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segunda-feira, 23 de março de 2015

O Estado Islâmico e a tentação do zero

Aquele que mata um homem – ou mil – é um assassino; o que destrói a memória da humanidade é pura Natureza: opera como esses cataclismos que, segundo Platão, destruíam a cada 10.000 anos a civilização, obrigando um punhado de “homens toscos e ásperos” a começar de novo. 

Por Santiago Alba Rico, Quarto Poder

Militantes do EI destróem a marreta estátuas com 3.000 anos, num vídeo divulgado pela própria organização.
Militantes do EI destroem a marreta estátuas com 3.000 anos, num vídeo divulgado pela própria organização.

Depois da destruição por parte do Estado Islâmico das esculturas assírias e acádias do Museu da Civilização de Mossul, alguns sugeriram em tom acusatório, como se se tratasse de uma perversão das proporções, que a opinião pública se sente mais impressionada com a demolição de uma estátua do que com a destruição de milhares de vidas. Creio, ao invés, que se trata de uma atinada homenagem ao sentido das proporções. É evidente que é mais grave destruir uma vida que uma estátua, e a humanidade não deveria duvidar em destruir as estátuas que fossem necessárias para salvar uma única vida; mas é bem mais impressionante e, se quiserem, mais “bárbaro” destruir um touro de pedra de 2.700 anos de antiguidade que uma existência humana. A vida individual é muito breve e a única maneira de não começar cada instante a partir do zero é passar de uma geração a outra um montinho de pedras, como os cubos de água, de mão em mão, para apagar um incêndio. Aquele que mata um homem – ou mil – é um assassino; o que destrói a memória da humanidade é pura Natureza: opera como esses cataclismos que, segundo Platão, destruíam a cada 10.000 anos a civilização, obrigando um punhado de “homens toscos e ásperos” a começar de novo. Bárbaro não é o que trata os outros como animais mas sim o que se trata a si mesmo como um animal sem história nem legado, dissolvido num único gesto ou numa única palavra. Só uma coisa impressiona mais que um genocídio e é o apocalipse. A destruição do museu de Mossul impressiona muito porque se trata de um apocalipse a pequena escala; a maqueta ou o bonsai – digamos – do apocalipse.

Os jihadistas são muito conscientes deste “impacto”, que utilizaram a seu favor num orgulhoso vídeo publicitário. Na primeira parte, um homem barbudo apresenta, num elegante árabe clássico, a ação posterior. Fala desses povos atrasados que adoravam a chuva ou o fogo, e desses “ídolos” que representam deuses combatidos pelo Profeta. Mas importa muito menos a justificação do que o fato de ter um pretexto para “passar ao ato”; um “ato” que podemos qualificar sem vacilação de “revolucionário”, no sentido de que toda a “revolução” implica mais uma ortopraxia do que uma ortodoxia; isto é, um conjunto de ações destinadas a interromper o curso da história. No final dos anos 90 falava eu em tom provocador de um “islão jacobino” para me referir a esta tentação de se apoiar numa Lei para pôr a zero o relógio da História. Essa foi a tentação jacobina de que tanto escarneceram, com ódio zombador, os reacionários europeus, cujos interesses de classe estavam associados ao espessor social dos costumes milenares: a isso a que os muito “revolucionários” jihadistas chamam precisamente de yahiliya, para se referir à “ignorância” supersticiosa anterior à revelação de Maomé. Não se trata, obviamente, de comparar Robespierre a Abu Bakr Al-Bagdadi – como gostariam os nossos tertulianos de hoje – mas sim de evocar um elemento que nada tem a ver nem com a razão nem com a religião, mas que os seus respetivos excessos goyescos compartilham: o que “impressiona” todos, para o bem ou para o mal, é a ousadíssima ação pela qual se destroem 3.000 anos de memória humana e se põe a história na hora indicada para “um novo começo”.

