O
século 21 verá o desenvolvimento de processos culturais concorrentes
antagônicos, complementares em certos casos, que se manifestaram no
final do século 20:
1) a expansão planetária da esfera das artes, da literatura e da filosofia;
2)
a homogeneização, padronização, degradação e perda de diversidades, mas
também a dialógica (relação antagonista e complementar) entre produção e
criação;
3) o desenvolvimento de um folclore global;
4) o desenvolvimento de grandes ondas transnacionais, encontros, mestiçagens, novas sínteses e novas diversidades;
5)
o retorno às fontes, a regeneração das singularidades. O conjunto de
fatores que inclui a expansão da internet como um sistema neurocerebral
artificial de caráter planetário e o desenvolvimento da multimídia irão
exacerbar e amplificar as tendências em curso e acentuar os antagonismos
entre uma organização concentrada, burocrática e capitalista da
produção cultural de um lado, e as necessidades internas de
originalidade, singularidade e criatividade do produto cultural de
outro, ou seja, a necessidade da produção de levar em conta sua
antagonista, a criação. Da mesma forma, ocorrerá o desenvolvimento
concorrente e interferente entre, de um lado, o processo de padronização
cultural e, de outro, o processo de individualização cultural, não
apenas quanto às obras, mas também quanto ao seu uso.
1) a expansão planetária
As
grandes esferas culturais estavam fechadas umas às outras e, para os
europeus, a cultura “universal” era a cultura do universo das obras
europeias, tanto na Literatura (Cervantes, Shakespeare, Molière, Balzac
etc.), quanto na poesia ou na música. Ao longo do século 20, uma esfera
verdadeiramente universal constituiu-se. As traduções multiplicaram-se.
Os romances japoneses, latino-americanos e africanos foram publicados
nos principais idiomas europeus e os romances europeus foram publicados
na Ásia e nas Américas. As músicas ocidentais encontram intérpretes em
todos os continentes e a Europa se abre às músicas do oriente árabe, da
Índia, da China, do Japão, da América Latina e da África. Essa nova
cultura mundial certamente ainda é isolada em esferas restritas em cada
nação, mas seu desenvolvimento, que é um traço marcante da segunda
metade do século 20, irá prosseguir no século 21. Ainda que os modos de
pensamento ocidentais tenham invadido o mundo, os modos de pensamento de
outras culturas resistem e são doravante difundidos no ocidente. O
ocidente já havia traduzido o Avesta e os Upanisads, no século 18,
Confúcio e Lao Tsé no século 19, mas as mensagens da Ásia permaneciam
apenas objeto de estudos eruditos. É apenas no século 20 que as
filosofias e místicas do Islã, os textos sagrados da Índia e o
pensamento do Tao e o do budismo tornam-se fonte vivas para a alma
ocidental arrastada/acorrentada ao mundo do ativismo, do produtivismo,
da eficácia e do divertimento e que aspira à paz interior e à harmonia
consigo mesma. Surgiu então uma demanda ocidental pelo oriente, com
grande procura pelas formas vulgarizadas e comercializadas da ioga e das
mensagens do budismo.
2) A padronização cultural e seus limites
A
chegada do cinema, da grande imprensa e depois do rádio e da televisão
no século 20 conduziram ao desenvolvimento da industrialização e da
comercialização da cultura com o auxílio dos seguintes fatores: da
divisão especializada do trabalho, da padronização do produto e sua
mensuração cronométrica, da busca da rentabilidade e do lucro.
No
entanto, a indústria cultural não pode eliminar a originalidade, a
individualidade, aquilo que chamamos talento. Não apenas não pode
eliminá-lo, como tem dele uma necessidade fundamental. Mesmo se um filme
é concebido em função de algumas receitas padrão (intriga amorosa,
final feliz), ele deve ter sua personalidade, sua originalidade, sua
unicidade. Dito de outra forma, a produção de uma novela ou de um filme
não se assemelha à de um automóvel ou à de uma máquina de lavar. E é um
símbolo que Hollywood tenha invocado William Faulkner, um escritor que
pode ser considerado extremamente criativo, entregue à sua própria
paixão, ao seu próprio ardor, seus próprios fantasmas e obsessões. É
claro, o gênio de Faulkner raramente foi mostrado nos filmes de
Hollywood, mas uma parte dele manifestou-se com freqüência neles.
