Contra o pós-modernismo: O Reino do Conformismo Generalizado - Blog A CRÍTICA

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domingo, 3 de agosto de 2014

Contra o pós-modernismo: O Reino do Conformismo Generalizado

CORNELIUS CASTORIADIS

O período “moderno” (1750-1950, para fixar as ideias) pode ser melhor definido pela luta, mas também pela contaminação mútua e encadeamento de duas significações imaginárias: autonomia de um lado, expansão ilimitada do “domínio racional” do outro. Estas mantém uma coexistência ambígua sobre o título comum da “Razão”.

Apesar destas contaminações recíprocas, o caráter essencial da época se encontra na oposição e tensão entre duas significações nucleares: autonomia individual e social de um lado, expansão ilimitada do “domínio racional” do outro lado. A expressão efetiva desta tensão se encontra no desdobramento e a persistência do conflito político, social e ideológico. Como tentei mostrar em outro lugar, esse conflito foi, em si mesmo, a força motriz do desenvolvimento dinâmico da sociedade ocidental durante esta época, e a condição sine qua non da expansão do capitalismo e da limitação das irracionalidades da “racionalização” capitalista. É uma sociedade turbulenta – realmente turbulenta, intelectualmente turbulenta e espiritualmente turbulenta – que constituiu o meio que permitiu a febril criação cultural e artística da época “moderna”.

A RETIRADA AO CONFORMISMO

As duas guerras mundiais, a emergência do totalitarismo, a derrota (?) do movimento operário (por sua vez resultado e condição do deslizamento catastrófico até o leninismo/stalinismo), o declínio da mitologia do progresso, marcam a entrada das sociedades numa nova fase.Considerada aprés coup do ponto de vista do qual um se pode situar ao final dos anos oitenta, o período que segue a 1950, é centralmente caracterizado pela evanescência do conflito social, político e ideológico. Decerto, o totalitarismo comunista está sempre ali, mais aparece cada vez mais como uma ameaça externa, e sua “ideologia” sofre uma pulverização sem precedentes. Decerto também, que os últimos quarenta anos viram nascer movimentos importantes e de efeitos duradouros (mulheres, minorias, estudantes e jovens). Estes movimentos, no entanto, terminaram quase bloqueados; nenhum deles pode propor uma nova visão da sociedade, nem afrontar o problema político global como tal. Depois dos movimentos dos anos sessenta, o projeto da autonomia parece sofrer um eclipse total. Pode-se considerar isto como uma evolução conjuntural, decurto prazo. Mas esta interpretação parece pouco provável, ante o crescimento da privatização, da despolitização, e do “individualismo” nas sociedades contemporâneas. Um grave sintoma concomitante é a atrofia completa da imaginação política. A pauperização intelectual dos “socialistas” como dos “conservadores” é aterradora. Os “socialistas” não tem nada o que dizer, e a qualidade intelectual dos porta-vozes do liberalismo econômico dos últimos quinze anos faria rolar em suas tumbas Smith, Constant ou Mill.

Tentar estabelecer os laços causais entre os diversos aspectos e elementos da situação não teria sentido. Mas ressaltei mais acima a concomitância entre a turbulência social, política e ideológica do período 1750 1950 e as explosões criativas que a caracterizam no campo da arte e da cultura. Para o período presente, basta notar os fatos. A situação depois de 1950 é de uma decadência manifesta da criação espiritual. (Na filosofia, o comentário e a interpretação textual e histórica dos autores do passado cumprem o papel de substitutos do pensamento). Isto começa com o segundo Heidegger e foi teorizada, de maneira aparentemente oposta, mas condizente com os mesmos resultados, como “hermenêutica” e “desconstrução”. Um passo suplementar foi a recente glorificação do “pensamento débil” (pensiero debole). Toda crítica será aqui deslocada; se estará obrigado a admirar o candor desta confissão de impotência radical, se ela não se acompanhara de “teorizações” espumosas. A expansão científica continua, evidentemente, mas se pode perguntar se não se trata da continuação inercial de um movimento iniciado faz muito tempo. As explosões teóricas do primeiro terço do século – relatividade, quanta, não tem paralelo há mais de cinquenta anos. (A tríade das teorias dos fractais, do caos e das catástrofes, quiçá sejam a exceção). Um dos campos mais ativos da ciência contemporânea, de onde se esperam resultados de uma imensa significação, é a cosmologia; mas o motor desta atividade é a explosão técnica observacional, enquanto em seu marco teórico permanece a relatividade e as equações de Friedman, escritas no princípio dos anos vinte. Tão surpreendente é a pobreza da elaboração teórica e filosófica das implicações formidáveis da física moderna (que põe em questão, como se sabe, a maior parte dos postulados do pensamento herdado). Mas o progresso técnico continua e inclusive se acelera.

Se o período moderno, tal como foi definido mais acima, pode ser caracterizado, no domínio da arte, como a investigação consciente dela mesma em novas formas, esta investigação é agora, explícita e categoricamente abandonada. O ecletismo e a retirada para as obras do passado adquiriram a dignidade de programas. Quando Donald Barthelme escreveu que a “colagem é o princípio central de toda a arte do século XX”, ele se equivocava sobre as datas (Proust, Kafka, Rilke, Matisse não tem nada a ver com a “colagem”), mas se equivocava no sentido do “pós-modernismo”. A “arte pós-moderna” forneceu um serviço verdadeiramente imenso: fazer ver o quão grande foi a arte moderna.

