EDGAR MORIN: O EVANGELHO DA PERDIÇÃO - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

EDGAR MORIN: O EVANGELHO DA PERDIÇÃO

In: MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria.P. Alegre, Sulina (3ª. Ed.), 2000. pg.171-182.

A perda da salvação, a aventura desconhecida

Se houvesse navegadores do espaço, sua rota no aglomerado de Viagem ignoraria a muito marginal Via Láctea e passaria longe do pequeno sol periférico que tem em sua órbita o minúsculo planeta Terra. Como Robinson em sua ilha, pusemo-nos a enviar sinais em direção às estrelas, até agora em vão, e talvez em vão para sempre. Estamos perdidos no cosmos.
Esse cosmos formidável está ele próprio votado à perdição. Ele nasceu, portanto é mortal. Dispersa-se a uma velocidade espantosa, enquanto astros se chocam, explodem, implodem. Nosso Sol, que sucede a dois ou três outros sóis defuntos, se consumirá. Todos os seres vivos são lançados na vida sem o terem pedido, estão prometidos à morte sem o terem desejado. Vivem entre nada e nada, o nada de antes, o nada de depois, cercados de nada durante. Não são apenas os indivíduos que estão perdidos, mas, cedo ou tarde, a humanidade, depois os últimos vestígios de vida, finalmente a Terra. O próprio mundo vai em direção à morte, seja por dispersão generalizada ou por retomo implosivo à origem... Da morte deste mundo um outro mundo nascerá talvez, mas o nosso estará irremediavelmente morto. Nosso mundo está votado à perdição. Estamos perdidos.

Este mundo que é o nosso é muito frágil na base, quase inconsistente: nasceu de um acidente, talvez de uma desintegração do infinito, a menos que consideremos que surgiu do nada. De qualquer modo, a matéria conhecida não é senão uma ínfima parte da realidade material do universo, e a matéria organizada não é senão uma ínfima parte dessa ínfima parte. São as organizações entre entidades materiais, átomos, moléculas, astros, seres vivos, que adquirem consistência e realidade para nossos espíritos; são as emergências que surgem dessas organizações, a vida, a consciência, a beleza, o amor, que, para nós, têm valor: mas essas emergências são perecíveis, fugazes, como a flor que desabrocha, o brilho de um rosto, o tempo de um amor...

A vida, a consciência, o amor, a verdade, a beleza são efêmeros. Essas emergências maravilhosas supõem organizações de organizações, oportunidades inusitadas, e elas correm a todo instante riscos mortais. Para nós, elas são fundamentais, mas elas não têm fundamento. Nada tem fundamento absoluto, tudo procede em última ou primeira instância do sem-nome, do sem-forma. Tudo nasce da circunstância, e tudo o que nasce está prometido à morte.

E vejam: as últimas emergências, os últimos produtos do devir, a consciência, o amor, devem ser reconhecidos como primeiras normas e primeiras leis.

Mas eles não adquirirão a perfeição nem a inalterabilidade. O amor e a consciência morrerão. Nada escapará à morte. Não há salvação no sentido das religiões de salvação que prometem a imortalidade pessoal. Não há salvação terrestre, como prometeu a religião comunista, ou seja, uma solução social em que a vida de cada um e de todos se veria livre da infelicidade, do acaso, da tragédia. É preciso renunciar radical e definitivamente a essa salvação.

Precisamos também renunciar às promessas infinitas. O humanismo ocidental nos votava a conquista da natureza, ao infinito. A lei do progresso nos dizia que este devia ser perseguido sem descanso e sem fim. Não havia limite ao crescimento econômico, à inteligência humana, à razão. O homem havia se tornado para si mesmo seu próprio infinito. Podemos hoje rejeitar esses falsos infinitos e tomar consciência de nossa irremediável finitude. Como diz Gadamer, é preciso “deixar de pensar a finitude como a limitação na qual nosso querer-ser infinito fracassa, (mas) conhecer a finitude positivamente como a verdadeira lei fundamental do dasein”. O verdadeiro infinito está além da razão, da inteligibilidade, dos poderes do homem. Será que ele nos atravessa de lado a lado, totalmente invisível, e se deixa apenas pressentir por poesia e música?

