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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

"É fundamental reeducarmo-nos em relação ao que e como comemos"

Nesta entrevista, a investigadora Esther Vivas, autora de "O negócio da comida", defende a aplicação de políticas que promovam o comer bem, e destaca que começa a surgir nalguns setores o questionamento do modelo agroalimentar. 
Por Luzia Villa, Público.es
A jornalista e investigadora Esther Vivas publica “El negocio de la comida”, um livro que mergulha nas entranhas da nossa alimentação para denunciar os prejuízos derivados de um sistema que produz contaminação, pobreza, fome, desigualdade e doenças.
É imprescindível que o movimento pela soberania alimentar, o comércio justo, por um mundo rural vivo se unam com outros atores sociais para uma mudança de rumo do sistema. Foto de anticapitalistas.net
Encher o frigorífico, para além de acalmar estômagos, pode também ser, por vezes, um exercício prático de remover consciências. É esta em parte a sensação com que se fica após ler “El negocio de la comida” (Icaria editorial, 2014), um exaustivo ensaio da jornalista e investigadora Esther Vivas, que esmiúça uma a uma as devastadoras e na maior parte das vezes ignoradas consequências dos nossos hábitos de alimentação. Desde a especulação em torno do preço dos alimentos básicos, como o trigo ou o arroz, até às condições laborais das agricultoras... um percurso da terra ao prato no qual a autora denuncia os impactos que o sistema do agronegócio tem sobre a sociedade, a economia, a saúde, o meio-ambiente, a igualdade ou a pobreza, e no qual, apesar do panorama desesperador, são expostos modelos de alternativas viáveis.

