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terça-feira, 14 de abril de 2015

A falsa “nova” Guerra Fria

Não vivemos uma repetição da Guerra Fria, mas um conflito político-diplomático limitado ao espaço euro-atlântico, e não com dimensões globais, como ocorreu entre 1947 e 1991.

Ricardo Cabral Fernandes

O confronto político-diplomático na crise ucraniana entre os EUA e a Federação Russa representa o ponto mais baixo na relação entre estes dois Estados nos últimos vinte anos. Em consequência, alguns meios de comunicação social têm referido que poderemos estar perante uma “nova” Guerra Fria, um reaviver do conflito que caracterizou a segunda metade do século XX. Não vivemos uma repetição desse período, mas um conflito político-diplomático limitado ao espaço euro-atlântico, e não com dimensões globais, como ocorreu entre 1947 e 1991.
A “velha” Guerra Fria foi uma consequência da nova relação de forças saída da II Guerra Mundial com a ascensão no sistema internacional de duas superpotências, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética. Este conflito mundial caracterizou-se pela distribuição de poder bipolar no sistema internacional e pelo confronto entre superpotências com ideologias e interesses antagônicos, bem como pela corrida aos armamentos, dissuasão nuclear, guerras por procuração e alianças militares. O conflito abrangeu todas as áreas, como a militar, a econômica, a social, a política, a cultural, a tecnológica, entre outras, bem como continentes, oceanos e mares. Foi um período que caracterizou o sistema internacional durante mais de quarenta anos e influenciou profundamente os vários conflitos que se registaram na segunda metade do século XX.
Após a queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética, assistimos ao momento unipolar norte-americano e à expansão do seu império na “guerra contra o terrorismo” e nas invasões do Afeganistão (2001) e Iraque (2003). A expansão desenfreada do império e a ascensão dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – deram azo à alteração gradual da distribuição de poder no sistema internacional, da unipolaridade para a multipolaridade, mesmo que com liderança norte-americana no período transitório. A par desta alteração estrutural é patente a incapacidade – ainda – das potências emergentes, nomeadamente a Federação Russa, de contestarem as capacidades militares norte-americanas, exceto nas nucleares, bem como a não existência de um antagonismo de cariz ideológico entre as potências. Assim, podemos afirmar que não existem as condições que caracterizaram a Guerra Fria para que possa ressurgir um período semelhante, quer hoje quer num futuro próximo.
Nos últimos vinte anos as relações entre os EUA e a Federação Russa tiveram um percurso sinuoso, foram marcadas tanto por momentos de cooperação como de tensão, como a luta contra o jihadismo e o alargamento da OTAN demonstraram, respectivamente. Com o deflagrar da crise ucraniana as relações entre estas duas potências degradaram-se a níveis nunca antes vistos no pós-guerra fria, como a suspensão das relações bilaterais de cooperação e as sanções econômicas o comprovam. No entanto, um conflito político-diplomático que extravase o espaço euro-atlântico é prejudicial para as respectivas políticas externas e interesses. Tanto os EUA como a Federação Russa têm interesse em limitarem o antagonismo à crise ucraniana para que este não influencie os respectivos objetivos nas questões que atualmente pautam o sistema internacional, como a proliferação nuclear e as negociações com o Irã, o terrorismo jihadista e a luta contra o autodenominado Estado Islâmico, a guerra civil na Síria, a ascensão da República Popular da China e a crise econômico-financeira, entre outras. Refira-se que não é de menosprezar a tentativa dos EUA conterem e isolarem a Federação Russa no espaço euro-atlântico, como o alargamento e fortalecimento da OTAN e a sua expulsão do G8 demonstram. Os EUA apenas têm a capacidade de conterem a Federação Russa no continente europeu e não a nível global, como Harry S. Truman fez com a estratégia do containment, em 1947, à União Soviética. A contenção e isolamento são regionais e não sistêmicos, ao contrário do que ocorreu durante a “velha” Guerra Fria.
Apesar das diferenças entre a “velha” e a “nova” Guerras Frias, os meios de comunicação social afirmam que poderemos ser confrontados com um novo conflito entre os EUA e a potência herdeira da União Soviética. Assiste-se à propagação do discurso que veicula a ideia de insegurança, da possibilidade do despoletar de um novo conflito que coloque o continente europeu a ferro e fogo com consequências imprevisíveis. No preciso momento em que os povos europeus se veem confrontados com o degradar das suas condições socio-econômicas e o desmantelar do Estado Social, a criação da ilusão da existência de uma ameaça externa permanente, como o foi a “velha” Guerra Fria, que ameace fisicamente as suas vidas, relega a luta contra a austeridade e a defesa do Estado Social para um plano subalterno. A segurança física coloca-se acima de qualquer tipo de bem-estar. Enquanto os povos se entreolham pela mira do fuzil, as classes dominantes obtêm margem de manobra para continuarem com as suas políticas internas e até para criarem novos incentivos para uma indústria desde sempre lucrativa: a do armamento. Indústria que prosperou durante a “velha” Guerra Fria com a corrida aos armamentos.
