Antítese da mesma cor - Blog A CRÍTICA

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." (Millôr Fernandes)

Últimas

Post Top Ad

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Antítese da mesma cor


Thomas Hart Benton America Today

Sou mesmo essa angustia solitária presa no suicídio global de meus pensamentos, cuja razão conduz-se por metáforas introspectivas projetadas sempre no café da manhã...

Ainda sou aquele sanatório das horas atrasadas esperando o ônibus para um destino inexistente onde um calibre qualquer fechou os olhos de mais um visionário por uma carteira vazia – O jornal informou numa visível manchete. Eu li.

Olha lá, olha! Uma viúva, três crianças, quatro estômagos vazios por dois olhos fechados! – a TV acabara de rememorar. Eu assisti.

“ Tio, tem 10 centavos?” , “Relógio por 20 conto, quer dotô?” “ JESUS VAI VOLTAR!”, “ PIPOCA É CINQUENTA, PIPOCA É CINQUENTA...” [...] ninguém sentiu falta do morto, era uma dessas vozes que fora enterrada no frenético cotidiano recifense. Ninguém parou. Ah, o trânsito está parado.

Espera, não sentiram ausência alguma. Foi só uma batida. Eu li no jornal, vi na TV, mas continuo andando...
O sol duma manhã fria faz renascer a esperança como um trocado no keizer dum flautista que improvisara qualquer chorinho numa ponte de pessoas apressadas, também preciso correr, esqueci até de aplaudir. O moço me agradeceu com a cabeça os trocados que deixei. Não lembro do seu rosto.

Opa, tem um moleque correndo com uma bolsa nas mãos, uma moça chorando. Ninguém parou. Continuei minha caminhada observando aquela cena. Fiquei confuso: Quem era a vítima?

Atualmente isso é uma incógnita, jogaram a significação numa aquarela e ninguém mais sabe qual cor fora pintada.

Vejo zumbis infantis reféns de suas confusas alucinações, fantasmas azuis deveras famintos assistindo os restaurantes populares alimentando quem trabalha, vejo meretrizes vendendo amor para operários solitários em pequenos quartos imundos do centro do Recife. Mas nossa arquitetura é belíssima! O que estraga mesmo é esse tanto de lixo nos bueiros obrigando os ratos a ocuparem os diversos gabinetes. Mas quem encheu os bueiros de tanta porcaria? O povo! Viva a democracia!

A noite vem surgindo e as pessoas caminham um pouco mais lentas, suas expressões desenham um sinal de cansaço, os pedintes dormem de fome, os usuários de cola hibernam na desgraça em busca de consolo, as meretrizes descansam para o segundo horário de trabalho na praça do Diário e os ratos administram com brio toda essa normalidade, afinal, os ratos precisam garantir o queijo santo de cada dia. Foi só mais um dia de batalha. Ninguém percebera.

Subi no ônibus aliviado, finalmente voltaria para casa. Observei as pessoas em minha volta todas reféns do whatzapp, demoraram a perceber os insurgentes vermelhinhos gritando na rua em plena quinta-feira que o Brasil vai muito bem, obrigado! Que tudo não passa duma crise internacional. Todavia, o dólar só aumenta, valoriza.

Certamente esses números são maquiados por capitalistas vampirizados loucos pelo sangue de seus subordinados.  Parece-me que minhas observações não coadunam com a realidade dos otimistas, parece-me que ocupamos um espaço dual de fatos como duas cores opostas residindo no mesmo Adentro minha casa. Todos me recebem com felicidade. É quase um milagre sairmos e chegarmos intactos. Meu filho me abraça, minha geladeira tem comida, na minha sala tem uma TV, na estante tem um jornal e mais uma vez assisto e leio que nesse exato momento mais um filho ficará sem abraçar o pai, mais uma família ficará com a geladeira sem comida por mais uma carteira vazia. Não se preocupem, vai passar, é só uma crise internacional!

Emerson Sarmento
Cantor e compositor

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Post Bottom Ad

Pages