Ao mesmo tempo que a consciência da finitude, podemos doravante ter uma consciência de nossa inconsciência e um conhecimento de nossa ignorância: podemos saber doravante que estamos na aventura desconhecida. Acreditamos, confiando numa pseudociência, que conhecíamos o sentido da história humana. Mas, desde a aurora da humanidade, desde a aurora dos tempos históricos, estávamos já numa aventura desconhecida, e nela estamos mais que nunca. O curso seguido pela história da era planetária saiu da órbita do tempo reiterativo das civilizações tradicionais para entrar num devir cada vez mais incerto.

Estamos votados à incerteza que as religiões de salvação, inclusive a terrestre, acreditaram ter eliminado: “Os bolcheviques não queriam ou não podiam compreender que o homem é um ser frágil e incerto, que realiza uma obra incerta num mundo incerto”.

(D. Tchossitch, Le Temps du mal, I, Paris. L'Age d'Homme, 1990, p.186)

Precisamos compreender que a existência no mundo físico (e a do próprio mundo físico) se paga a um preço extraordinário de degradação, de perda, de ruína, que a existência viva se paga a um preço extraordinário de sofrimento, que toda alegria, toda felicidade humanas se fazem pagar e se farão pagar pela degradação, a perda, a ruína e o sofrimento.

Estamos na itinerância. Não marchamos por um caminho demarcado, não somos mais teleguiados pela lei do progresso, não temos nem messias nem salvação, caminhamos na noite e na neblina Mas não se trata de errância ao acaso, ainda que haja acaso e errância; podemos ter também idéias-guias, valores eleitos, uma estratégia que se enriquece ao modificar-se. Não se trata apenas de uma marcha para o abatedouro. Somos movidos por nossas aspirações, podemos dispor de vontade e de coragem. A itinerância se alimenta de esperança. Mas é uma esperança privada de recompensa final; ela navega no oceano da desesperança.

A itinerância está votada a este mundo, isto é, ao destino terrestre. Mas contém ao mesmo tempo uma busca do mais além. Não do “mais além” fora do mundo, mas do “mais além” do hic et nunc, do “mais além” da miséria e da infelicidade, do “mais além” desconhecido próprio justamente da aventura desconhecida.

É na itinerância que se inscreve o ato vivido. A itinerância implica a revalorização dos momentos autênticos, poéticos, extáticos da existência, e igualmente - já que todo objetivo atingido nos lança num novo caminho e toda solução inaugura um novo problema - uma desvalorização relativa das idéias de objetivo e de solução. A itinerância pode plenamente viver o tempo não apenas como continuum que liga passado/presente/futuro, mas como retorno às fontes (passado), ato (presente) e possibilidade (tensão voltada ao futuro).

Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a inquietude, devemos assumir o dasein, fato de estar aí sem saber por quê. Cada vez mais haverá fontes de angústia e cada vez mais haverá necessidade de participação, de fervor, de fraternidade, os únicos que sabem, não aniquilar, mas rechaçar a angústia. O amor é o antídoto, a réplica - não a resposta - à angústia. É a experiência fundamentalmente positiva do ser humano, em que a comunhão, a exaltação de si, do outro, são levadas ao seu melhor, quando não se alteraram pela possessividade. Será que não se poderia degelar a enorme quantidade de amor petrificado em religiões e abstrações, votá-lo não mais ao imortal, mas ao mortal?


A boa-má nova

Mas, mesmo assim, a perdição permanecerá inscrita em nosso destino.

Eis a má nova: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos. Se há um evangelho, isto é, uma boa nova, esta deve partir da má: estamos perdidos mas temos um teto, uma casa no planeta onde a vida criou seu jardim, onde os humanos formaram seu lar, onde doravante a humanidade deve reconhecer sua casa comum.

Não é a Terra prometida, não é o paraíso terrestre. É nossa pátria, o lugar de nossa comunidade de destino de vida e morte terrestres. Devemos cultivar nosso jardim terrestre o que quer dizer civilizar a Terra. O evangelho dos homens perdidos e da Terra-Pátria nos diz: sejamos irmãos, não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos.(Na verdade, a idéia de salvação nascida da recusa da perdição trazia em si a consciência recalcada da perdição. Toda religião de vida após a morte trazia em si, recalcada, a consciência da irreparabilidade da morte.)