Em “El negocio de la comida”, denuncia todas as consequências de um singelo alimento. Após lê-lo, dá a sensação de que não se pode fazer compras sem contribuir para empobrecer certos países, contaminar o meio-ambiente, enriquecer especuladores ou adoecer? É realmente possível um consumo de alimentos responsável?
Evidentemente que quando analisamos em profundidade o modelo agroalimentar e olhamos para as entranhas desse sistema dominado pela agroindústria e pelos supermercados, podemos ficar com uma sensação de impotência devido aos impactos tão negativos. Do meu ponto de vista, o que é fundamental é ter a informação. Ter outros olhares sobre este sistema agroalimentar e a partir daí forjar um critério próprio para, a partir da informação, passar à ação. Precisamos de dados para podermos decidir por nós mesmos. O livro tenta analisar em profundidade a face oculta deste modelo agroalimentar para indignar-nos e propor alternativas.
Dá a impressão, pela dimensão do que conta, que uma mudança de modelo demoraria muito a chegar.
Eu acho que se pode começar a mudar as coisas aqui e agora. Uma vez conheci uma pessoa que me dizia que quanto mais conhece o funcionamento dos supermercados e da grande distribuição, menos compra neles. A nossa tomada de consciência implica mudanças na nossa vida quotidiana, sempre em função das nossas inquietações e necessidades, claro. Mas podem-se levar a cabo outras práticas no consumo. Muitas já funcionam. Experiências de grupos e cooperativas de consumo, hortas urbanas, consumo ecológico são iniciativas que crescem hoje em dia e que demonstram que outros modelos são possíveis.
No seu livro assinala um beneficiário claro do mercado alimentar: as multinacionais e grandes empresas. É inegável a sua responsabilidade, mas e quanto aos governos? Por que não se fazem os regulamentos adequados?
Sem dúvida, o que vemos é que a administração atua ao serviço dos interesses do agronegócio e dos supermercados. A dinâmica de portas giratórias que vemos noutros âmbitos, como o energético, também se dá na agricultura e na alimentação. Sem ir mais longe, a atual diretora da Agência Espanhola de Segurança Alimentar, a senhora Ángela López de Sá Fernández, esteve durante dez anos na direção da Coca Cola. Há um claro conflito de interesses entre quem está à frente de uma agência que tem de cuidar da nossa segurança alimentar e que vem de uma empresa privada que utiliza nos seus produtos alguns aditivos alimentares que deixam muito que desejar.
E o resto da sociedade, importa-se com o que come?
O que vemos no contexto de crise do sistema político e económico atual é que apesar de tomarmos consciência da subordinação das políticas sociais e económicas aos interesses da banca e do poder económico, não acontece o mesmo com a análise que fazemos do que comemos. A lógica da usura que impera nas políticas relacionadas com o uso da moradia, por exemplo, que contam com o apoio da maior parte da classe política, é a mesma das políticas agroalimentares. Mercantilizam-se direitos e necessidades básicas, quer seja acesso à moradia, à saúde, à educação ou aos alimentos.
Com muita frequência aponta-se para os EUA quando se fala de hábitos de alimentação pouco saudáveis. Em Espanha sempre se aplaudiu a dieta mediterrânica. É um país onde as cadeias de fast food tem dificuldades de se instalar, não fazem tanto sucesso. No entanto os índices de obesidade infantil não param de crescer. Vinte por cento das crianças espanholas são obesas. Que acontece em Espanha?
A dieta mediterrânica foi substituída pouco a pouco por um modelo de alimentação fast food, com açúcares acrescentados, gorduras saturadas e alimentos processados que têm um impacto negativo na nossa saúde. Isto agudizou-se com a crise económica: a perda de poder aquisitivo de muitas famílias levou-as a gastar mais em comida, mas a comer menos e de pior qualidade. Vários estudos evidenciam como alimentos congelados, bolos, etc., tiveram o consumo aumentado nos últimos tempos de crise.
Isto é curioso, porque, ainda que a carne e o peixe sejam mais caros, muitos outros produtos não são. Um pacote de lentilhas, por exemplo, é mais barato e alimenta mais pessoas, além de ser mais são, que uma pizza congelada.
Sim, acho que aí há dois elementos. Em primeiro lugar, se virmos uma cesta de compras – a mais saudável, onde não só haja fruta e verduras, mas também peixe, carne, leite, etc. – e a comparamos com uma cesta de produtos congelados, com bolos, gelados, esta sai mais barata, segundo um relatório recente publicado no Reino Unido. Mas é verdade que se podia comer bem gastando menos. O que acontece com frequência é que não sabemos, não nos ensinaram a cozinhar nem a comer de uma maneira saudável. E muitas vezes há uma tendência para comprar alimentos processados porque consideramos que são melhores e porque são os mais fáceis e rápidos de cozinhar. Deste ponto de vista, acho que é fundamental uma verdadeira reeducação no que comemos e como comemos. Aqui há também uma clara questão de classe social vinculada à nossa alimentação. Em geral, as famílias com menos recursos tendem a ter uma alimentação de menor qualidade, por uma questão económica, mas também por um elemento educativo, cultural, de não valorizar a alimentação.
No entanto a gastronomia vive um momento importante. Por todos lados há programas e concursos televisivos sobre cozinha, blogs de receitas, guias de restaurantes, rotas e feiras. Cozinhar está na moda? Isto pode ajudar a mudar os hábitos de uma sociedade?
Bom, entraram na moda determinados shows culinários, mas que se ficam no espetáculo e não aprofundam a educação nem os critérios saudáveis para a nossa alimentação. Mas é verdade que na sociedade foi crescendo o interesse por questionar o que comemos, ou apostar numa alimentação com mais qualidade, mas costuma ser um interesse de determinadas classes sociais, pessoas com certos estudos, que tendem a investir e a apostar numa comida de qualidade; mas não é uma tendência que chegue ao conjunto da população. Porque depende mais de uma inquietação individual que de políticas ativas por parte da administração. O repto está em que este questionamento do modelo agroalimentar que começa a surgir nalguns setores seja acessível ao conjunto da população, fruto de políticas que promovam o comer bem.
Uma proposta: imaginemos que todos as cantinas coletivas públicas apostassem numa alimentação ecológica, de proximidade com o campo, nas escolas, nas universidades, nos centros de saúde, hospitais, etc. Tudo isto iria permitir-nos não só comer bem, como também reativar o sistema produtivo camponês em escala nacional e portanto seria uma aposta tanto a nível social como económica.
No seu livro, para explicar todos os fatores que influem na nossa alimentação e nas suas alternativas, passa pelos movimentos feminista e ecologista e por outros movimentos cidadãos e de soberania popular. Não se podem entender uns e outros para mudar o que comemos e como comemos?
Bom, a mercantilização do que comemos é apenas mais um exemplo de como o sistema capitalista converte as nossas necessidades em privilégios e em objeto de negócio por parte de umas poucas empresas. É fundamental enquadrar a procura de outros hábitos de consumo num questionamento global do sistema. Daí que seja imprescindível que o movimento pela soberania alimentar, o comércio justo, por um mundo rural vivo se unam com outros atores sociais para uma mudança de rumo do sistema.
Também é verdade que surgiu um novo mercado em torno do alternativo. Vemos com frequência produtos etiquetados como “justos” ou “ecológicos”...
O que vemos é que o capitalismo, os supermercados, as grandes empresas vestem-se de verde e de solidários se isto lhes cobre um determinado nicho de mercado ou lhes permite uma estratégia de marketing empresarial. Mas que ponham nas suas prateleiras, ou que abram linhas de produtos ecológicos ou de comércio justo, não implica uma transformação ou uma mudança destas políticas. Não se trata de comprar só um produto etiquetado como ecológico ou como justo, mas também que este tenha uma componente de transformação social acrescentada. Há produtos etiquetados como ecológicos mas que vêm da América Latina. Onde está a justiça ecológica com um produto que tem milhares de quilómetros às costas, apesar de o seu cultivo ser livre de agroquímicos?

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