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domingo, 16 de novembro de 2014

A democracia é “radical” no norte de Síria

O sistema político em vigor nos três cantões de Rojava é um modelo que aposta no autogoverno sem desafiar a unidade territorial da Síria. Em Kobane, tal como em Afrin ou Yazira, está em jogo bem mais do que o mero controlo sobre um enclave fronteiriço. 

Por Karlos Zurutuza, IPS

Amuda, Síria – Esta cidade nortenha de 25.000 habitantes nunca teve nada de particularmente assinalável. No entanto, hoje converteu-se num laboratório para uma das experiências políticas mais inovadoras em toda a região do Médio Oriente.
Situada 700 quilômetros a nordeste de Damasco, Amuda acolhe a sede do chamado “Autogoverno Democrático do cantão de Yazira”. Junto com Afrin e a assediada Kobane, é um dos três enclaves sob controle curdo. Esta afirmação, porém, não é totalmente correta.
Elizabeth Gawrie, vice-presidente, dá conta disso depois de saudar a IPS à entrada do edifício com um shlomo, “paz”, na sua língua siríaca materna.
“Decidimos mudar-nos para aqui em janeiro deste ano por segurança, dado que em Qamishli – a capital provincial, 25 km a leste – continua a haver presença do regime – o Governo de Assad ainda controla o centro da cidade e o aeroporto”, explica esta antiga professora de matemática, enquanto o chá é servido.
Depois do começo da guerra civil na Síria, os curdos do norte do país optaram por uma neutralidade que lhes levou a confrontarem-se tanto com o governo como com a oposição. A chamada “terceira via” atraiu setores de outras comunidades locais como a árabe, ou a siríaca à qual pertence Gawrie. Essa colaboração acabou por se articular num contrato social, uma espécie de “Constituição” pela qual se regem hoje os três cantões.
Os curdos na Síria utilizam “Rojava” (“oeste” na língua curda) para referir-se à região onde são maioria; para os siríacos como Gawrie trata-se de “Gozarto”. Em qualquer caso, não falamos de uma entidade traçada por linhas étnicas.
“Cada cantão conta com o seu próprio Executivo formado por um Presidente, dois Vice-presidentes e vários Ministérios: Economia, Mulher, Comércio, Direitos Humanos... até um total de 22”, detalha Gawrie. Entre os ministros de Yazira, acrescenta, contam-se quatro árabes, três cristãos e um checheno – a Síria acolhe a uma significativa comunidade de origem caucásica desde finais do século XIX.
“Vivemos todos juntos durante séculos e não há motivo para não continuar a fazê-lo”, sublinha a vice-presidente de Yazira, antes de descrever o Autogoverno Democrático como um “modelo de convivência que poderia funcionar em qualquer país”.
Mesmo não existindo perseguição religiosa sob o mandato dos Assad – pai e filho –, aqueles que reivindicassem uma identidade nacional que não fosse a árabe, como é o caso dos siríacos e dos curdos, eram silenciados sistematicamente. Gawrie denuncia que ainda são muitos os membros da sua coligação, o Partido da União Siríaca, que estão presos. Entre eles Said Maliki, seu vice-presidente, que, segundo a colega de partido, faz parte de uma “longa lista de desaparecidos”.
A representante popular reconhece que são muitos os siríacos que permanecem leais a Assad, atitude que atribui ao sentimento de insegurança que sente um sector da sua comunidade diante da atual conjuntura bélica.
“Assad continua a enganar muitos dos nossos prometendo-lhes proteção depois de ter negado a sua existência como povo. É triste”, diz Gawrie.
Em qualquer caso, o castigo infligido às minorias étnicas não significa que os dissidentes árabes se sentissem mais cómodos na Síria dos Assad. No salão onde se reúnem os 25 membros do governo de Yazira, Hussein Xícara al Azam, árabe natural de Qamishli e hoje co-vice-presidente do cantão junto com Gawrie, resume brevemente as últimas cinco décadas na Síria:
“Desde a chegada do partido Baath ao poder em 1963, a Síria foi um país governado por um único partido. Não existia a liberdade de expressão nem se respeitavam os Direitos Humanos... não era mais que um país controlado pelos serviços secretos”, explica este doutor em Economia, que completou os seus estudos na Roménia depois de passar vários anos na prisão pela sua dissidência política.
Até cicatrizarem as feridas de um passado ainda demasiado recente, o artigo 3º do Contrato Social em vigor nos três cantões retrata o de Yazira como “étnica e religiosamente diverso”. O 9º reconhece as línguas curda, árabe e siríaca como oficiais nesse cantão, acrescentando que cada comunidade “tem direito à educação na sua própria língua”.
Mas não são os direitos linguísticos o único motivo de orgulho de Azam.
“Os três cantões são parte integral de Síria”, cita, assim como “um modelo para um sistema de governo descentralizado”.
Máxima autonomia local”
Os membros do governo de Yazira pertencem a 11 partidos políticos e também há espaço para os independentes. Desde que as diferentes comunidades assumiram o controlo dos três enclaves, em julho de 2012, alguns sectores denunciaram uma suposta hegemonia do Partido da União Democrática (PYD) sobre os territórios. Salih Muslim, co-presidente deste último nega que o seu partido tenha desempenhado um papel preponderante, e define as suas linhas de atuação:
“No PYD defendemos a autodeterminação direta, também chamada 'democracia radical'. Basicamente consiste em descentralizar o poder para que o povo seja capaz de tomar e executar as suas próprias decisões. É uma versão mais sofisticada do conceito de democracia que está em total sintonia com muitos dos recentes movimentos sociais na Europa”, assegurou à IPS o líder político.
Manuel Martorell, escritor e jornalista especialista em Médio Oriente, assegura que o autogoverno democrático recorda “os objetivos do sistema foral nas suas origens: máxima autonomia local sem pôr em questão a unidade do Estado”.
“Pode não ser o conceito de independência como o conhecemos, mas o centro da questão é que esta gente está realmente a autogerir-se”, acrescenta o especialista à IPS. Martorell, que qualifica a experiência “sem precedentes no Médio Oriente”, considera-o “um bom método para unificar as formas de governo entre os curdos do Irão, Iraque, Síria e Turquia e pôr em marcha um sistema económico e social próprios”.
Trata-se de uma leitura que subscreve Akram Hesso, o Presidente do cantão de Yazira. A complicada conjuntura bélica impediu que se possam realizar eleições, e por isso Hesso sente-se obrigado a explicar como ocupa um cargo de semelhante responsabilidade desde há oito meses.
“Mantivemos várias reuniões depois das quais se criou um comité de 98 membros representativos das diferentes comunidades e correntes políticas. Foram eles os responsáveis por eleger os 25 que formam hoje o governo”, explica este advogado que diz não estar vinculado a nenhum partido político.
No dia 15 de outubro, o Parlamento do Curdistão Sul votou a favor do reconhecimento oficial dos três cantões integrados no Autogoverno Democrático e instou Irbil a estreitar vínculos com as administrações de Afrin, Kobane e Yazira.
Hesso fala de um “passo em frente”, mas sem esquecer quem torna possível que o Autogoverno Democrático seja hoje uma realidade.
“A poucos quilómetros daqui há gente a dar a vida para proteger-nos”, recorda Hesso. Afrin, Yazira ou Kobane, acrescenta, “não representam uma questão puramente territorial mas também um ideal de convivência pacífica”.

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