Sejamos irmãos, para viver autenticamente nossa comunidade de destino de vida e morte terrestres. Sejamos irmãos, porque somos solidários uns dos outros na aventura desconhecida.

Como dizia Albert Cohen: “Que esta espantosa aventura dos humanos que chegam, riem, se mexem, depois subitamente param de se mexer, que esta catástrofe que os espera não nos faça ternos e compassivos uns para com aos outros, isto é inacreditável”.(O vous, frères humains, Paris, Gallimard, 1972.)

 Ela não é nova, a má nova: desde a emergência do espírito humano, houve tomada de consciência da perdição, mas essa tomada de consciência foi abafada pela crença na sobrevivência e pela esperança da salvação. Todavia, cada um é secretamente acompanhado pela idéia da perdição, cada um a carrega consigo em profundidades maiores ou menores. Ela não é nova, a boa nova: o evangelho dos homens perdidos regenera a mensagem de compaixão e comiseração pelo sofrimento do príncipe Sakyamuni e o sermão da montanha de Jesus de Nazaré, mas, no cerne da boa nova, não há nem salvação por salvaguarda/ressurreição do eu, nem libertação por desaparecimento do eu.


O apelo da fraternidade

O apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de “boa vontade” que veiculam essa mensagem. Talvez eles sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos, os temos, os mestiços, os bastardos e outros intermediários.

O apelo à fraternidade não deve apenas atravessar a viscosidade e a impermeabilidade da indiferença. Deve superar a inimizade. A existência de um inimigo mantém ao mesmo tempo nossa barbárie e a dele. O inimigo é produzido por cegueira às vezes unilateral, mas que se torna recíproca quando respondemos com uma inimizade que nos torna igualmente hostis. É verdade que os egocentrismos e os etnocentrismos, que suscitaram e não cessam de suscitar inimigos, são estruturas inalteráveis da individualidade e da subjetividade (E. Morin, La Méthode, t. 2, La Vie de la Vie, op. cit, p. 164-173), mas, assim como essa estrutura comporta um princípio de exclusão no eu, ela comporta um princípio de inclusão num nós, e o problema chave da realização da humanidade é ampliar o nós, abraçar, na relação matri-patriótica terrestre, todo ego altere reconhecer nele um alter ego, isto é, um irmão humano.

Precisamos superar a repulsa diante do que não se conforma às nossas normas e aos nossos tabus, e superar a inimizade contra o estrangeiro, sobre o qual projetamos nossos temores do desconhecido e do estranho; isso requer um esforço recíproco que venha desse estrangeiro, mas é preciso que alguém comece...

Há o inimigo que matou, violou, torturou. Mas não podemos excluí-lo da espécie humana, e não podemos nos fechar à possibilidade do arrependimento. A concepção complexa da multipersonaÍidade nos ensina que há várias pessoas num único indivíduo, e que não podemos encerrar esse indivíduo em sua pessoa criminal. Definir um ser humano como criminoso, dizia Hegel, é suprimir-lhe todos os seus outros traços humanos que não são criminosos. Ninguém pode ser condenado para sempre. A magnanimidade, o arrependimento e o perdão nos indicam a possibilidade de deter o círculo vicioso da vendeta, da punição, da vingança - nossa contra o inimigo e do inimigo contra nós. Precisamos deter a máquina infernal permanente que fabrica sem parar e em toda parte crueldade com crueldade. Também aqui não esperemos resolver esses problemas de forma paradisíaca, mas saibamos lutar contra o horror uma vez que, como vimos, uma das finalidades planetárias profundas é a resistência contra a crueldade do mundo.

(Sabemos também que a grande dificuldade é poder viver sem bode expiatório. O bode expiatório está profundamente ancorado não apenas em nossa animalidade, mas também em nossa humanidade, alimentado pelos tormentos, as preocupações e as angústias propriamente humanos).

Habitar a Terra. Viver por viver.

Somos habitantes da terra.

