruditos!
- A autoria da obra é sempre trabalho de um homem só! - disse Samuel, já se irritando. - Homero não foi o "Gênio Máximo da Humanidade", mas o motivo principal disso foi a vulgaridade, a grosseria que o levou a lançar mão daquelas horríveis histórias populares!
Eu procurei, de novo, desviar a briga. Interrompi:
- Bem, o importante é que já estão demonstradas três teses! Primeiro, que o "Gênio da Raça" é um escritor. Segundo, que o cargo de "Gênio da Raça Brasileira" está ainda vago. E terceiro, que ainda está vago, também, o de "Gênio Máxima da Humanidade", porque o único candidato apontado até agora, Homero, além de não existir, era grosseiro e vulgar! Tudo isso constará da nossa ata, recebendo, assim, o selo oficial e acadêmico que lhe dará certeza! Mas existe ainda um problema importante: qual deve ser o assunto da Obra nacional da Raça Brasileira ?
***
Meu plano era obter aos poucos, deles, sem que nenhum dos dois pressentisse, a receita da Obra da Raça, para que eu mesmo a escrevesse, passando a perna em ambos. Eles me olharam um momento, em silêncio, entreolharam-se, e então Samuel falou:
- Bem, é difícil dizer assim, depressa! Mas acho que o assunto da Obra da nossa Raça tem que ser o Brasil!
- O Brasil? - indaguei, perplexo. - Mas o Brasil, como? - O Brasil, o Brasil! - repetiu Samuel, impaciente. - Que assunto melhor do que o feito dos nossos antepassados, os Conquistadores, a "raça de gigantes ibéricos" que forjou o Brasil, introduzindo-nos na Cultura mediterrânea e católica?
Clemente zangou-se e vociferou, de lá:
- Esta é a idéia sua e dos seus amigos, patrioteiros e nacionalistas! De fato, a Obra da nossa Raça deve ter como assunto o Brasil! Mas que "cultura" foi essa que os Portugueses e Espanhóis nos trouxeram? A cultura renascentista da Europa em decadência, a supremacia da raça branca e o culto da propriedade privada! Enquanto isso, a Mitologia negro-tapuia mantinha, aqui, uma visão mítica do mundo, fecundíssima, como ponto de partida para uma Filosofia, e profundamente revolucionária do ponto de vista social pois incluía a abolição da propriedade privada! É por isso que, a meu ver, a Obra da Raça Brasileira, será uma Obra de pensamento, uma obra que, partindo dos mitos negros e tapuias, forje uma "visão de conhecimento": uma visão do mundo; uma visão do homem; uma visão do homem no mundo; e uma visão do homem a braços com o próprio homem!
- É visagem demais para um livro só! - disse eu.
- Alto lá, Quaderna! - falou Clemente, sobranceiro. - Não me venha, agora, com suas "tiradas de almanaque" não, porque isso é coisa muito séria, é o cerne da minha "Filosofia do Penetral"!

A FILOSOFIA DO PENETRAL
Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente? -Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o "único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da "desconhecença" para a "sabença"?
- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
- Fechei! - disse eu, obedecendo.
- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
- Em que é que você está pensando?
- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
- Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você pensou?
- É o mundo!
- É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido", aquilo que foi deferido a você, como "íncola"! É "o insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas partes: a "confraria da incessância" e "a força da malacacheta", representada, aí no que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence ao penetral?
- Não sei não, Clemente, mas pela cara que você esta fazendo, parece que pertence.
- Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no penetral! Entretanto, para completar "o túdico" você, na sua enumeração do mundo, deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
- Sei não, Clemente!
- Foi você mesmo, "o faraute"!
O Faraute não, o Quaderna! - disse eu logo, cioso da minha identidade.
- O Quaderna é um faraute! - insistiu Clemente.
Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
- Epa, Clemente, vá pra lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
- Espere, não se afobe não, homem! Faraute não é insulto nenhum! Eu sou um faraute, você é um faraute, todo homem é um faraute!
- Bem, se é assim, está certo, vá lá! E o que é um faraute, Clemente?
