A extraordinária saga de Montanha e Mangabal, da escravidão nos
seringais à propaganda do governo que pretende botar uma hidrelétrica na
terra que habitam há quase 150 anos.
Por Eliane Brum, 15 septembro de 2014
De repente, a comunidade de Montanha e Mangabal apareceu no noticiário.
Em 27 de agosto, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto,
anunciou em cerimônia que o governo federal destinaria “3,2 milhões de
hectares para reforma agrária e preservação ambiental” na Amazônia.
Entre os destinos dessa terra é citada a criação do “Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha e Mangabal”, no município
de Itaituba, no Pará. O anúncio foi destacado no “Muda Mais”, um “site de apoio à candidatura à reeleição de Dilma Rousseff”,
num momento em que a presidente era criticada por sua política para a
Amazônia. Dias depois, o governo marcou para 15 de dezembro a data do
leilão de São Luiz do Tapajós, a primeira das grandes hidrelétricas
planejadas para a região. Vale a pena botar uma lupa sobre esses dois
nomes bastante enigmáticos – Montanha e Mangabal – para fazer a
necessária relação entre as notícias produzidas pelo governo em momento
eleitoral e ampliar a compreensão sobre o trato da Amazônia. Na
comunidade de Montanha e Mangabal está contida a extraordinária luta de
um povo para tornar-se visível para o Brasil que o desconhece. E, ao
existir para os olhos do país, preservar sua terra e sua vida.
O povo de Montanha e Mangabal enfrenta hoje o momento mais crítico em
quase 150 anos de uma trajetória povoada por épicos. Se o Complexo
Hidrelétrico da Bacia do Tapajós for implantado, como Dilma Rousseff
pretende, ele será passado. No território em que vive a comunidade,
assim como outras populações ribeirinhas e indígenas, está sendo gestada
a mais acirrada luta socioambiental depois de Belo Monte. É nas margens
do Tapajós que será decidido o próximo capítulo do que é o futuro, para
o Brasil. E também se povos como o de Montanha e Mangabal estarão nele.
Seguir a trajetória de homens e mulheres ao longo de 70 quilômetros das
águas azuladas do Tapajós, um dos mais belos rios do mundo, é uma aula
de anatomia sobre a ocupação da Amazônia. É também testemunhar uma das
vitórias mais bonitas de um povo que construiu sua memória pela
oralidade no mundo da palavra escrita. Uma vitória sempre provisória,
como eles têm aprendido desde que os primeiros “pesquisadores” –
biólogos, arqueólogos, antropólogos, sociólogos etc – apareceram com a
missão de fazer o levantamento da área para a implantação das
hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá.
Comunidade de Montanha e Mangabal no Alto Tapajós, na Amazônia / Lilo Clareto
Os “pesquisadores”, para os povos da floresta, são uma espécie de
atualização das caravelas dos portugueses apontando no horizonte. Quando
os Munduruku prenderam três biólogos, em julho de 2013, parte dos
brasileiros de outros Brasis achou que os índios cometiam uma
atrocidade. Selvagens, proclamou-se, num salto para trás de 500 anos.
Para os Munduruku, era exatamente o contrário. Eles apenas sabiam, numa
história inscrita nas gerações, que era um anúncio do fim do mundo - do
fim do seu mundo.
Em 27 de agosto, a Sociedade de Arqueologia Brasileira publicou uma nota
conclamando os arqueólogos a “não participarem de atividades
relacionadas ao licenciamento ambiental das barragens da bacia do
Tapajós enquanto este processo seguir em um contexto de violações dos
direitos das comunidades afetadas”. Entre as afirmações: “O processo de
estudo de impacto ambiental e de construção de uma série de barragens
relacionadas ao Complexo Teles Pires e Tapajós vem ocorrendo em
flagrante desrespeito aos direitos dos povos da floresta que vivem na
região. A argumentação de que o impacto das barragens será pequeno
devido a um pretenso vazio demográfico não se sustenta, ainda mais
quando considerarmos a longa ocupação humana da bacia evidenciada pelo
registro arqueológico da região”.
