Curdos: “Kobane não cairá” - Blog A CRÍTICA

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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Curdos: “Kobane não cairá”

A comandante Meysa Ebdo, de Kobane, cidade curda do norte da Síria, fala sobre o curso da batalha que opõe as Unidades de Proteção Popular curdas às tropas do Estado Islâmico e garante que “a resistência de Kobane é, para os curdos, o nome a dar a uma vida livre”. 

Entrevista conduzida por Sedat Sur para a ANF (Agência de Notícias Curda).

"Podemos dizer que a resistência de Kobane é particularmente uma resistência de mulheres".

Os ataques do Estado Islâmico em Kobane estão a entrar no seu 24º dia e a luta agora ocorre na própria cidade. Poderá partilhar um pouco sobre as condições atuais dentro de Kobane?
Os ataques contra nós têm estado a acontecer há cerca de ano e meio. O Estado Islâmico (EI) está agora a usar todos os meios ao dispor para nos atacar. O nosso povo, juntamente com o YPG/YPJ1, tem enfrentado esses ataques com um grande espírito de resistência. Perdemos mártires em cada vila e em cada colina. Contudo o nosso objetivo é proteger o nosso povo e a nossa terra. Os mais recentes ataques começaram ao longo de cinco frentes ao mesmo tempo. O EI juntou forças em volta do Iraque e da Síria e está a atacar-nos ferozmente, usando armas pesadas terrestres contra nós. A nossa resistência entrou no seu 24º dia, a meta e o sonho deles é levar Kobane a render-se. No entanto nós tal como o YPG/YPJ e o povo curdo mostramo-nos como um grande exemplo de resistência. O EI também sofreu muitos golpes e reveses em Şengal (Sinjar), Maxmur e no Cantão de Cizire. Desta vez eles dirigiram mais uma vez os ataques contra Kobane, que está sob embargo há um ano e meio. Eles anseiam entrar em Kobane para o Eid2. Disseram que iriam realizar as suas orações do Eid em Kobane, mas o espírito de sacrifício e resistência dos combatentes do YPG e a postura honrosa mostrada pelo nosso povo estragaram os sonhos do EI.
Para entrar em Kobane, os bandos do EI terão de passar por cima dos nossos cadáveres. Não entrarão em parte alguma da cidade sem passar por cima dos nossos cadáveres. Dissemos que não abandonaríamos qualquer posição, antes morrer, e nos lugares da cidade onde entraram, os combatentes do YPG resistiram heroicamente e nunca se renderam, prosseguindo até serem martirizados. Não houve lugar algum do qual tenhamos recuado ou simplesmente abandonado uma posição; e não haverá. Os nossos amigos mártires tornaram-nos determinadas em que o EI não entre na cidade, a menos que seja sobre os nossos cadáveres. Só se morrermos, o EI conseguirá entrar. Fora disto, não há maneira. Não houve bairro ou rua por que eles passaram em que as nossas camaradas não tenham sido mártires. Que nós povo saibamos isto bem: as nossas combatentes, que estão a resistir com um espírito resistente de sacrifício, nunca se renderam e nunca deixaram as suas posições sem mártires.
Os primeiros lugares em que eles entraram na cidade foram sul e o leste na Avenida 48, e foi um inferno para eles. Os nossos amigos morreram heroicamente, contudo, nos sítios por onde eles entraram na cidade, sofreram tantas baixas que nem se podiam contar. Podemos dizer que centenas de combatentes do EI foram mortos desde que entraram na cidade. Os combatentes do EI baseiam-se nas armas pesadas. Lutam com tanques, artilharia e mísseis, mas receberam muitos golpes. Sofreram muitas perdas e experimentaram um sério revés. Até agora enfrentamos os bandos do EI com emboscadas e armadilhas, táticas de defesa criativas e uma determinação sacrificial, e tornámos os primeiros lugares em que entraram – ponta sul da cidade e a Avenida 48 – num inferno. E, de agora em diante, Kobane continuará a ser um inferno para eles. Muitos tanques do EI, armas pesadas e dushkas3 foram destruídos. Os veículos foram destruídos. Posso portanto afirmar que foram atingidos por muitos golpes pesados.
Antes de entrar na cidade, o EI lançou pesados ataques contra a colina de Miştenur durante dois dias e combatentes YPG/YPJ mostraram grande resistência nesta colina. Pode falar um pouco sobre a resistência que ocorreu nesta colina?