Citamos Hölderlin e completamos sua frase dizendo: prosaicamente e poeticamente, o homem habita a Terra. Prosaicamente (trabalhando, visando objetivos práticos, procurando sobreviver) e poeticamente (cantando, sonhando, gozando e amando, admirando), habitamos a Terra.

A vida humana é tecida de prosa e de poesia. A poesia não é apenas uma variedade de literatura, é também um modo de viver na participação, o amor, o fervor, a comunhão, a exaltação, o rito, a festa, a embriaguez, a dança, o canto, que efetivamente transfiguram a vida prosaica feita de tarefas práticas, utilitárias, técnicas. De resto, todo ser humano fala duas linguagens a partir de sua língua. A primeira denota, objetiviza, funda-se na lógica do terceiro excluído; a segunda fala antes através da conotação, isto é, o halo de significações contextuais que cerca cada palavra ou enunciado, joga com a analogia e a metáfora, tenta traduzir as emoções e os sentimentos, permite à alma exprimir-se. Do mesmo modo, há em nós dois estados freqüentemente separados, o estado primeiro ou prosaico, que corresponde às atividades racionais/empíricas, e o estado justamente dito “segundo”, que é o estado poético, mas também a música, a dança, a festa, a alegria, o amor, e que culmina em êxtase.

É no estado poético que o estado segundo torna-se primeiro.

Fernando Pessoa dizia que em cada um de nós há dois seres: o primeiro, o verdadeiro, é o de seus devaneios, de seus sonhos, que nasce na infância e prossegue por toda a vida, e o segundo, o falso, é o de seus aparências, de seus discursos e de seus atos. Diremos de outro modo: dois seres coexistem dentro de nós, o do estado prosaico e o do estado poético; esses dois seres constituem nosso ser, são suas duas polaridades, necessárias uma à outra: se não houvesse prosa, não haveria poesia: o estado poético só se manifesta como tal em relação ao estado prosaico.

O estado prosaico nos coloca em situação utilitária e funcional e sua finalidade é utilitária e funcional.
O estado poético pode estar ligado a finalidades amorosas ou de fraternidade, mas é também em si mesmo seu próprio fim.

Os dois estados podem se opor, se justapor ou se misturar. Nas sociedades arcaicas, havia interações estreitas entre ambos: o trabalho cotidiano, a preparação da farinha no almofariz, por exemplo, era acompanhado de cantos e escandido por ritmos; os preparativos para a caça ou a guerra se faziam por ritos miméticos que comportavam cantos e danças. As civilizações tradicionais viviam da alternância entre as festas, momentos de suspensão dos tabus, de exaltação, de desperdício, de embriaguez, de consumo, e a vida cotidiana, submetida às coerções, votada à frugalidade e à parcimônia.

A civilização ocidental moderna separou prosa e poesia. Rarefez e em parte esvaziou as festas em proveito do lazer, noção-sacola que cada um preenche como puder. A vida de trabalho e a vida econômica foram invadidas pela prosa (lógica do ganho da rentabilidade,e etc.(Há evidentemente, na vontade de riqueza e de lucro, no exercício do comando de empresa, nos riscos do jogo da Bolsa, nas aventuras da estratégia, fontes de volúpia poética, da qual se valem capitalistas e empresários...); a poesia refugiou-se na vida privada, de lazer e de férias e teve seus desenvolvimentos próprios com os amores, os jogos, os esportes, os filmes e, evidentemente, a literatura e a poesia propriamente ditas.

(Houve duas revoltas históricas da poesia literária contra a vida prosaica, utilitária, burguesa. A primeira, no início do século XIX, foi o romantismo, especialmente em sua origem alemã. A segunda foi o surrealismo, que manifestou como o romantismo, mas de maneira mais explícita, ’a recusa da poesia de se deixar encerrar numa pura e simples expressão literária, e sobretudo a vontade de se encarnar na vida. O surrealismo quis levar adiante o empreendimento de desprosaização da vida cotidiana iniciado por Arthur Rimbaud, para revelar o maravilhoso no cotidiano aparentemente mais sórdido ou mais banal.)

Hoje, neste fim de milênio, a hiperprosa se estendeu, com a invasão da lógica da máquina artificial em todos os setores da vida, a hipertrofia do mundo tecnoburocrático, o alastramento do tempo cronometrizado, sobrecarregado e estressado em deterimento do tempo natural de cada um. A traição e a derrocada da esperança poética do triunfo universal da fraternidade espalhou um grande lençol de prosa sobre o mundo. E, enquanto em toda parte, sobre as ruínas da promessa poética de mudar a vida, os retornos às fontes étnicos e religiosos se esforçam por regenerar as poesias da participação comunitária, a prosa do econocratismo e do tecnocratismo, que reduz a política à gestão, triunfa no mundo ocidental, certamente por algum tempo, mas o tempo deste presente. Ora, mesmo que a política não deva mais assumir o sonho de eliminar a prosa do mundo realizando a felicidade na Terra, ela não deve se encerrar no prosaico. Vale dizer que a política do homem não tem por objetivo apenas “a sociedade industrial evoluída”,“a sociedade pós-industrial” ou “o progresso técnico”. A política do desenvolvimento, no sentido em que a entendemos, e que comporta dentro dela a ideia de meta-desenvolvimento, requer a plena consciência das necessidades poéticas do ser humano.

Nessas condições, a invasão da hiperprosa requer uma contra-ofensiva poderosa de poesia, que por sua vez iria de par com o renascimento fraternitário e o aparecimento do evangelho da perdição.

Com efeito, a tomada de consciência da Terra-Pátria pode por si mesma nos colocar em estado poético. A relação com a terra é estética e, mais ainda, amorosa, às vezes extática. Como não vacilar de êxtase quando de repente uma enorme lua surge com assombro no horizonte da noite que nasce? Como não chegar quase a desfalecer ao contemplar o vôo das andorinhas? Serão apenas maravilhosas máquinas voadoras, gritam unicamente para se comunicar alguma informação? Não terão uma volúpia, uma embriaguez louca em dar viravoltas, mergulhar até o chão, subir de novo ao céu, roçar-se mutuamente sem jamais se tocar?

É vão, repetimos, sonhar com um estado poético permanente que, de resto, se cansaria de si próprio ou se tornaria selvagem se fosse ininterrupto. Isso seria ressuscitar de outra forma as ilusões da salvação terrestre. Estamos condenados à complementaridade e à alternância poesia/prosa.

Temos necessidade vital de prosa, já que as atividades práticas prosaicas nos fazem sobreviver. Mas com freqüência, no reino animal, as atividades do sobreviver (buscar o alimento, a presa, defender-se contra os perigos, as agressões) devoram o viver, isto é, o gozar. Hoje, na Terra, os humanos passam grande parte de seu viver a sobreviver.

Precisamos trabalhar para que o estado segundo se torne primeiro. É preciso tentar viver não apenas para sobreviver, mas também para viver. Viver poeticamente é viver por viver.

O evangelho da perdição

O evangelho de fraternidade é para a ética o que a complexidade é para o pensamento: ele apela a não mais fracionar, separar, mas ligar, ele é intrinsecamente re-ligioso, no sentido literal do termo.

Religioso? Como não ficar embaraçado e incerto diante desta palavra? Ela está ligada a demasiados conteúdos divinos que lhe parecem consubstanciais, mesmo se a tomarmos em seu sentido mínimo: re-ligar.
De fato, a religião, no sentido ordinário do termo, se define em termos opostos aos do evangelho da perdição: uma fé em deuses ou num deus supremo, com cultos e ritos de veneração. A religião de salvação promete, além disso, uma vida gloriosa após a morte.

Na verdade, a religião com deus(es) é uma religião do primeiro tipo. A Europa moderna viu surgir religiões sem deuses que se ignoravam como tais e que podemos chamar religiões do segundo tipo. Assim, o Estado-nação extraiu dele mesmo sua própria religião. Depois, foi a esfera leiga, racional, científica que elaborou religiões terrestres. Robespierre quis uma religião da razão, Augusto Comte acreditou fundar uma religião da humanidade, Marx criou uma religião de salvação terrestre que se proclamou ciência. Pode-se mesmo pensar que o espírito republicano da França da Terceira República tinha algo de religioso, no sentido em que religava seus fiéis pela fé republicana e pela moral cívica. Malraux, ao anunciar que o século XXI seria religioso, não viu que o século XX era fanaticamente religioso, mas inconsciente da natureza religiosa de suas ideologias.

Assim, a palavra religião não pode mais se limitar às religiões com deuses. Mas, como recusamos considerar uma religião do segundo tipo (providencialismo e salvação), por que evocar a palavra religião?

Porque temos necessidade, para levar adiante a hominização e civilizar a Terra, de uma força comunicante e comungante.

É preciso um impulso, religioso neste sentido, para operar em nossos espíritos a reliance entre os humanos, que por sua vez estimule a vontade de ligar os problemas uns aos outros.

Pode-se considerar uma religião terrestre do terceiro tipo que seria uma religião da perdição?

Se o evangelho dos homens perdidos e da Terra-Pátria pudesse dar vida a uma religião, seria uma religião em ruptura tanto com as religião da salvação celeste quanto com as religiões da salvação terrestre, tanto com as religiões com deuses quanto com as ideologias que ignoram sua natureza religiosa. Mas seria uma religião capaz de compreender as outras religiões e de ajudá-las a reencontrar sua fonte. O evangelho da anti-salvação pode cooperar com o evangelho da salvação justamente na fraternidade que lhes é comum.
Essa religião, muitos de nós já a pré-vivemos, mas isoladamente, sem estarmos ainda re-ligados pela força comunicante e comungante.

Essa religião comportaria uma missão racional: salvar o planeta, civilizar a Terra, realizar a unidade humana e salvaguardar sua diversidade. Uma religião que asseguraria, e não proibiria, o pleno emprego do pensamento racional. Uma religião que se encarregaria do pensamento leigo, problematizante e autocrítico oriundo da Renascença européia.

Seria uma religião no sentido mínimo do termo. Esse sentido mínimo não é redução ao racional. Ele contém algo de sobre-racional: participar daquilo que nos ultrapassa, abrir-se ao que Pascal chamava caridade e que podemos também chamar com-paixão. Compreende um sentimento místico e sagrado. Apela talvez a um ritual. Toda comunidade tem necessidade de comunhão. Nos ritos em que comungam os fiéis, estes sentem fortemente uma identidade que se liga a um sobre-racional e a um sobre-real, por eles chamado deus(es).

Seria uma religião sem deus, mas na qual a ausência de deus revelaria a onipresença do mistério.
Seria religião sem revelação (como o budismo), uma religião de (amor (como o cristianismo), de comiseração (como o budismo), na qual não haveria nem salvação por imortalidade! ressurreição do eu, nem libertação por desaparecimento do eu.

Seria uma religião das profundezas: a comunidade de sofrimento e de morte.

Seria uma religião sem verdade primeira, nem verdade final. Não sabemos por que o mundo é mundo, por que estamos no mundo, por que desapareceremos nele, não sabemos quem somos.

Seria uma religião sem providência, sem futuro radioso, mas que nos ligaria solidariamente uns aos outros na Aventura desconhecida.

Seria uma religião sem promessa mas com raízes: raízes em nossas culturas, raízes em nossa civilização, raízes na história planetária, raízes na espécie humana, raízes na vida, raízes nas estrelas que forjaram os átomos que nos constituem, raízes no cosmos onde apareceram as partículas que constituem nossos átomos.
Seria uma religião terrestre, não supraterrestre, e não mais de salvação terrestre. Mas seria uma de salvaguarda, de salvamento, de liberação de fraternidade.

Seria uma religião, como toda religião, com fé, mas, diferente das outras religiões que recalcam a dúvida pelo fanatismo, reconheceria em seu seio a dúvida e dialogaria com ela. Seria uma religião que assumiria a incerteza.

Seria uma religião aberta sobre o abismo.

O reconhecimento da Terra-Pátria conflui com a religião dos mortais perdidos, ou melhor, desemboca nessa religião da perdição. Não há portanto salvação se a palavra significa escapar à perdição. Mas se salvação significa evitar o pior, encontrar o melhor possível, então nossa salvação pessoal está na consciência, no amor e na fraternidade, nossa salvação coletiva é evitar o desastre de uma morte prematura da humanidade e fazer da Terra perdida no cosmos, nosso “porto de salvação”.

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