Deste modo, em tudo que se ergue da indústria cultural há um conflito
permanente e, ao mesmo tempo, uma complementaridade constante entre o
individual, o original, a criação e o produto padronizado,
simplificando, entre a Criação e a Produção. É evidente que algumas
obras são estereotipadas, padronizadas, chatas, enquanto outras possuem
algo que transforma o estereótipo em arquétipo como os grandes
arquétipos mitológicos. Um gênero como o Western, que produziu tanto
filmes de terceira quanto obras-primas, tem sua força no caráter
mitológico e arquetípico da conquista do Oeste, vivida
não apenas como uma epopEia singular mas também como o momento da
instauração da lei, quando ainda não havia lei, da introdução da ordem e
da justiça onde reinava o furor da violência. Os filmes de samurai nos
mostram a luta épica do cavaleiro solitário pela justiça e pelo bem num
mundo sem lei. Assim, grandes autores como John Ford ou Kurosawa realizaram suas obras primas.
A
indústria cultural é animada portanto por uma contradição que, ao mesmo
tempo, destrói em si mesma os germes da criatividade e os suscita.
Hoje, a literatura existe pelo livro impresso, um meio de multiplicação
em massa. Apesar disso, a literatura conserva ainda hoje um princípio
artesanal. A produção da obra, mesmo com o computador, guarda um
caráter individual. Contudo, a literatura, com o desenvolvimento das
grandes editoras, sofre cada vez mais as pressões da industrialização e
da comercialização.
Houve
um tempo, que durou alguns séculos, em que o texto manuscrito era
enviado ao editor, o que logicamente supunha inúmeras correções nas
provas. Os manuscritos de Proust comportavam um número tal de colagens
que se desdobravam sobre os lados, acima e abaixo das páginas, que foram
apelidadas “paperolles”, papelório. Hoje, deve-se enviar um disquete
definitivo ao editor, proibido de realizar correções de autor nas
provas, a não ser que o custo seja coberto pelo próprio autor.
Pois
bem, uma obra literária amadurece a partir de objetivações sucessivas
que permitem ao escritor afastar-se desse embrião que saiu de suas
“entranhas mentais”. Percebendo-o de forma cada vez mais distanciada,
isso permite que ele realize não apenas pequenos retoques, como faz o
pintor que se afasta da tela, mas também, às vezes, modificações
profundas que são necessárias. Pense que “Em Busca do Tempo Perdido”, de
Proust, não seria o que é se Proust não tivesse tido a possibilidade de
transfigurar totalmente a primeira impressão de sua obra.
A
este fato juntam-se as limitações de volume. Os editores não gostam nem
dos livros muito curtos e nem dos livros muito grandes, a menos que
prevejam antecipadamente um best seller. O tamanho e o volume do livro
permitem então um aumento do preço e, consequentemente, do lucro.
Em
seguida, há o processo de pré-seleção realizado pelos editores
influentes. Um grande editor, que edite de 15 a 20 livros por mês,
pré-seleciona os que julga possuir uma resposta de público. A assessora
de imprensa não diz, é claro, aos críticos: “O senhor irá receber 15
livros que são todos obras-primas”. Não, ela dirá: “Peço-lhe que leia
este livro, ele certamente o agradará”. Além disso, note que falo das
assessoras de imprensa no feminino, enquanto os críticos são em sua
maioria do sexo masculino, o que favorece as pressões de charme, que não
têm evidentemente nada a ver com o conteúdo intrínseco das obras.
Enfim,
o efeito extremo desta pré-seleção é o fenômeno bastante conhecido da
“best-sellerização”, a fabricação de best sellers. O que ocorre com o
livro acontece também com o cinema; há receitas para se produzir um
best-seller, uma dose de sangue, de violação, de amor, de violência, de
paixão, de massacre, de conflito e de ciúmes, mas não há jamais a
certeza de que tudo isso junto possa resultar num best seller.
Felizmente, há uma parte aleatória. Contudo, trata-se de um processo
que, desde o momento em que se inicia, torna-se irresistível - é o que
chamamos feedback positivo: o
aumento da venda gera uma explosão das vendas etc. Criam-se fenômenos
epidêmicos de contágio, o que faz com que, no mundo da literatura na
França, alguns livros tenham tiragens de 1.000, 1.500, 2.000 exemplares,
no limiar da rentabilidade, enquanto outros atingem e até ultrapassam
os 200.000 exemplares. As revistas praticam a “parada de sucessos” de
livros da mesma forma que para os cantores de rock ou outros produtos da
indústria cultural. Os livros são cotados em função dos números de suas
vendas num certo número de livrarias, que varia segundo o público
visado pelas revistas. As melhores notas – os livros mais vendidos - tendem a prescrever sua compra, senão a leitura.