Para os povos da floresta, os "pesquisadores" são a atualização
das caravelas apontando no horizonte como um anúncio do fim do mundo
Até agora a Sociedade de Arqueologia Brasileira foi a única entidade de
classe que demonstrou preocupação com o fato de seus associados
contribuírem com a destruição de povos, culturas, espécies animais e
vegetais e registros arqueológicos. As demais parecem acreditar não
existir nenhum impedimento ético no ato de fazer “pesquisa” acompanhados
por homens armados da Força Nacional reprimindo a população
“pesquisada” – o que diz bastante do material humano que tem sido
formado pelas universidades brasileiras.
O encontro entre os ribeirinhos e os entrevistadores responsáveis pela
coleta de informações rendeu cenas de surrealismo explícito. Era um
total desencontro de Brasis, as perguntas do questionário não faziam
qualquer sentido para a maioria dos moradores de Montanha e Mangabal.
Chico Augusto, por exemplo, é um dos homens mais respeitados da
comunidade. Sua fama de benzedeiro corre mais que o rio. Passado dos 80
anos, ele mora sozinho, sua casa a horas de remadas da casa mais
próxima. Mas é uma solidão povoada a de Chico Augusto, porque a floresta
e o rio e o que neles habitam, visível e invisível, tudo fala com ele.
Então, chegou o entrevistador – ou, como se diz por lá, “aquele povo do
Diálogos Tapajós”, que é como se apresentam. Qualquer papel já faz seu
Chico Augusto passar nervoso. “Hum hum”, ele manifesta-se. As perguntas
para ele eram incompreensíveis. Instado a dar uma resposta, ele teve de
se decidir por uma. “O que o senhor e a sua família fazem nas horas
vagas?” Seu Chico mandou marcar a opção que dizia: “Ir à cidade ou ao
centro da cidade”. “Horas vagas” é um conceito inexistente na vida do
seu Chico Augusto, na cidade ele foi pela primeira vez aos 78 anos: para
fazer sua certidão de nascimento. A jornada mítica já se integrou à
memória oral da comunidade.
Outra pergunta: “O que faz com o lixo?” E seu Chico, sem saber o que
diabos estão lhe perguntando, manda tascar: “Jogado em terreno baldio ou
praça pública”. Lá no meião do rio, seu Chico dá o que é de comer pros
cachorros, o resto aproveita tudo. Quando lhe perguntaram sobre os
Correios, falou que ia para Itaituba no caso de precisar usar o serviço.
“O que é correio?”, me perguntaria depois. Seu Chico trancou os
documentos à chave, numa caixa de madeira herdada de um velho amigo. É
lá que estão as coisas importantes e também as coisas ameaçadoras, as
que não devem sair por aí assombrando o mundo.
Chico Augusto / Lilo Clareto
Ao anunciar que “as primeiras hidrelétricas do tipo plataforma (São Luiz
e Jatobá, no Tapajós) seriam licitadas até o fim de 2014”, a Agência Brasil entrevistou Maurício Tolmasquim,
presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pela
realização dos estudos para o planejamento do setor energético. Ele
explicou que esse tipo de hidrelétrica “será usado em áreas da floresta
amazônica onde não há ocupação humana”. A explicação ecoa um dos slogans
da ditadura civil-militar para a Amazônia, nos anos 70: “Terra sem
homens para homens sem terra”. Ou a famosa expressão, também muito
popular naqueles anos tenebrosos: “Deserto verde”. Ou ainda: “Ocupar
para não entregar”. Entregar para quem?, é a pergunta óbvia e,
lamentavelmente, ainda atual na democracia tão duramente conquistada,
inclusive pela atual presidente. Talvez seja entregar para os índios, os
ribeirinhos, os quilombolas, aqueles vistos como “estrangeiros” pela parcela do Brasil a qual convém desconhecê-los.
