Partiu num dia cinzento, em Recife, o companheiro Abelardo da Hora.
Egresso de uma geração que carregava sonhos e indignações, e com a qual aprendi
a olhar o mundo nas suas contradições e desafios. Investiu-se da têmpera de um
forte, mesmo nos momentos mais aterradores a que fomos arrastados pelas garras
da Ditadura Militar de 64.
Abril de 1964, 2ª Cia de Guardas do Exército, em
Recife. Foi ali que o terror pelas botas de Justino Alves, Bandeira, Ibiapina e
Vilok escancararam as portas daquela masmorra e lançaram Abelardo da Hora,
Paulo Cavalcanti, Francisco Julião, Miguel Arraes, Agassiz Almeida, Clodomir
Moraes e tantos outros companheiros nas infâmias da condição humana.
O viandante de sonhos que ora tomba no chão da
história nos marcou com grandeza moral: Não
fraquejemos, vencidos são os covardes golpistas. Respondi: Companheiro, por nós falará a história no
amanhã dos tempos.
No rastro da partida daquele valente o que ele deixa ao mundo? Visualizou
a arte para além do efêmero na dimensão de um Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci
e Portinari; nos embates políticos fez-se um intimorato. Tragado pela fúria da
tirania militar, ele desconhecia o medo e nos dizia nas horas dantescas: Nós contemplamos horizontes e os verdugos as
suas botas.
Olhava as elites do país como verdadeiros felinos,
sempre à espreita de desferir botes no povo brasileiro. Quando a ditadura
militar calou a sua voz, fugiu com a sua arte para o infinito do tempo, e nela
plasmou no bronze o grito arrebatador de camponeses com braços estendidos para
o alto a bradar: Basta de tiranias, queremos
trabalhar.
Da indignação rebentada daquele bronze, do martirológio
dos setenta imolados do Araguaia, do corpo pendurado de Herzog num fabricado suicídio,
a ditadura acovardou-se.
Das mãos geniais do imortal pernambucano alteia-se
este sentimento: somos movidos pela fé das nossas convicções.
Olhemos as suas esculturas, que retratam profundas
inquietações contra agressivas injustiças sociais. Por um momento, elas nos
transportam às telas de Rembrandt, sombrias e interrogantes. Em inúmeras
decisões e lutas políticas estivemos ombro a ombro. Por ocasião das homenagens
que o Ministério Público de Pernambuco prestava a vultos históricos, o escultor
de olhar imenso soltou este petardo: Vou
esculpir em bronze torturadores vomitando mortos desaparecidos. (Google)
Naquela sinistra prisão da 2ª Cia de Guardas onde nos
lançaram, terríveis pesadelos nos assaltavam desvairando-nos: Oh, nossas vidas nas mãos de deformados
morais.
Abraçou o marxismo como a melhor forma de analisar o
mundo e retratar a espoliação dos povos. Aquele obelisco, em mármore, “Os
retirantes”, no Parque Dona Lindu, em Recife, parece falar a linguagem de todos
os desencontrados da vida. Um torturador da ditadura na sua obsessão de odiar
aterrorizou-se imaginando uma apologia à revolta dos camponeses.
Que geração aquela impulsionada por tantos sentimentos
juvenis. Idealistas, depois fomos mais além; tornamo-nos revolucionários por
novos mundos! Quanto de juventude inteligente a ditadura devorou! Oh! Juventude,
quanto de ideais tu ofereceste no altar dos teus sonhos!
Que imbatível lidador das artes e das lutas políticas!
Abelardo da Hora carregou a flama dos
grandes indignados.
Na noite sinistra dos deformados torturadores,
cães-humanos, a nossa geração desatou a sua inconformação na pena, nas artes e
na ação revolucionária; um deles, o genial escultor circum-navegou a vida das formas
esculturais às lides políticas com a desenvoltura de um valente, e a certa altura
dos tempos, embalaram-no os cânticos do poema, “Canção inacabada”, de Pablo Neruda.
Que fiquem estas palavras ao companheiro Abelardo da
Hora: Da eternidade para a vida fale a tua história, construída com a têmpera
dos intimoratos e a sensibilidade dos poetas.
Obs.:
Agassiz Almeida é escritor, ativista dos direitos humanos, deputado federal
constituinte, autor das obras, 500 anos
do povo brasileiro, A república das elites, A ditadura dos generais; e
recentemente lançou o livro, “O fenômeno
humano”. É considerado pela critica como um dos grandes ensaístas do país. (Dados colhidos na Wikipédia).
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