A comunidade internacional deve mostrar o seu compromisso coletivo e a
solidariedade mundial que têm estado ausentes no início deste surto para
acabar com ele. Se não o fizer, permitirá que se produza um desastre
sem precedentes na África Ocidental.
Artigo da revista The Lancet.
Serra Leoa - Foto de CE dg echo/flickr
Quando
um menino de 2 anos de idade adoeceu a 6 de dezembro de 2013 na região
Guéckédou da Guiné, ninguém sabia que a sua doença marcava o início do
maior e mais complexo surto de Ebola que o mundo já vira. Em meados de
agosto registraram-se 2.240 casos e 1.229 mortes na Guiné, na Libéria, na
Nigéria e na Serra Leoa. Mas a OMS acha que estes números podem ser
muito inferiores aos reais, já que o número de mortos e infectados
aumenta rapidamente na Libéria e na Serra Leoa. A 8 de agosto, após uma
reunião de dois dias do Comité Internacional de Regulação Sanitária de
Emergência, a OMS declarou o surto uma “emergência de saúde pública de
importância internacional”. Não se deve a que o surto tenha potencial
pandémico. Não o tem. Se o Ebola chegar a países de elevados e médios
rendimentos, será rapidamente contido. A OMS declarou a emergência para
intensificar a resposta nacional, regional, e internacional no epicentro
do surto na África Ocidental, reconhecendo que constitui um
“acontecimento extraordinário”.
Continua a ser difícil controlar o surto. Os trabalhadores sanitários
enfrentam numerosos problemas de uma magnitude a que não tiveram que
fazer frente quando lutavam contra o Ebola no passado na África central e
oriental. Isto implica sistemas sanitários incrivelmente débeis, com
pouco pessoal, equipas escassas e instalações pobres, o que torna a
vigilância da doença, o isolamento e a atenção de apoio praticamente
impossíveis sem ajuda externa. Os altos níveis de temor e desconfiança
face à doença e aos profissionais de saúde também levou à fuga dos
pacientes dos hospitais e a que as comunidades escondam os doentes. Além
disso, a circulação transfronteiriça entre os três principais países
afetados tem facilitado a propagação numa enorme extensão. Todos estes
fatores tornaram o rastreio efetivo dos contatos, que é crucial para a
contenção, extremamente difícil, especialmente nas zonas remotas e
rurais.
Ainda que a OMS dirija agora a resposta internacional à crise, reagiu
inicialmente com lentidão na hora de intervir com o nível forte que se
precisava. A sua preocupação não coincide com a de outro ator importante
neste surto: os Médicos Sem Fronteiras
(MSF). A 24 de junho, os MSF declararam que o surto estava “fora de
controlo”, que as suas equipas tinham atingido o limite do que podiam
fazer, e pediu uma deslocação massiva de recursos para a região. A OMS
tardou a lançar o seu plano de resposta conjunta até 31 de julho,
fazendo um apelo aos doadores de 71 milhões de dólares e anunciando a
deslocação de várias centenas de técnicos sanitários para o oeste de
África. Mas a OMS não é a única culpada de não ter atuado rapidamente.
Os estados membros e os doadores são também responsáveis. A OMS tem tido
severos cortes orçamentais nos últimos anos. O seu orçamento para
responder às crises e surtos foi reduzido em 50% de 2012-13 (469 milhões
de dólares) para 2014-15 (228 milhões de dólares). A crise mostra a
importância de manter níveis suficientes de financiamento multilateral
para a OMS, o único organismo internacional capaz de coordenar a
resposta a uma crise de saúde de dimensões globais.
Há outras lições deste surto, incluindo a necessidade de um maior
investimento no fortalecimento do sistema de saúde. Os sistemas
sanitários frágeis são incapazes de responder quando surge uma situação
de emergência repentina e rápida. As experiências das comunidades sobre o
pobre funcionamento dos sistemas sanitários também poderá explicar
parte da sua desconfiança durante esta crise. O Banco Mundial
comprometeu-se com 200 milhões de dólares para fazer frente ao surto e
reforçar os sistemas sanitários na África Ocidental, mas são necessários
mais investimentos de outras fontes para desenvolver sistemas
sanitários suficientemente fortes na região.
Não existe vacina nem cura para o Ebola. Este surto impulsionou o
interesse nos tratamentos em desenvolvimento. Os Institutos Nacionais de
Saúde dos Estados Unidos estão a preparar o mais rápido que podem a
fase de ensaios em humanos de uma vacina experimental. No início de
agosto, um comité de ética da OMS decidiu que se podiam utilizar neste
surto medicamentos não aprovados. No entanto, como foi comentado,
provavelmente existiria hoje uma vacina se o Ebola afetasse um grande
número de pessoas nos países de elevados rendimentos, de maneira que a
investigação e o desenvolvimento dos tratamentos fossem financeiramente
atraentes para as empresas: uma situação que John Ashton, presidente da
Escola de Saúde Pública do Reino Unido, descreveu como “a bancarrota
moral do funcionamento do capitalismo na ausência de um quadro ético e
social".
Os Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças dos EUA estimam
que o surto vai durar pelo menos outros 3 a 6 meses. A 15 de agosto, os
MSF, que contam com cerca de 700 trabalhadores sanitários no terreno,
qualificou o esforço internacional para conter o surto de “perigosamente
inadequado”; continua a ser necessária a mobilização imediata e em
massa de recursos humanos e técnicos para a região, não só para fazer
frente à epidemia, mas também para reconstruir os sistemas de saúde que
estão a colapsar. A comunidade internacional deve mostrar o seu
compromisso coletivo e a solidariedade mundial que têm estado ausentes
no início deste surto para acabar com ele. Se não o fizer, permitirá que
se produza um desastre sem precedentes na África Ocidental.
Artigo publicado na revista The Lancet, traduzido para espanhol por Gustavo Buster para Sin Permiso e para português por Carlos Santos para esquerda.net
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