A condição de não gente, de inexistir na categoria dos humanos, parece
ser o status dos povos da floresta no caminho das grandes obras
amazônicas ao longo da história do Brasil. Que essa ideia permaneça, na
prática dos governos e na indiferença de parte da população brasileira, é
algo que diz muito da violência e do racismo dessa sociedade ainda
hoje. É para ser reconhecido como gente, parte do mundo dos humanos e
parte do Brasil, que o povo de Montanha e Mangabal fez um longo
percurso. As fotos do ecossistema que abriga Montanha e Mangabal, assim
como dos homens, mulheres e crianças que lá vivem, mostram a beleza do
mundo que será destruído e a face humana daqueles que como humanos não
são reconhecidos. Elas foram generosamente emprestadas para compor esse
artigo pelo fotógrafo Lilo Clareto, que há mais de uma década passou a
documentar comigo as populações invisíveis ameaçadas de extinção
simbólica – e também física. As imagens foram feitas durante as semanas
que permanecemos em Montanha e Mangabal, em agosto de 2013, bancados por
nossas economias, para um trabalho de reportagem ainda inédito.
Chico Augusto foi à cidade a primeira vez aos 78 anos: para tirar certidão de nascimento
A extraordinária história dessa comunidade, hoje composta por quase duas
centenas de pessoas, começa na segunda metade do século 19. Começa é um
modo de dizer, porque os antepassados da atual geração já vinham de uma
longa trajetória de exclusão. Buscar as raízes dos ribeirinhos das
várias Amazônias, assim como dos pequenos agricultores que lá vivem em
projetos de assentamento, é traçar uma genealogia da constante expulsão
dos pobres que atravessa a história do Brasil. São habitantes de um
caminhar, mais do que de uma terra. Até alcançar o norte do país, seu
território é o êxodo.
A Amazônia desponta como a última possibilidade de um lugar – e de um
existir sem fome. Assim foi também com os nordestinos que alcançaram
essa região do Alto Tapajós atendendo ao chamado dos seringalistas que
precisavam de mão de obra para extrair o leite das seringueiras e
abastecer o então lucrativo negócio da borracha. As condições eram
brutais, e tudo o que ganhavam não ganhavam, já que se transformava nos
produtos que precisavam para sobreviver na floresta e só eram vendidos
pelos patrões. Trabalhar era também começar uma dívida que os
escravizava. Estavam lá, como de hábito, atendendo a um projeto do
governo brasileiro. Eram a carne necessária, que valia pouco. A carne
dos desesperados.
Os povos indígenas da região, entre eles os Munduruku, eram os Outros
que assistiam com pavor à invasão do seu território ancestral. Na falta
de mulheres do mundo que deixaram, é pelo roubo das indígenas que os
seringueiros começam uma família. A violência do rapto e do estupro e do
casamento forçado se inscreveu na memória das gerações que dessas
forças resultaram como histórias folclóricas, mais engraçadas do que
trágicas. Inscreveu-se como causos repetidos de geração em geração sobre
a história da bisavó ou da avó roubada. Mas, se a maioria dos de hoje
tem antepassados indígenas, isso não significa que sejam índios. A
identidade de ribeirinho ou beiradeiro é outra. Dá conta de uma síntese
que traz sua própria complexidade. Assim, entre os ribeirinhos de
Montanha e Mangabal e as aldeias indígenas instalou-se uma certa
distância regulamentar, uma convivência desconfiada.
A condição de não gente, de inexistir na categoria dos humanos,
parece ser o status dos povos da floresta no caminho das grandes obras
amazônicas
Neste sentido, o momento histórico é interessantíssimo. Quando o atual
governo passa a tratar todos os que lá habitam como não gente, as
comunidades indígenas e ribeirinhas consumaram uma aliança inédita.
Começaram a se frequentar, tanto em reuniões oficiais para discutir o
que fazer diante da ameaça das hidrelétricas, como em eventos sociais e
até em visitas informais de margem a margem – margem aqui compreendida
em mais de um sentido. Passa a ser comum escutar no discurso dos
ribeirinhos a menção a um “sangue” comum com os índios, que de fato têm,
como se viu, mas que até então tinha um significado inteiramente
diferente. Os Munduruku tornam-se “parentes”, os ribeirinhos
descobrem-se “índios”. O reconhecimento de uma identidade comum,
positiva, se dá como consequência da identidade negativa, conferida
pelos de fora do Tapajós, o governo brasileiro. É assim que, neste
momento, ribeirinhos e indígenas buscam forjar uma estratégia
compartilhada de resistência.
