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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O engenho das redes sociais

O esbater das fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer significa, não raras vezes, a comodificação deste último. Como consequência, a monetização das nossas relações e atividades online torna-se regra. O modelo de negócio dos grandes monopólios de redes sociais reduz-nos a um gráfico de fácil extração de valor. Por Lídia Pereira.
“Se não pagas por um serviço, não és um cliente; és o produto a ser vendido.” (Andrew Lewis).
Jeremy Bentham, reformador utilitário do século XIX, sonhava com um mundo onde nada houvesse a esconder, um paraíso de transparência onde todos seriam visíveis e, consequentemente, nenhum segredo existiria - embora, claro, apenas para aqueles que não pudessem pagar o direito à privacidade.
Esta ideia de raízes arquitetônicas seria aplicada à gestão de escolas, prisões, fábricas e outros espaços, tipicamente sociais, de formação do indivíduo. Tudo em bom nome da eficiência e com o sempre tão apropriado nome de Panopticon - um espaço de permanente vigilância e disciplina apresentando magnificentes benefícios à manutenção da infraestrutura econômica. Esta sociedade disciplinar Foucaultiana avançou para aquilo que Deleuze descreve como sociedade de controle, quando a multidão não está mais confinada a um único espaço, testemunhando o aparecimento da multitude. A vigilância da multitude é agora participatória, pois é a maneira como nós participamos com os nossos dados e informações que providencia as ferramentas para o nosso controlo.
Andrew Keen avisa-nos que a prisão do século XIX reapareceu no contexto das redes sociais (ou, como o co-fundador do Linkedin, Reid Hoffman, sugere, Web 3.0), mas com uma reviravolta: é agora considerada uma fonte de entretenimento e prazer. A arquitetura das redes sociais deriva de uma abordagem utilitária cujo objetivo é o de obter a máxima eficiência do sujeito que procura controlar. Fazendo uso do engano e outras ubíquas estratégias tais como a instrumentalização de comunidades e a fatorização/maquinização da atividade social online, o aparelho neoliberal arranjou maneira de cooptar mais uma das suas críticas, etiquetando o modo de exploração da multitude digital sob o disfarce do rótulo "social". Participamos voluntariamente, mas nem sempre conscientemente, da nossa própria incarceração.
As redes sociais, particularmente, beneficiam de conteúdo gerado pelo utilizador, assim contribuindo para sistemas de gestão de dados que poderão ser explorados para o melhoramento de recuperação de informação (com graves implicações políticas nalguns casos), ou para a recolha da mesma para pesquisas de mercado.
O nascimento da multitude desfaz-se da identidade coletiva do trabalhador e emudece a voz política das massas da era industrial. O foco ideológico das redes sociais no indivíduo por oposição ao coletivo apresenta dificuldades à formação de uma consciência política. Não apenas isso, mas as assimetrias políticas, sociais e culturais encontradas no seio da multitude digital apresentam um obstáculo quase impossível de transpôr.
Ayn Rand, escritora e filósofa russa, saiu do seu país nos anos 20 para se mudar para a Califórnia. A sua filosofia era a do "objetivismo", ridicularizando o altruísmo humano e defendendo, ao invés, as "virtudes do egoísmo". A única opção racional, do seu ponto de vista objetivista, seria o de libertar a humanidade de todas as formas de controle político e viver a vida de acordo apenas com os seus próprios desejos egoístas. Apesar da pobre recepção do seu livro, “Atlas Shrugged", na altura do seu lançamento (pois eram perigosos os seus ideais), quarenta anos mais tarde seria considerado o segundo livro mais influente na América. Especialmente influente entre os jovens empreendedores de Silicon Valley, grupos de leitura eram formados para a disseminação das suas ideias. Na percepção destes jovens, também eles eram heróis randianos, isto é, indivíduos racionais seguindo o seu próprio caminho a despeito de tudo o resto. De acordo com Adam Curtis no seu documentário "All Watched Over By Machines of Loving Grace - Love and Power", este projeto pretendia também designar o computador como uma ferramenta com o condão de criar heróis, dessa maneira encorajando o ideal de que nenhum governo central seria necessário pois a ordem social seria atingida através da rede.
Sociogramas, bases de dados e gráficos sociais
Primeiro foi o sociograma, uma representação gráfica das relações sociais, onde cada nódulo representa um sujeito e cada ligação representa uma relação. Introduzido nos anos 30 pelo pai da sociometria, Jacob L. Moreno, o sociograma carrega consigo pesadas intenções de engenharia social. Quanto maior a participação do sujeito, maiores as probabilidades de sucesso da pesquisa sociométrica.
A introdução por Edgar F. Codd, no reino da computação, de bases de dados relacionais como substituição de bases de dados hierárquicas, teve como objetivo o de aumentar os níveis de produtividade. Ao invés da apresentação de dados ser feita através de uma estrutura hierárquica de difícil navegação, onde o modo de endereço a dados específicos é posicional, as bases de dados relacionais apresentam dados e as relações entre os mesmos num formato de tabela, onde a informação é acessível pelo seu valor.
No que diz respeito à armazenação de sujeitos e os seus "valores" relacionados, as bases de dados seguem o mesmo  modelo do sociograma de sobre-simplificação bidimensional de complexas relações, providenciando um alto nível de abstração perfeitamente adaptado à exploração mineira destes dados. Como Evgeny Morozov observa, o mundo ainda está para conhecer uma base de dados que chore pelos seus conteúdos.
No ano de 2007, durante a conferência Facebook F8, foi popularizado o termo Social Graph. A escolha da palavra gráfico foi tudo menos inocente, uma vez que implica assumções ideológicas de análise matemática racional - representando, assim, um passo em frente na direção de ideais positivistas.
Em 2010, o "Social Graph" do Facebook torna-se o maior conjunto de dados mundial a nível das redes sociais. Neste sentido, aproxima-se com sucesso dos ideais de participação de Moreno e sua consequente importância no processo de engenharia social.
Finalizo com uma citação: “Se não pagas por um serviço, não és um cliente; és o produto a ser vendido.” (Andrew Lewis)
Lídia Pereira é designer de comunicação e mestranda em Networked Media em Roterdã.


Bibliografia

Lazzarato, Maurizio. "Immaterial Labor." Immaterial Labor. Trans. Paul Colilli and Ed Emery. Web. February/April/May/June 2014. 
Schäfer, Mirko Tobias. "Claiming Participation." Bastard Culture!. Print. 
Morozov, Evgeny. “The Net Delusion: the Dark Side of Internet Freedom”, 2011
Curtis, Adam. “All Watched Over By Machines of Loving Grace: Love and Power”, 2011
Lovink, Geert. “Networks without a Cause”, 2011
Hui, Yuk e Halpin, Harry. “Collective Individuation: The Future of  the Social Web”
Moreno, Jacob L. Moreno. "Foundations of Sociometry: An Introduction in Sociometry"

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