Última
restrição, a rotação muito rápida dos livros nas livrarias. Os grandes
editores deixam os livros em consignação com os livreiros, que não pagam
no momento da entrega e que têm o prazer de devolver os livros que não
são vendidos. Se o editor já pré-selecionou este livro acreditando que
fará sucesso, irá enviar uma quantidade grande para venda em consignação
e fará um esforço enorme de publicidade e junto aos críticos para que
esses livros sejam vendidos. Todos os livros que escapam a este sistema,
no entanto, irão cair em um turbilhão. Os livros de autores jovens, os
livros de autores difíceis, os livros que ainda não tem seus fãs e
tietes, ou seja, se este livro não é sinalizado de alguma forma, ele
desaparece ao final de dois meses na livraria.
Este
sistema, tão prejudicial à criação, não a anula, pois os editores têm
ainda mais necessidade de originalidade que os produtores de cinema.
Por
outro lado, a diversidade é o antídoto mais potente para a
padronização: a diversidade de editores para os livros e a
diversificação das redes, no caso do rádio e da televisão.
3) O desenvolvimento de um folclore planetário
Ao
longo do século 20, as mídias produziram, difundiram e urdiram um
folclore global, a partir de temas originais saídos de culturas
diferentes, ora renovados, ora sincretizados. A formidável “fábrica de
sonhos” de Hollywood criou e propagou um novo folclore mundial através
do western, do policial “noir”, do thriller, da comédia musical, do
desenho animado - de Walt Disney a Tex Avery. As nações ocidentais, e
depois as orientais, produziram seu cinema. Certamente, há com
frequência mais fabricação que criação num grande número de filmes, mas a
arte do cinema floresceu em toda parte, em todos os continentes e, pela
mediação da dublagem e da difusão dos aparelhos de televisão, ele
tornou-se uma arte globalizada, ao mesmo tempo em que preservou as
originalidades dos artistas e culturas. Pode-se mesmo notar que as
co-produções reunindo produtores, atores e artistas de diferentes
nacionalidades, como se faz muito atualmente, do “Leopardo” de Visconti a
“Ran” de Kurosawa, chegam, através da produção cosmopolita, a uma
autenticidade estética que se perdeu nos folclores regionais
empobrecidos.
Um
folclore planetário constituiu-se e foi enriquecido por integrações e
encontros. Ele se espalhou pelo mundo do jazz, que se ramificou em
vários estilos a partir de Nova Orleans, chegando ao tango, nascido no
bairro portuário de Buenos Aires, ao mambo cubano, à valsa de Viena e ao
rock americano, o qual produziu variedades diferenciadas no mundo
inteiro. Integrou a cítara indiana de Ravi Shankar, o flamenco andaluz, a
melopéia árabe de Oum Kalsoum, o huayno dos Andes e suscitou os
sincretismos da salsa, do raï, do flamenco-rock.
Quando
se trata de arte, música, literatura, pensamento, a
mundialização/globalização cultural não é homogeneizante. Ela se
constitui de grandes ondas transnacionais, mas que favorecem a expressão
das originalidades nacionais em seu seio. Assim como ocorreu na Europa
com o Classicismo, as Luzes, o Romantismo, o Realismo e o Surrealismo,
também ocorre no resto do mundo com as ondas literárias, pictóricas,
musicais, saídas a cada vez de um ponto diferente.
4) Encontros e mestiçagens culturais
Não
esqueçamos que a mestiçagem sempre recriou a diversidade, favorecendo a
intercomunicação. Alexandre, o Grande, a cada cidade conquistada na
Ásia, fazia com que algumas centenas de jovens nativas se casassem seus
guerreiros macedônicos; com as cidades que ele atravessou ou criou
formaram-se as matrizes de civilizações helênicas brilhantes e fontes de
arte mestiça greco-budista. A própria civilização romana bem cedo se
tornou mestiça, assimilando em si toda a herança grega; ela soube
integrar em seu panteão um número bastante grande de deuses estrangeiros
e, em seu território, povos bárbaros que se tornaram romanos de
direito, guardando sua identidade étnica.