Como sabemos, muitos ficam impressionados de maneira favorável, até ao ponto de estes vídeos, como os das execuções, terem um irresistível efeito propagandístico. De fato, nas ruas e estradas dos territórios ocupados pelo EI no Iraque e na Síria foram instalados ecrãs gigantes onde são reproduzidas as cenas sangrentas das decapitações, replicadas também nos meios e nas redes. Incorreríamos num grave erro se nos ocupássemos apenas das análises geoestratégicas para desdenhar do poder político desta dimensão antropológica. O conhecido arabista Olivier Roy insistiu com frequência que o sucesso do jihadismo tem a ver com o fato de ser “a única causa rebelde no mercado” e tanto o número de convertidos que vão voluntariamente para a Síria e o Iraque, quanto a “coqueteria” com que cuidam da roupa e se deixam fotografar, de kalachnikov na mão, lhe dão sem dúvida razão. Alguns dados abundam nesta direção. Cinquenta e cinco por cento dos jovens britânicos não muçulmanos, por exemplo, declaram sentir-se atraídos pelo Estado Islâmico; e, segundo um recente estudo, depois do atentado contra o Charlie Hebdo aumentaram em França o número de conversões e as vendas de exemplares do Alcorão. É esta ortopraxia – um conjunto de ações associadas neste caso à restauração violenta do “zero” – e não uma ortodoxia religiosa, ou uma doutrina teológica – que atrai centenas de jovens árabes, mas também franceses, australianos e espanhóis, às fileiras do jihadismo.

Têm razão Alain Gresh ou Gilbert Achcar quando denunciam o uso do termo islamofascismo, cunhado pelas classes dirigentes europeias e as suas vanguardas intelectuais para justificar e alimentar a islamofobia. Mas neste sentido o daeshismo (de Daesh, como é conhecido o EI em árabe) tem menos a ver com o jacobinismo que com o fascismo. A exibição espetacular da violência tem uma vertente dissuasória e outra vinculante. Por um lado os fracos são advertidos e por outro comprometidos; como sabemos, uma ideia só é convincente quando “passa ao ato”, e isto serve para as máfias e para os exércitos. Mas a exibição da violência pelos meios tecnológicos mais refinados e com as cenografias mais operísticas tem também um efeito diretamente – narcoticamente – persuasivo. Destruir 3.000 anos de história ou degolar prisioneiros é uma declaração de indiferença subversiva pela “moral burguesa”: “atravessamos o umbral”, proclamam, “estamos acima do bem e do mal e desprezamos todas as convenções sociais”, mensagem “revolucionária” que, desde há séculos, seduz em momentos de crise milhares de jovens.

Que o EI pretenda ter alguma relação com o Islão nada tem de estranho; nessa zona do mundo o que seria estranho – e suspeito – seria que atuasse em nome do budismo. Mas o daechismo tem relação, na realidade, com um mundo farto de hipocrisia e de miséria vital; tem a ver com um mundo cansado da civilização. Ora este “cansaço da civilização”, cujos efeitos políticos são ainda imprevisíveis, tem por sua vez causas políticas. É, para evocar Gramsci, o resultado de uma revolução falida. Muitos dos jovens que hoje aderem ao EI acreditavam realmente na dignidade, na justiça social e na democracia em 2011 e arriscaram a vida por esses princípios. As três ou quatro contrarrevoluções convergentes na zona que hoje voltam a pôr no primeiro plano as forças zombies do imperialismo e da ditadura prolongaram e perverteram a politização incipiente da mal chamada “Primavera árabe” na mais “revolucionária” das contrarrevoluções: a de uma ortopraxia violenta a tal ponto “soberana” (tão “ideológica” e “autorreferencial” como Israel) que nem quer nem tem de negociar nada com ninguém. Por isso, todos os bombardeios são inúteis e, ainda mais, contraproducentes; só servirão para reforçar a ilusão “revolucionária” e a “tentação de zero”.

No mais, este “cansaço da civilização”, no marco de uma verdadeira crise civilizacional, não é alheio à Europa, como o demonstra o próprio EI, mas também a islamofobia. Ou tornamos politicamente credível a velha civilização das pedras e a ética comum, ou as nossas vidas vão povoar-se de bonsais do apocalipse. Para consegui-lo será necessário mudar, ao mesmo tempo, de métodos, de economia e de política externa.

Santiago Alba Rico é filósofo e colunista.

Retirado de Quarto Poder

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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