Em 2013, Francisco Firmino da Silva, 62 anos, mais conhecido como Chico
Caititu, foi o enviado especial da comunidade de Montanha e Mangabal
para participar da ocupação do canteiro de obras de Belo Monte com os
Munduruku, em Altamira. Acabaram em Brasília. Chico já era homem de
preto no branco, voltou da experiência irmanado com os índios, o corpo
pintado com jenipapo e muito mais opinioso. “Eu fui porque queria trazer
a verdade sobre a barragem. O (ministro) Gilberto Carvalho disse pro
cacique-geral que a barragem ia sair porque a Dilma precisava dela. O
cacique disse então que a guerra já tinha começado. Minha amiga, eu
posso não conhecer bem a leitura, mas burro não sou. Nós existe aqui, a
gente prova que a gente existe aqui!”
Chico ergue a voz, Chico até cresce: “Todo mundo aqui é ser humano. Vai
acabar toda a nossa felicidade de viver na floresta. É como os índios
disseram, nós não quer carro novo, nós não quer cesta básica, a gente
quer é nossa floresta viva. Desde criança eu sempre vivi dentro da
floresta brasileira. Nunca esperava que tivesse um governo pra cometer
um crime desse. Esse horror de barragem não é pro Brasil, é pra jogar
pra lá. É acabar com nós e dar vida pros outros”. E termina, o peito
magro em perigoso sobe e desce: “Era importante que toda parte do Brasil
soubesse o que tá acontecendo com nós. Não é só aqui no Tapajós, é na
cabeceira da Amazônia inteira. Não querem tratar nós como brasileiro,
mas como um objeto qualquer”.
Chico Caititu. / Lilo Clareto
No início do século 20, quando a borracha deixou de ser lucrativa, a
maioria dos seringalistas partiu com o lucro que amealhou em décadas de
exploração. Os seringueiros ficaram. Porque já haviam alcançado a última
fronteira e não tinham mais nem para onde ir nem como voltar, mas
também porque já pertenciam ao lugar. Porque já eram outros. O fato de
pertencer ao lugar mais do que o lugar pertencer a eles é uma marca da
identidade ribeirinha que assinala uma relação profunda, visceral, com o
território. Ainda que circunscrita a um espaço determinado, cujas
fronteiras cada um carrega como uma informação quase inata, a maioria
das famílias vai migrando por ele, morando ora num ponto, ora em outro
do rio. Montanha e Mangabal formam uma geografia física e sentimental
conjugada no coletivo. É só bem mais tarde, que, para ganhar documento,
vão se fixar cada qual no seu canto, obedecendo, para sobreviver, à
lógica do estatuto fundiários brasileiro que compreende a terra como
mercadoria.
A partir da decadência da borracha e do abandono pelos patrões, o povo
seguiu na beira do Tapajós ao longo do século 20, plantando gente na
floresta e sendo moldada por ela. O Estado, que já não precisava deles
como mão de obra para nenhum “projeto nacional”, simplesmente esqueceu
daqueles homens e mulheres. E eles se viraram como puderam – e se
viraram bem, à deriva de um Brasil que os negava, mas não à deriva de si
mesmos.
Só foram redescobertos pelo Estado nos anos 70 do século passado. Para
implantar o Parque Nacional da Amazônia, o governo expulsou-os de parte
do seu território com enorme truculência. De novo, resistiram como
puderam e se reagruparam mais acima, na margem esquerda do rio. O
Estado, para eles, como para a maior parte dos povos da floresta, é uma
força violenta que interfere em sua existência de tempos em tempos para
aniquilá-los. Foi assim nos anos 70, durante a ditadura civil-militar,
voltou a ser assim neste momento, quando o governo democrático do PT
anunciou as grandes hidrelétricas do Tapajós. O curioso é que, para
facilitar o caminho para a implantação de São Luiz do Tapajós, a
presidente Dilma Rousseff simplesmente arrancou, em 2012, uma fatia de
18,7 mil hectares do Parque Nacional da Amazônia, reduzindo a área de
preservação ambiental. O naco amputado foi justamente a parte do
território de onde o povo de Montanha e Mangabal tinha sido expulso. É
fácil perceber por que os desígnios do Estado são inacessíveis para as
populações por eles atingidas.