A
criação artística se alimenta de influências e de confluências. Assim, a
tradição que hoje aparenta ser a mais autenticamente original, o
flamenco, é, como o próprio povo andaluz, o produto de interpenetrações
árabes, judaicas e espanholas transmutadas no seio e pelo gênio doloroso
do povo cigano. Podemos escutar e ver no flamenco a fecundidade e os
perigos do duplo imperativo, preservar – a origem – e abrir-se – ao
estrangeiro. Do lado da preservação, houve inicialmente, graças
sobretudo à afeição de alguns apreciadores franceses, o estudo e o
retorno às fontes do canto jondo, que se havia consideravelmente
degradado; assim, velhas gravações foram ressuscitadas em compilações;
intérpretes esquecidos e decadentes tornaram-se mestres, formando, no
respeito da tradição, novas gerações de intérpretes, desde então
fortemente revigorados. Do lado da abertura, houve inicialmente a
degeneração numa massa de “espanholices” vagamente sevilhanas, depois
uma integração de fontes na música de Albéniz e na de Falla, e depois,
enfim, as mestiçagens interessantes e recentes com as sonoridades e
ritmos vindos de outras partes, como aqueles do jazz (Paco de Lucia
tocando com John McLaughlin) ou do rock (no melhor Gipsy Kings).
O
jazz foi inicialmente um híbrido afro-americano, produto singular de
Nova Orleans, que se espalhou nos Estados Unidos, conhecendo múltiplas
mutações, sem que os novos estilos fizessem desaparecer os estilos
precedentes; e ele se torna uma música negra/branca, escutada, dançada e
depois tocada pelos brancos e, sob todas as suas formas, ele se espalha
pelo mundo, enquanto o velho estilo de Nova Orleans, aparentemente
abandonado em sua fonte, renasce nos porões de Saint Germain des Près,
volta aos Estados Unidos e se reinstala em Nova Orleans. Mais tarde,
após o encontro do rhythm & blues, é na esfera branca que o rock
aparece nos Estados Unidos, para se espalhar pelo mundo inteiro e, em
seguida, se aclimatar em todas as línguas, adquirindo a cada vez uma
identidade nacional.
Hoje,
em Pequim, Cantão, Tóquio, Paris e Moscou, dança-se, comemora-se,
comunga-se rock e a juventude de todos os países plana no mesmo ritmo
sobre o mesmo planeta.
A
difusão mundial do rock suscitou em toda parte, além disso, novas
originalidades mestiças como o raï e, enfim, misturadas no rock-fusion, um
tipo de caldo rítmico, onde as culturas musicais do mundo inteiro se
casam entre si. Assim, às vezes para o pior, mas também freqüentemente
para o melhor, e isso sem se perder, as culturas musicais do mundo
inteiro fecundam-se, ainda sem saber, contudo, que geram frutos em todo o
planeta.
Quanto
à massificação, ela vem da homogeneização técnica, da “macdonaldização”
de todas as coisas, mas não vem dos encontros e da mestiçagem. Toda
mestiçagem cria a diversidade; veja as belas eurasianas e as belas
brasileiras.
Deve-se
também deixar os homens e a cultura caminharem em direção à mestiçagem
generalizada e diversificada, ele mesmo diversificando por sua vez. As
proibições portadoras da maledição que, na era da diáspora humana,
constituíam as defesas imunológicas das culturas arcaicas e das
religiões dogmáticas, tornaram-se obstáculos à comunicação, à
compreensão e à criação na era planetária. Num primeiro momento, os
misturadores de estilos são considerados “confusionistas”; os mestiços
de etnia e de religião são rejeitados como bastardos e hereges por suas
comunidades de origem. Eles são vítimas e mártires de um processo
pioneiro de compreensão.
5) As renovações
Ao
mesmo tempo em que todos os processos indicados e em reação contra os
perigos da perda de identidade e da autenticidade, em toda parte
opera-se uma volta às origens, e isso é particularmente notável na
música. Como dissemos, é no momento em que iria desaparecer que o
flamenco foi ressuscitado por jovens gerações, seguindo o exemplo dos
velhos “cantaores”, e o mercado internacional do disco e do espetáculo
favoreceu essa ressurreição, multiplicando os amantes de flamenco pelo
mundo. Assim, o flamenco é um exemplo de retorno às origens e de
mestiçagem, dois processos aparentemente antagônicos mas que na
realidade são complementares. Em toda parte, as jovens gerações, tanto
na Europa - nos países celta e basco -quanto na África e na Ásia,
dedicam-se a preservar músicas, instrumentos e cantos tradicionais.