Antes de entrarem em Kobane mostrou-se grande resistência na colina de Miştenur. Na verdade podemos facilmente chamar-lhe a lenda de Miştenur. O Monte de Miştenur foi atacado com armas muito pesadas tanto do Sul como de leste da aldeia de Helıncê. Antes de chegarem a Miştenur os seus ataques foram vencidos uma e outra vez. Os bandos que avançaram da frente de Helıncê perderam dezenas de homens e depois cercaram Miştenur por todos os lados. Agora, o EI está a aumentar os ataques a Miştenur a partir do leste e do sul.
Muito se pode dizer sobre Miştenur. Quando o EI estava à beira de tomar Miştenur a nossa camarada Arîn Mîrkan infiltrou-se entre eles para o leste e efetuou um ataque suicida no qual morreram muitos membros do EI. Sabemos que o EI perdeu dezenas de combatentes neste ataque. A nossa camarada Arîn e outras camaradas que resistiram até à morte nas suas posições mostraram uma lendária resistência em Miştenur. Desde o início dissemos que "só passarão por cima dos nossos cadáveres". E com a resistência na colina de Miştenur, mostramos isso. Graças à camarada Arîn Mîrkan podemos ver as nossas camaradas que resistiram heroicamente em Miştenur a juntar-se à sequência de mártires. Arîn tornou-se um reflexo de todas as nossas camaradas que resistem com espírito de sacrifício. Ela tornou-se o nome da resistência.
Desde ontem, o povo curdo do norte do Curdistão e das metrópoles da Turquia e da Europa fizeram de todos os lugares verdadeiras Kobanes. O que pode dizer sobre estas serhildans (revoltas)?
Temos estado a aprender com as serhildans que estão a irromper fora do Curdistão e particularmente em Mardin e Amed (Diyarbakir) desde ontem. Quero dizer isto: tem havido muitos exemplos de heroísmo nesta resistência. Isto não é apenas a defesa de uma região, é a defesa de um país e de um povo. Kobane é uma torre de resistência para o povo curdo e a torre da sua existência. É uma torre onde as políticas de negação e de extermínio foram quebradas e onde foi fundado um sistema para uma vida livre. A resistência de Kobane é, para os curdos, o nome a dar a uma vida livre. Por este motivo, esta é uma resistência das quatro partes [do Curdistão] e a resistência e as serhildans que estão a eclodir em todas as partes estão a transformá-las em Kobanes. O nosso povo a viver no Curdistão do Norte e na Europa está a transformar todos os lugares em Kobanes. Estas serhildans estão a dar-nos força e moral. Estão a quebrar o apoio que o [poder] hegemónico tem dado ao EI. A aliança de potências hegemónicas internacionais em Kobane não foi feita só para tomar uma região. Foi feita para quebrar a vontade do povo curdo. Estes poderes conspiratórios querem levar a política de negação que têm continuado durante anos e implementá-la em Kobanê. Neste sentido, Kobane significa as quatro partes do Curdistão. As serhildans nas quatro partes do Curdistão e no Curdistão do Norte em particular, bem como as serhildans do nosso povo a viver na Europa devem continuar. Se Kobane cair, tudo no Curdistão e em todas as cidades da Europa se transformará em Kobane. Nós conhecemos e confiamos no nosso povo quanto a este assunto.
Combatentes de outros povos vieram juntar-se à resistência em Kobane. Como avalia isso?
Os outros povos oprimidos da região devem perceber bem o seguinte: Kobane não é apenas um símbolo da libertação e liberdade do Curdistão, mas um símbolo da liberdade de todos os povos da região. Todos os povos tiveram o seu lugar nesta resistência. Perdemos 10 dos nossos amigos árabes nesta resistência. Um dos nossos camaradas turcos do MLKP4 foi martirizado na resistência em Miştenur. Todos os povos tiveram um lugar nesta resistência e são exemplos de uma resistência histórica. Todos os povos da região estão a unir-se à volta de Kobane contra o EI e as políticas de destruição dos poderes sujos que representa. A resistência de Kobane é a resistência do povo, não é apenas a resistência do povo curdo.
Se Kobane cair, a Turquia também cai”
