Artigo de Agassiz Almeida*
Egresso de uma geração desafiadora
que quis abraçar o mundo para construir uma nova humanidade, Eduardo Galeano
sai da vida e deixa à consciência dos homens livres um imorredouro legado
político-cultural.
Olhemos a sua obra, a partir de As
veias abertas da América Latina às construções literárias de Memória
do fogo. Lendo-a, dá-nos uma sensação de que salta de suas páginas um
cavaleiro andante sob a aura de um pensador do Tibet. O que o perturbava? O
silêncio do mundo às suas interrogações. Assim, em algum momento, ele se fez
demolidor dos seus próprios templos literários.
Veio para a vida num século em que
100 milhões de seres humanos foram devorados nos crematórios nazistas, nas
guerras e nos porões das ditaduras militares. Frente a este caos, a consciência
tem necessidade de ser livre e se indignar.
Os anos passam por nós e o crepúsculo
da vida vai chegando, no caminhar inexorável para um destino ainda indefinido.
Com uma transcendental visão do mundo e das lutas dos povos frente aos seus
opressores, Eduardo Galeano transmitiu às gerações de hoje e às que hão de vir
este legado: Viver é o constante encontro e desencontro com novos amanhãs.
O mundo se alimenta
de algumas verdades e muita mentira. Na sua obra, Galeano concepcionou ideias e
reflexões sobre a vida e os homens; compreendê-las é uma arte. Que
arte! Cada homem carrega consigo algo infinito e indeterminado que se
projeta em todos os sentidos.
Que humanidade pulsava nas décadas de
60 e 70 do século passado? Gerações indignadas e sonhadoras impulsionadas pela
flama dos revolucionários da França e dos EUA no século XVIII.
Mergulhe-se nas caladas dos tempos;
sacuda-se a inércia com que um elitismo egoísta e corrupto quer nos fazer de
papalvos e projetemos como lições aos contemporâneos de hoje e às gerações
futuras, que patriotas vararam a história com energia renovadora. O que mais
abominava Eduardo Galeano? O sátrapa patife e audacioso feito para comandar imbecis.
Viveu a vida sem aspirar ao
poder; desta forma soube melhor conhecer os homens. Não teve pressa de viver,
mas de construir catedrais ao pensar e ao saber. Aureolava-o um toque de
liberdade dos povos. Por sua capacidade de analisar as contradições e
injustiças da sociedade humana, ele deixou as marcas de sua trajetória na
memória dos tempos.
O que catapultou para a sua obra o
pensador platino? Os sentimentos de indignação dos povos latino-americanos e um
vasto arsenal de desafiadoras denúncias. Lá estavam comungando com os seus
ideais, dentre outros, Pablo Neruda, Mario Benedetti, Ernesto Sabato, Thiago de
Melo e Fernando Gasparian.
O todo daquela personalidade forma um
mundo de idealismo, de onde se irradiavam jatos fulgurantes de esperanças. Quem
fala por nós nestes momentos?! O ideal. Eduardo Galeano arrebatou-se de grandes
ideais. Havia no fundo de sua alma, sempre indignada, um tumultuar de caos, um
brado a ricochetear na sua mente: Oh, elites, basta de cinismo.
Preso em Montevidéu com o golpe militar,
em 1973, nas masmorras de “El inferno”, gritou aos seus algozes: Alquebraram-me,
oh, canalhas! Naquele momento, o encarcerado parecia um umbuzeiro
atacado por faias assassinas.
Há um sopro universal sacudindo
os homens vigorosos; é a chama da eterna redescoberta. Naquele seu livro, As
veias abertas, desata-se de suas páginas uma explosão de ira sagrada,
cuja flama despertou gerações. Que gerações! Elas empurravam os fatos para vencer os
retardatários, sejam eles uma força militarizante ou um oligarca desenfreado.
Olhemos a história da América Latina.
Debrucemo-nos sobre os cinco séculos que nos falam tão alto, através dos quais
podemos divisar a espoliação que se abateu sobre os seus povos.
Em algum mês de
2001, lá em Porto Alegre, ele desabafa comigo e Gasparian: Hoje, não
consigo ler o meu livro ‘As veias abertas’. Respondemos: Um
momento de realização é o sonho de toda mocidade vigorosa. Envelhecida e
vencida juventude é aquela que não aspira a novos rumos. Este seu livro se fez
sonho de nossa geração. Há uma idade na vida em que é preciso ousar, renegar os
monturos sociais e vomitar falsidades e mentiras que uma sociedade hipócrita
nos empurra de goela abaixo. Aí, começa-se a construir o verdadeiro homem.
No pedestal da história, lá está um
deles, Eduardo Galeano. Deixou a vida engrandecido nos embates do mundo.
*Agassiz Almeida é escritor, ativista dos direitos humanos,
deputado federal constituinte de 1988, autor das obras 500
anos do povo brasileiro, A república das elites, A
ditadura dos generais; e recentemente lançou o livro O
fenômeno humano. É considerado pela crítica como um dos grandes
ensaístas do país (Dados colhidos na Wikipédia).
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