- Ora, Quaderna, você, leitor assíduo daquele Dicionário Prático Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? Vá lá, no seu querido livro de figuras, que encontra! "Faraute" significa "intérprete, língua, medianeiro"! O curioso é que "a quadra do deferido" e o "rodopelo" pertencem ao penetral, mas o faraute, seja "nauta-arremessado" ou "tapuia-errante", também pertence! Não é formidável ? É daí que se origina "o horrífico desmaio", o "tonteio da mente abrasada"! Inda agora, quando pensou no mundo, você não sentiu uma vertigem não?
- Acho que não, Clemente!
- Sentiu, sentiu! É porque você não se lembra! Quer ver uma coisa? Feche os olhos de novo! Isto! Agora, cruze as mãos atrás da nuca! Muito bem! Pense de novo naquele trecho do insólito regalo em que pensou há pouco! Está pensando?
- Estou!
- Agora, me diga: você não está sentindo uma espécie de tontura não?
Eu, que sou impressionável demais, comecei a oscilar, sentindo uma tonteira danada, na cabeça. Pedi permissão a Clemente para abrir os olhos, porque já estava a ponto de cair da sela. O Filósofo, triunfante, concedeu:
- Abra, abra os olhos! Como é? Sentiu ou não sentiu a vertigem? Sabe o que é isso? É a "oura da folia", início da "sabença", da "conhecença"! A oura causa o "horrífico desmaio". Este, leva ao "abismo da dúvida", também conhecido como "a boca hiante do contempto". O abismo comunica ao faraute a existência do "pacto" e da "ruptura". A ruptura conduz à "balda do labéu". E é então que o nauta-arremessado e tapuia-errante torna-se único-faraute. Isto é, o faraute é, ao mesmo tempo, faraute do insólito-regalo, faraute do rodopelo e faraute do faraute! Está vendo? O que é que você acha do penetral, Quaderna?
- Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco, entendi pouca coisa, mas já basta para me mostrar que sua Filosofia é foda! Mas o que é, mesmo, penetral?
- Vá de novo ao "pai-dos-burros"! "Penetral" é "a parte mais recôndita e interior de um objeto". Mas, na minha Filosofia, essa noção é ampliada, porque além de abranger a quadra do deferido e o rodopelo, o penetral abrange também o faraute, através da subjunção da relápsia! Mas, no momento em que se fala friamente do penetral, tentando capturá-lo em categorias de uma lógica sem gavionice negro-tapuia, ele deixa de ser apreendido! Faça apelo aos gaviônicos restos de sangue Negro e Tapuia que você tem, Quaderna, e entenda que o penetral "é o penetral", que o penetral "é"! O côisico, coisica: os cavalos cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os móveis movelam, as cadeiras cadeiram, e o faráutico, machendo e feminando, é que consegue gentere farauticar! É assim que o túdico tudica e que o penetral penetrala - e esta, Quaderna, é a realidade fundamental!
- Arra diabo! - disse eu, de novo embasbacado. - E tudo isso já estava na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
- Estava, estava! Aliás, está, ainda! É por isso que o "Gênio da Raça Brasileira" será um homem do Povo, um descendente dos Negros e Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo, faça disso o grande assunto nacional, tema da Obra da Raça!
Claro que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas Samuel contestou logo:
- Nada disso, Quaderna! O "Gênio da Raça Brasileira" deverá ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha nas veias o sangue dos Conquistadores ibéricos que fundaram, com a América Latina como base, o grande Império que foi o orgulho da Latinidade católica! Portugal e a Espanha não tinham dimensões para realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspiração! Mas o Brasil é um dos sete Países perigosos do mundo! Por isso, cabe a nós instaurar, aqui, esse Império glorioso que Portugal e a Espanha não puderam realizar!
- Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? - perguntei. - Em verso ou em prosa ?
- A meu ver, em prosa! - disse Clemente. - E é assunto decidido, porque o filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses intelectuais e emocionais da humanidade"!
Samuel discordou:
- Como é que pode ser isso, se todas as "obras das raças" dos Países estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?
- O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas nacionais são, sempre, autores de Epopeias! - tive eu a ingenuidade de dizer.
Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:
- Uma Epopeia! Era o que faltava! - zombou Samuel. - Vá ver que Quaderna anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que ele andou metido? Não se meta nisso não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo!
Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
- Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopéias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopéia foi substituída pelo Romance!
(Romance d'A Pedra do Reino, 1971.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Post Bottom Ad

Pages