As crianças de Montanha e Mangabal. / Lilo Clareto
Mauricio Torres, doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo
(USP) e um dos poucos pesquisadores brasileiros que conhece a realidade
fundiária do Pará em profundidade e em campo, assim descreve a
trajetória da comunidade: “A população de Montanha e Mangabal teve seu
embrião nos tempos da intensificação da exploração da borracha, em
meados do século 19, quando parte de seus ascendentes se instalou
naquelas margens do Alto Tapajós. Desde então, eles resistiram à
escravização por dívida na forma do aviamento, venceram as incertezas
vindas com o fim dos tempos da seringa, encontraram soluções quando
acabou o comércio das peles de gatos (onças, veados, gato maracajá etc),
sobreviveram à chegada e à derrocada dos garimpos, à malária, à
contaminação por mercúrio e ao que mais foi preciso. Na década de 1970,
muitos deles foram expulsos com requintes de truculência de parte de seu
território com a criação do Parque Nacional da Amazônia. Mas a gente de
Montanha e Mangabal persistiu também a isso e todos se reagruparam rio
acima. Os anos 70 trouxeram ainda o acirramento da grilagem incentivada
pelo garimpo e pelas obras da BR-163. Os beiradeiros concentraram-se na
margem esquerda do rio Tapajós e, unidos, resistiram. Então apareceu a
Indussolo, uma empresa paranaense autora da mais grandiosa e sofisticada
fraude fundiária das tantas que a Amazônia é palco. Inventou a
espantosa soma de 1.138.000 hectares, engolindo Montanha e Mangabal
inteiras”.
É nesse momento, no ano de 2004, que as trajetórias de Mauricio Torres e
da comunidade se cruzam, numa das andanças do pesquisador pela região. É
nesse momento também que entra em cena um terceiro personagem, o
procurador da República Felipe Fritz Braga, um dos homens mais notáveis
do Ministério Público Federal, hoje em Brasília. Juntos, eles
protagonizam uma das mais belas histórias de documentação da identidade
do Brasil, um livro ainda por ser escrito.
Historicamente, a palavra escrita foi um instrumento de dominação dos
pobres pelas elites. Vale o papel, em detrimento da oralidade. Para
essas populações, durante séculos a forma de transmissão do conhecimento
foi – e ainda é, em muitos casos – pela narrativa oral. Num ato de
extrema violência, todo o conhecimento desses povos é interpretado como
algo sem valor por aqueles que comandam o país, fazem as leis e decidem o
que é justiça. Assim, inúmeras vezes, os documentos falsos de grileiros
se impuseram sobre a memória oral de indígenas, ribeirinhos e
quilombolas, arrancando-os de terras habitadas por eles há dezenas de
gerações. Era assim que a grileira Indussolo pretendia, mais uma vez,
vencer.
Quando o atual governo passa a tratar a todos como não gente, indígenas e ribeirinhos fazem uma aliança inédita de resistência
Ao lado da comunidade e, em especial, de uma ribeirinha chamada por
todos de Dona Santa, o pesquisador e o procurador foram descobrindo
pistas para que a oralidade pudesse ser provada também pela escrita.
Dona Santa, morta em 2009, era a memória do povo de Montanha e Mangabal.
Cega, ela gravava a narrativa de gerações na cabeça, dos fatos e causos
aos nascimentos e mortes. E com sua voz de velha, tomada pela
autoridade que dela imanava, ia desfiando os acontecimentos que poderiam
provar a existência da sua gente sobre aquela terra. A partir dessas
pistas, Mauricio Torres mergulhava nos arquivos para buscar a
comprovação nos documentos e Felipe Fritz Braga montava uma ação que
seria reverenciada como uma obra-prima.