Num discurso, ontem, o presidente turco Tayyip Erdoğan disse: Kobane caiu, há-de cair. O que pode dizer sobre isto?
Os ataques do EI desenvolveram-se enquanto conceito e esse conceito tornou-se mais claro nos últimos dias. O Estado turco tem uma abordagem muito ambígua quanto a isto e está a dizer que não fornece apoio, contudo todos os desenvolvimentos sinalizam que o Estado turco tem um papel. O Estado turco deve imediatamente abandonar estas políticas ou haverá uma grande catástrofe. E será o Estado turco que perde. A resistência de Kobane é uma resistência para criar uma Turquia democrática. Ao mesmo tempo é uma resistência para a democratização no Iraque, Irã, Síria e Médio Oriente. Neste sentido, Erdoğan deve [entender] que se Kobane cai, a Turquia também vai cair e será um desastre. Será um desastre para a Turquia. Erdoğan diz "caiu, há-de cair". Erdoğan está a sonhar e só pode sonhar com a queda de Kobane. Mas Kobane não está a cair e não cairá. Eu quero perguntar o seguinte: os funcionários governamentais turcos terão tido em conta como os milhões de curdos sacrificados irão, cada um deles, pedir responsabilidades ao Estado turco por isto? Ao mesmo tempo, o povo turco precisa de se revoltar contra esta política como fez o nosso camarada do MLKP que foi martirizado.
Acha que os ataques aéreos das forças da coligação contra o EI em Kobane serão suficientes?
Podemos dizer que as forças da coligação decidiram tardiamente atacar o EI. Tomaram essas decisões muito tarde. Não foram ataques muito ativos com resultados. No entanto, nos últimos dois dias podemos dizer que os ataques aéreos por forças da coligação afetaram os ataques do EI. A luta é agora dentro da cidade e assim é preciso aumentar a coordenação connosco. Se as forças da coligação querem realmente acabar com o EI e são sinceras sobre este assunto, quase todas as forças do EI no Iraque e Síria estão em volta de Kobane, então devem continuada e mais efetivamente atacar os bandos do EI em volta de Kobane e em lugares perto de Kobane em coordenação completa connosco. Se o EI for desfeito em Kobane estará acabado em toda a parte. Podemos dizer que os ataques nos últimos dois dias foram positivos. A coligação também precisa de nos apoiar com armas e munições. Porque temos estado cercados por todos os lados e não temos armas pesadas. Não permitimos que o EI passasse usando as nossas kalashnikovs. Que ninguém se engane, mesmo nas circunstâncias existentes, nós lutaremos contra o EI durante anos, mas a coligação precisa de nos apoiar com armas.
"A resistência de Kobane é a resistência das mulheres"
O que gostaria de dizer para concluir?
Gostaria de tocar a questão da resistência das mulheres que está a acontecer em Kobane. Uma grande resistência está a acontecer em Kobane. Podemos dizer que a resistência de Kobane é particularmente uma resistência de mulheres. Podemos ver mais recentemente na pessoa de Arîn Mîrkan a liderança de sacrifício que as mulheres têm mostrado na resistência em Kobane. Esta resistência também nos mostra até que ponto emergiu uma mulher curda livre. A resistência vai crescer por causa de Arîn Mîrkan e da liderança das mulheres e esses ataques sacrificiais continuarão. Eu quero dizer isto ao povo do Curdistão e a toda a humanidade. Esta resistência é uma resistência de todos os povos e, bem no fundo, a resistência da humanidade contra o bando sujo, desumano do EI. Kobane é a resistência da humanidade. Queremos que toda a humanidade apoie esta resistência. Estamos a honrar a memória das nossas e dos nossos mártires que foram mortos nas serhildans no norte, e prestamos as nossas condolências às suas famílias e ao seu povo.
Traduzido da versão publicada em The Rojava Report em inglês
Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net
1YPG - Yekîneyên Parastina Gel, Unidades de Proteção Popular; YPJ – Yekîneyên Parastina Jinê, Unidades de Proteção de Mulheres
2celebração que marca o fim do jejum do Ramadão
3Armas anti-aéreas
4Marksist Leninist Komünist Parti, da Turquia
Esquerda.net

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