Assim, as culturas tradicionais resistem e se defendem.
No
entanto, é necessário precisar aqui que uma cultura rica é uma cultura
que, ao mesmo tempo, é preservada e íntegra. É uma cultura ao mesmo
tempo aberta e fechada. Contrariamente à idéia de que cada cultura
comporta em si própria uma plenitude, Maruyama nota justamente que em
cada cultura há algo de disfuncional (falha de funcionamento) de
antifuncional (funcionando ao contrário do que se deseja), sub-funcional
(atingindo uma desempenho abaixo do nível desejado) e tóxi-funcional
(criando danos em seu funcionamento). As culturas são imperfeitas em si
mesmas, como nós mesmos somos imperfeitos. Todas as culturas, como a
nossa, constituem uma mistura de superstições, ficções, fixações,
saberes acumulados e não criticados, erros grosseiros, verdades
profundas; mas essa mistura não é discernível à primeira vista; deve-se
estar atento para não se classificar como supertisções saberes milenares
– como, por exemplo, os modos de preparação do milho no México, que
durante muito tempo foram atribuídos pelos antropólogos a crenças
mágicas, até que se descobriu que eles permitiam ao organismo assimilar a
lisina, substância nutritiva que durante muito tempo foi a base de sua
alimentação. De onde surge esse paradoxo, que será aquele do século 21:
deve-se ao mesmo tempo preservar e abrir as culturas. Isso não é, porém,
nada de inovador: na fonte de todas as culturas, incluindo aquelas que
parecem as mais singulares, há o encontro, a associação, o sincretismo, a
mestiçagem. Todas as culturas possuem uma possibilidade de assimilar
nelas aquilo que lhes é inicialmente estrangeiro, pelo menos até um
certo limiar, variável segundo sua vitalidade, e além do qual são elas
que serão assimiladas e/ou desintegradas.
Assim,
segundo um duplo imperativo complexo do qual não podemos anular a
contradição interna – mas essa contradição poderá ser ultrapassada e não
é ela necessária à própria vida das culturas? – devemos ao mesmo tempo
defender as singularidades culturais e promover as hibridizações e
mestiçagens: devemos ligar a
preservação das identidades e a propagação de uma universalidade mestiça
ou cosmopolita, que tende a destruir essas identidades.
Como
integrar sem desintegrar? O problema coloca-se dramaticamente para as
culturas arcaicas, como a dos Inuits. Deveria saber-se fazer com que
eles fossem beneficiados pelas vantagens de nossa civilização – saúde,
técnicas, conforto etc. – mas saber auxiliá-los a conservar os segredos
de sua própria medicina, de seu xamanismo, seu conhecimento de
caçadores, seus conhecimentos da natureza etc. Seriam necessários
barqueiros, como Jean Malaurie, que não fossem absolutamente
missionários religiosos ou laicos vindos para fazer com que eles
tivessem vergonha de suas crenças e usos.
Conclusão
É
evidente que o desenvolvimento da mundialização cultural é inseparável
do desenvolvimento mundial das redes midiáticas, da difusão mundial dos
modos de reprodução (cassetes, cds, vídeos) e que a internet e a
multimídia acelerarão e amplificarão todos os processos, diversos,
concorrentes e antagônicos (ou seja, complexos) que evocamos. Não cremos
na desaparição do livro, nem na do cinema; haverá provavelmente até um
retorno a um e a outro, o primeiro na intimidade da meditação, da
solidão, da releitura, o segundo na comunhão em salas escuras. Cremos
também que apesar de seus avanços impressionantes, os processos de
padronização e os imperativos do lucro serão contrabalançados pelos
processos de diversificação e as necessidades de individualização.
Trata-se de ir em direção a uma sociedade universal fundada sobre o
gênio da diversidade e não sobre a falta de gênio da homogeneidade, o
que nos leva a um duplo imperativo, que traz em si sua contradição, mas
que não pode fecundar fora dela: em toda parte, preservar, estender,
cultivar e desenvolver a diversidade.
A
humanidade é ao mesmo tempo una e múltipla. Sua riqueza está na
diversidade das culturas, mas podemos e devemos nos comunicar dentro da
mesma identidade terrestre. Ao nos convertermos verdadeiramente em
cidadãos do mundo, partilhando uma mesma cultura das Cem Flores, é que
nos tornamos vigilantes e respeitadores das heranças culturais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário