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sábado, 13 de dezembro de 2014

México: Ayotzinapa e a voz das ruas

O que aconteceu em Sonora, com a ocupação do Congresso, não é um fato isolado. Em várias regiões do país, as mobilizações cidadãs exigem a renúncia de Enrique Peña Nieto e, ao mesmo tempo, reivindicam uma crescente vontade de se transformarem num poder constituinte alternativo. 

Por Luis Hernández Navarro, La Jornada
O México vive uma situação inédita, na qual, como advertiram os sonorenses que ocuparam o seu legislativo, os de cima não quiseram escutar a voz das ruas.  Montecruz Foto / Flickr
O México vive uma situação inédita, na qual, como advertiram os sonorenses que ocuparam o seu legislativo, os de cima não quiseram escutar a voz das ruas. Montecruz Foto / Flickr

Roberto Zavala Trujillo é pai de Santiago Jesús, uma das 49 crianças que morreram no incêndio da creche ABC, em Hermosillo, Sonora. Em 20 de novembro, no plenário de sessões do Congresso daquele estado, junto a milhares de manifestantes que ocuparam o prédio em solidariedade com Ayotzinapa, declarou: “Em Sonora, mais de 104 anos depois, damos reinício à Revolução que não funcionou”.

No último dia 20 de novembro, cerca de 5 mil estudantes de Cananea, além de pais da creche ABC, de afetados pela contaminação do rio Sonora, e ferroviários, feministas, ecologistas e trabalhadores marcharam pelas ruas de Hermosillo, tomaram a sede do Poder Legislativo local e advertiram: “Hoje está em sessão o povo, e tem quórum”. Antes de entrar no recinto, deixaram um recado aos deputados na caixa de sugestões: “Escutem o seu povo, antes que seja tarde”.

O correspondente do La Jornada Ulises Gutiérrez contou como, ali mesmo, J. Márquez, outro dos pais da creche ABC, disse aos familiares dos estudantes desaparecidos: “Compartilhamos a vossa coragem, a vossa frustração pelo que acontece no México”. Para arrematar a sessão, “os inconformados exigiram a saída de Peña”, e votaram pela destituição do presidente em meio aos gritos de “justiça, justiça!”.

O que aconteceu em Sonora, com a ocupação do Congresso, não é um facto isolado. Em várias regiões do país, as mobilizações cidadãs exigem a renúncia de Enrique Peña Nieto e, ao mesmo tempo, reivindicam uma crescente vontade de se transformarem num poder constituinte alternativo.

Como mostram os protestos de 20 de novembro e do dia 1º de dezembro, apesar do seu desenvolvimento desigual em escala nacional, o movimento continua em fase de ascensão e radicalização. Hoje, não são apenas os estudantes que participam das marchas. Cada vez mais, se incorporam muitos outros setores: sindicalistas, organizações do campo, forças urbano-populares, familiares de desaparecidos, religiosos, artistas e até crianças. Em estados como Chiapas, as mobilizações de professores foram muito intensas, e em Oaxaca chegaram inclusive a ocupar o aeroporto.

No entanto, a indignação social e o descrédito governamental vão muito além do que se vê nas ruas. A base da inconformidade popular é mais ampla, vigorosa e complexa do que se expressa nas marchas. De facto, o mal-estar dos que estão abaixo fraturou a unidade do governo federal e alcançou alguns dos seus aliados tradicionais. Parece impossível deter a deterioração da figura presidencial. A cada dia, a crise política aprofunda-se mais.

A estratégia governamental para enfrentar o desastre demonstrou-se falida. A pretensão de fazer do massacre de Iguala um assunto local, uma mera ação do crime organizado, sem reconhecer a responsabilidade do Estado no crime e o caráter nacional dos protestos, alimentou o descontentamento. O decálogo de Peña Nieto para resolver os problemas de insegurança e corrupção naufragou tão logo foi lançado às águas da opinião pública. Até a revista The Economist advertiu que o presidente pode ter perdido a oportunidade de mudar a maré contrária. A decisão oficial de inventar interlocutores desligados do movimento social real, como fez ao “negociar” o problema dos presos pela marcha do dia 20 de novembro, só faz crescer o seu descrédito.

A crise da economia torna as coisas ainda mais difíceis para Enrique Peña Nieto. As notícias neste campo não são nada boas. O peso (moeda mexicana) desvaloriza-se, a produção de petróleo cai, as expectativas de crescimento do PIB reduziram-se para pouco mais de 2%, é possível aumentar taxas de juros nos EUA, anuncia-se uma iminente fuga de capitais, e as agências de rating alertam para o perigo provocado pela instabilidade política aos investimentos.

Entretanto, apesar da iminência do fim do calendário escolar e das férias de natal, os protestos continuam o seu curso. Em 6 de dezembro, milhares de professores, estudantes e camponeses, com os seus cavalos, tomaram simbolicamente a Cidade do México para comemorar os 100 anos da entrada dos exércitos revolucionários de Francisco Villa e Emiliano Zapata. A iniciativa vai além da mera contestação política. Apela imaginariamente – como foi anunciado na ocupação do Congresso em Sonora – para reiniciar a revolução que não funcionou.

Entre 21 de dezembro e 3 de janeiro do próximo ano, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o Congresso Nacional Indígena (CNI) e aderentes da Sexta Declaração da Selva Lacandona farão o Primeiro Festival Mundial das Resistências e da Rebeldia Contra o Capitalismo. O seu lema será: “Onde os de cima destroem, os de baixo reconstroem”. A abertura do encontro será realizada na comunidade de San Francisco Xochicuautla, estado de México, em 21 de dezembro. “Sabemos – afirma a convocatória – que o capitalismo selvagem e de morte não é invencível” e que “nas nossas resistências, está a semente do mundo que queremos”.

Com a chegada de 2015, inicia-se um novo ciclo de mobilizações. Uma importante convergência de trabalhadores do campo, sistematicamente relegada pelo governo federal, concordou em tomar as ruas de Xalapa, em 6 de janeiro, no aniversário da Lei Carranza. E, em 31 de janeiro, planeia uma grande concentração nacional em frente aos escritórios dos ministérios do Governo e da Agricultura. Por sua vez, também em janeiro, a Coordenadoria Nacional de Trabalhadores da Educação (CNTE) organiza uma greve nacional contra a reforma educacional.

Não há evidência de que o desdobramento da mobilização social tenha chegado ao seu ponto máximo. E, ainda que eventualmente os protestos das ruas diminuam, a tendência quanto ao desgaste do regime se mantém. Vivemos uma situação inédita, na qual, como advertiram os sonorenses que ocuparam o seu legislativo, os de cima não quiseram escutar a voz das ruas.

Luis Hernández Navarro, jornalista, é coordenador de opinião e editor do jornal mexicano La Jornada.

Publicado originalmente no La Jornada

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