Cada fragmento de palavra escrita é somado. Em 24 de fevereiro de 1875,
por exemplo, Frei Pelino de Castrovalvas escreve em suas memórias os
nomes daqueles “generosos que, com tanto perigo e sacrifício, salvaram a
vida de um pobre missionário e 17 índios em circunstância tão
desesperadoras: Antonio Martins de Bragança, Antônio Siqueira dos Anjos e
dois outros com o nome de João Siqueira”. Em seu diário de viagem, o
naturalista francês Henri Coudreau registrou ter sido “fidalgamente”
recebido por Matheus Pimenta, em 12 de setembro de 1895. Hoje, um dos
descendentes deste Pimenta é o presidente da comunidade. Navegando pelo
Tapajós, Coudreau assim descreveu a paisagem: “céu de doçura infinita:
os raios de ouro erguem-se no suave azul, e até as nove horas, tudo fica
terno e doce”.
Dona Santa. / Mauricio Torres / Arquivo Pessoal
Alguns documentos que agora salvam revelam as entranhas do Brasil. Como o
de Lausminda de Jesus, 74 anos, que provou a antiguidade de sua
linhagem com uma escritura em que seus antepassados eram elencados como
patrimônio do seringalista. Com o documento que se apropriava do corpo
de seus avós, ela provou seu pertencimento ao corpo da terra, o único em
que pode ser livre. De documento em documento a comunidade de Montanha e
Mangabal conseguiu provar no mundo do Outro, no mundo dos letrados e
dos cartórios, que existem ali há quase um século e meio: oito gerações
nascidas e enterradas às margens do Tapajós.
Naquele momento de festa, donos de uma vitória inédita no judiciário
brasileiro, o povo de Montanha e Mangabal acreditou que sua existência
estava garantida e bastaria agora viver. Pela primeira vez o Estado
aparecia sem ser como uma força de aniquilação. Tornaram-se visíveis.
Fizeram carteira de identidade e alguns, como Chico Augusto, tiraram sua
certidão de nascimento com quase 80 anos de idade. Os mais velhos
começaram também a receber aposentadoria rural. Pegaram um avião e foram
a Brasília defender a transformação de seu território numa Reserva
Extrativista, uma aventura para sempre lembrada como assombrosa. Seu
Toti Geraldo, por exemplo, tentou embarcar com uma faca e um saco de
folhas, ervas, cipós e raízes. A faca serviria para arrancar a casca,
cortar as folhas, manusear seu rico arsenal. Ao ser barrado, tentou
explicar para uma atônita funcionária que aquela era a sua nécessaire de
remédios: “Sou um homem muito doentio!”.
Lausminda de Jesus. / Lilo Clareto
A viagem ao centro do poder fracassou. O povo de Montanha e Mangabal
descobriu, mais uma vez, que sua sina era ser um Brasil à margem do
Brasil. O pedido foi recusado porque seu território estava no caminho do
Complexo Hidrelétrico da Bacia do Tapajós. Tentaram então um Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE), que foi engavetado. Só em 3 de
Setembro de 2013 seria criado o PAE Montanha e Mangabal, uma forma de
destinação territorial mais fácil de ser cancelada do que uma reserva
extrativista. O PAE foi assinado por um superintendente regional do
Incra depois de ter sido pressionado para apresentar números que
servissem para rebater o conhecido fiasco do atual governo na reforma
agrária. Quando assessores em Brasília perceberam a localização, já era
tarde demais para voltar atrás: a criação de um projeto de assentamento
para a população agroextrativista na Amazônia era tão surpreendente, em
um governo notável pelo recuo nessa área, que já tinha virado matéria inclusive da imprensa internacional.
É esse projeto, criado um ano atrás, que curiosamente foi incluído na
cerimônia de 27 de agosto em que se anunciou o investimento do governo
em preservação na Amazônia.
No Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de São Luiz do Tapajós, feito
por um consórcio de empresas interessadas, entre elas a construtora
Camargo Corrêa, afirma-se que “a interferência do reservatório” sobre a
comunidade de Montanha e Mangabal será “muito pequena”, “permitindo a
reorganização das propriedades sem remoção das famílias”. É sempre
curiosa a escolha das palavras nesse tipo de relatório. “Reorganização”,
por exemplo. Como se a transformação de um rio em um lago fosse uma
mera mudança de nomenclatura. Como se a transformação radical de um
ecossistema, em torno do qual se constrói todo o modo de vida
agroextrativista, não alterasse a vida ali.
Vilinha, em Montanha e Mangabal. / Lilo Clareto
Parece que nada se aprende com o passivo ambiental e humano deixado por
hidrelétricas como Balbina e Tucuruí, nas quais populações oficialmente
“não afetadas” foram obrigadas a deixar sua terra, sem receber um
centavo do governo, por absoluta impossibilidade de nelas seguirem
vivendo a partir do momento em que o ciclo da natureza foi alterado. A
comunidade de Montanha e Mangabal poderá ainda ser cortada pelo meio com
a implantação da segunda hidrelétrica planejada para a região, a de
Jatobá. De fato, não é que nada se aprende, apenas não importa o destino
dessas populações para setores do Brasil, como prova a História. Esses
setores estão sempre bem representados nos mais variados governos, como
também está provado.
É escandaloso que o leilão de São Luiz do Tapajós tenha sido marcado
antes de sequer ter começado o processo de consulta das comunidades
atingidas. A consulta prévia, livre e informada é prevista na convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho. Não foi cumprida em Belo
Monte, o que provocou grandes danos à imagem do país também em nível
internacional. Ao marcar o leilão, o governo do partido que se construiu
tendo por base os movimentos sociais mostra que a implantação da
hidrelétrica já está decidida – e que ouvir as populações é só um ato
pró-forma. Só existe uma opção: ou o leilão é suspenso ou, mais uma vez, o Brasil violará todas as regras e não haverá consulta prévia.
Historicamente a palavra escrita foi um instrumento de dominação dos pobres pelas elites
As intenções tornaram-se ainda mais explícitas quando Dilma Rousseff
acusou sua principal adversária nesta eleição, na quinta-feira (11/9), de ter causado atraso nas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira,
ao demorar no processo de concessão de licenças ambientais na época em
que era ministra do Meio Ambiente. O fato de ter licenciado Jirau e
Santo Antônio, outras duas usinas polêmicas, que vem causando um sério
passivo ambiental e humano, é uma das decepções e motivo de desconfiança
de parte dos movimentos socioambientais e de direitos humanos com
Marina Silva. Mas, ainda assim, Dilma Rousseff sente-se confortável para
criticar o investimento de tempo necessário no processo de licença
ambiental de empreendimentos que afetam a vida de milhares de seres
humanos – como sempre, os mais desamparados.
Nessa simulação de consulta nada prévia para a implantação de São Luiz do Tapajós, apenas os Munduruku serão ouvidos. Conforme denunciou o Ministério Público Federal,
comunidades agroextrativistas e ribeirinhas não serão consultadas.
“Ribeirinhos e agroextrativistas são tão sujeitos de direitos da
Convenção 169 quanto os indígenas e devem ter direito a uma consulta
apropriada também. Afirmar o contrário é mais uma vez incidir num
discurso hegemônico, em que os diferentes modos de viver e se relacionar
com a floresta são desconsiderados”, criticou o procurador da República
Camões Boaventura. Em reunião no início de setembro para discutir o
processo de consulta havia representantes de Montanha e Mangabal, mas o
governo fez questão de registrar que estavam ali a convite dos índios.
Os índios, em maior número e com maior poder de pressão, ganharam
temporariamente estatuto de “gente” na prática governamental. Os
ribeirinhos seguem um não ser – escutado. Ao olhar para o atual momento
histórico, o pesquisador Mauricio Torres diz: “O inimigo não é mais o
pistoleiro do grileiro, passível de ser olhado nos olhos e enfrentado.
Todos agora se sentem impotentes frente à ação do governo em prol das
hidrelétricas. O inimigo agora é maior”.
Essa é a história de Montanha e Mangabal. Talvez o começo do fim da história.
Lilo Clareto
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
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Fonte: El país, Brasil
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