É neste prisma que Jean-Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, veio apelar publicamente à criação de um exército europeu, tendo como fins o enfrentar das ameaças às fronteiras da União Europeia e a defesa dos valores que esta defende1. Esta sugestão representa o aprofundamento encapotado do projeto europeu em prol do federalismo no preciso momento em que os cidadãos europeus constatam que o projeto europeu, construído à sua margem e conduzido pelas elites, não vai ao encontro dos seus anseios e desejos, que as suas perspetivas não correspondem à atual UE neoliberal que impõe a austeridade como solução para os erros do capitalismo selvagem.
Se por um lado a crise ucraniana veio incentivar o discurso da “nova” Guerra Fria, por outro lado veio também reforçar a crescente pressão norte-americana para que os restantes Estados-membros da OTAN encetem uma política de investimento e reforço das suas forças armadas. Neste contexto, a Cimeira da OTAN, em Wales, Reino Unido, a 4 e 5 de Fevereiro de 2015, apresentou-se como um marco no avanço dos respetivos interesses norte-americanos. A declaração final da Cimeira afirmou que todos os Estados-membros se comprometiam a recuarem no desinvestimento militar e a passarem a investir 2% do seu respectivo Produto Interno Bruto (PIB) nas suas forças armadas, além de aprofundarem a cooperação através da realização de mais exercícios militares conjuntos2 como demonstração de que a Aliança possui a necessária capacidade para fazer frente a qualquer ameaça que se lhe coloque – um aviso para Vladimir Putin. A viragem e consequente compromisso de investimento nas forças armadas, mesmo que seja de apenas 2% do PIB neste momento – o dobro do atualmente gasto em Portugal –, é importante por poder significar uma deriva para a crescente militarização do continente europeu, principalmente dos Estados-membros da OTAN. O investimento no sector militar poderá desencadear um dilema de segurança com outras potências do sistema internacional e não apenas com a Federação Russa, originando possíveis novas crises e escaladas militares. O desejo de maior segurança pode, ao invés, criar mais insegurança.
Se os governos europeus, liderados maioritariamente por conservadores, social-democratas e socialistas, se comprometerem gradualmente a atribuir cada vez maiores quantias do PIB para o sector da defesa, então ver-nos-emos diante de um paradoxo. Se por um lado investem cada vez maiores quantias dos PIBs nacionais nas respetivas forças armadas, por outro sacrificam-nos perante a austeridade sob a chantagem do Tratado Orçamental e dos seus limites insanos, como a redução da dívida para 60% e o défice estrutural para 0,5%, sob pena de multa até 1% do PIB. Se por um lado existe investimento, por outro fazem-se cortes e desmantelam-se conquistas sociais históricas. Os recursos financeiros, que poderiam ser canalizados para a melhoria das condições socio-económicas dos trabalhadores, pensionistas e reformados, serão canalizados para a grande indústria capitalista do armamento, para a indústria responsável pela perpetuação dos conflitos e dos massacres entre povos em prol dos interesses das respetivas classes dominantes e da procura do lucro.
O gradual reforço das forças armadas europeias apresenta-se como fundamental na retração estratégica e redirecionamento dos EUA para a região da Ásia-Pacífico. A crise ucraniana e a criação e expansão do autodenominado Estado Islâmico vieram dificultar a redução do dispositivo norte-americano no continente europeu e, por consequência, a retração e redirecionamento para a Ásia-Pacífico, por considerarem que novas ameaças se colocaram aos seus aliados europeus e pelo seu compromisso militar com estes ter sido posto em causa. Assim, a promessa de maior investimento militar europeu segue os interesses da burguesia norte-americana, em aliança com a europeia, e não os dos trabalhadores, pensionistas e reformados europeus.
Um possível conflito localizado em torno da crise ucraniana não é de menosprezar, mas não nos deparamos com uma “nova” Guerra Fria por falta de condições estruturais do sistema internacional e pelas incapacidades e interesses particulares dos EUA e da Federação Russa. Este discurso serve para legitimar o investimento do Estado na indústria do armamento no preciso momento em que os cortes do Estado e na sociedade imperam no nosso dia-a-dia. É o legitimar da corrida aos armamentos através de um discurso que cria a ilusão de insegurança. A saída de Portugal da OTAN continua a ser um imperativo por que devemos lutar!


Ricardo Cabral Fernandes
Mestrando em Ciência Política

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