O pós-modernismo
À partir de diferentes tentativas para definir e defender o “pós-modernismo” e com uma certa familiaridade com o Zeit-Geist, se pode fazer derivar uma descrição sumária dosartigos de fé teóricos ou filosóficos da tendência contemporânea. Tomo emprestado os elementos para tal descrição das excelentes formulações de Johann Arnason:

1 – Rechaço da visão global da História como progresso ou liberação. Em si mesmo, este rechaço é correto. Não é novo e, nas mãos dos “pós-modernistas”, não serve senão para eliminar a pergunta: todos os períodos e todos os regimes históricos-sociais resultam equivalentes? Esta eliminação conduz ao agnosticismo político ou bem dizendo, a divertidas acrobacias nas quais se liberam os “pós-modernistas” ou seus irmãos quando se sentem obrigados a defender a liberdade, a democracia, os direitos do
homem, etc.

2 – Rechaço da ideia de uma razão uniforme e universal. Aqui, em si mesmo, o rechaço é correto; está longe de ser novo; e não serve senão para ocultar a pergunta aberta pela criação grego-ocidental do logos e da razão: o que devemos pensar? São todas as maneiras de pensar equivalentes ou indiferentes?

3 – Rechaço da diferenciação estrita das esferas culturais (por exemplo, filosofia e arte) que se fundariam num princípio único subjacente de racionalidade ou funcionalidade. A posição é confusa, e mescla desesperadamente muitas questões importantes. Para nomear apenas uma: a diferenciação das esferas culturais (ou sua ausência) é, cada vez, uma criação histórico-social, essencial da instituição do conjunto da vida pela sociedade considerada. Esta diferenciação não pode ser nem aprovada nem rechaçada no abstrato. E tampouco o processo de diferenciação de esferas culturais no segmento greco-ocidental da história, por exemplo, não explicou as consequências de um princípio único subjacente de racionalidade qualquer que seja o sentido dessa expressão. Rigorosamente falando, não é senão a construção (ilusória e arbitrária) de Hegel. A unidade de esferas culturais diferenciadas, em Atenas como na Europa ocidental, não se encontra num princípio subjacente de racionalidade ou funcionalidade, sim no fato de que todas as esferas encarnam, cada uma a sua maneira e no modo próprio de sua diferenciação, o mesmo núcleo de significações imaginárias da sociedade considerada.

Estamos diante uma coleção de meias verdades pervertidas em estratagemas de evasão. O valor do “pós-modernismo” como teoria é que reflete servilmente e então fielmente as tendências dominantes. Sua miséria é que fornecem apenas uma simples racionalização por detrás de uma apologia que se pretende sofisticada e que não é senão a expressão do conformismo e da banalidade. Se regozijam com as charlatanices da moda sobre o “pluralismo” e o “respeito a diferença”, emparelha à glorificação do ecletismo, o revestimento da esterilidade, a generalização do princípio de “não importa o que?” que Feyerabend oportunamente proclamou em outro domínio. Sem dúvida a conformidade, a esterilidade e a banalidade, o não importa o que, são os traços característicos do período. O “pós-modernismo”, a ideologia que o decora com uma “completamente solene justificação”, apresenta o caso mais recente de intelectuais que abandonaram sua função crítica e aderem com entusiasmo ao que está ali, simplesmente porque está ali. O “pós-modernismo”, como tendência histórica efetiva e como teoria, é seguramente a negação do modernismo.

Porque na verdade, em função da antinomia já discutida entre as duas significações imaginárias nucleares da autonomia e do “domínio racional”, e apesar de suas contaminações recíprocas (a crítica das realidades instituídas não havia jamais cessadodurante o período “moderno”). E é exatamente isso que está desaparecendo rapidamente, com a benção “filosófica” dos “pós-modernistas”. A evanescência do conflito social e político na esfera do “real” encontra sua apropriada contrapartida nos campos intelectual e artístico com a evanescência do espírito intelectual crítico e autêntico. Como já se disse, este espírito não pode existir senão em e pela instauração de uma distância com o que é, a qual implica a conquista de um ponto de vista mais além do dado, um trabalho de criação. O presente período é, assim, bem definível como a retirada geral ao conformismo. Conformismo que se encontra tipicamente materializado quando centenas de milhões de telespectadores sobre toda a superfície do globo absorvem cotidianamente as mesmas banalidades, mas também quando os “teóricos” vão repetindo que não se pode “quebrar a clausura da metafísica greco-ocidental”.

Não basta então dizer que “a modernidade é um projeto inacabado” (Habermas). Enquanto a modernidade encarnar a significação imaginária capitalista da expansão ilimitada do (pseudo) domínio (pseudo) racional, ela está mais viva do que nunca, envolvida num giro frenético que conduz a humanidade até os perigos mais extremos. Mas, enquanto esse desenvolvimento do capitalismo estiver decisivamente condicionado pelo desdobramento simultâneo do projeto de autonomia social e individual, a modernidade está acabada. Um capitalismo que se desenvolve estando forçado a afrontar uma luta contínua contra o status quo sobre as cadeias de fabricação tanto como nas esferas das ideias ou da arte, e um capitalismo na qual a expansão não encontra nenhuma oposição interna efetiva, são dois animais históricos-sociais distintos. O próprio projeto de autonomia não está certamente acabado. Mas sua trajetória durante os últimos dois séculos provou a inadequação radical, para dizê-lo com moderação, dos programas em nos quais se encarnou – seja a república liberal, ou o “socialismo” marxista-leninista. Que a demonstração desta inadequação na experiência histórica efetiva seja uma das raízes da apatia política e da privatização contemporânea, isto não
precisa ser sublinhado. Para o ressurgimento do projeto de autonomia são necessários novos objetivos políticos e novas atitudes humanas, dos quais, no momento, os sinais são raros.

Agosto de 1989.
Tradução ao Espanhol: Hernán Charosky *
Tradução ao Português: Rafael Viana da Silva
Tradução ao Português publicada em:
http://encruzilhadasdolabirinto.wordpress.com

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