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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Breve Contra Catálogo de Direitos Humanos

Os direitos também são um assunto da imaginação. Há que reinventar os direitos humanos para que abarquem o imaginado, o sonhado, e assim contrariar a sua apropriação pelas práticas imperialistas. 

Por Antoni Aguiló.

Foto de Paulete Matos.
Numa época de graves desigualdades econômicas e sociais, de predomínio das estruturas oligárquicas do poder, de fanatismos que exaltam a violência, os direitos humanos parecem terem sido convertidos num slogan vazio de conteúdo. Neste contexto, disse César Baldi, tornam-se urgentes novos exercícios de imaginação jurídica. Exercícios críticos para com a retórica humanitária que associa os direitos humanos ao imperialismo, à guerra, à supremacia branca, etc., que despertem as consciências adormecidas e que frente ao pessimismo do “Não há alternativa” neoliberal afirmem a esperança do “Sim. Podemos”. Exercícios criativos de abertura à infinita diversidade do humano, à igualdade de gênero, ao ecologismo, à democracia radical e, definitivamente, aos reptos que interpreta o mundo nas primeiras décadas do século XXI.
A imaginação pode funcionar como catalisador de energias libertadoras. Não se trata duma faculdade mental ancorada no ilusório. É força criadora, potência magmática capaz de fazer saltar os ferrolhos do pensamento e vislumbrar indícios de outros mundos possíveis. Acerca dela disse Castoriadis: “É criação incessante e essencialmente indeterminada de figuras, formas, imagens. O que chamamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são obras suas”.
Por acaso existe criação humana consciente que não tenha passado antes pela imaginação? Até que ponto a crise das formas de emancipação de que padece a Europa esconde uma alarmante falta de imaginação social e política? Não será que em momentos de crise, como disse Einstein, “a imaginação é mais importante do que o conhecimento, porque o conhecimento é limitado, enquanto a imaginação engloba o mundo inteiro, estimulando o progresso”?
Os direitos também são um assunto da imaginação. Há que reinventar os direitos humanos para que abarquem o imaginado, o sonhado. A imaginação brinda-nos a possibilidade de iluminar criações jurídicas capazes de expandir simbolicamente o horizonte dos direitos humanos, levando-o para além dos seus limites para reivindicar direitos marginalizados ou ausentes do discurso oficial. São direitos em contra corrente porque, frente a uma realidade que se apresenta como inevitável, impulsionam a transgressão de regularidades estabelecidas através da crítica, da rebeldia, da esperança e do sentido das possibilidades.
Entre eles podem mencionar-se os seguintes:
O direito a sonhar. 
Ernst Bloch disse que o ser humano é um hábil tecedor de “sonhos diurnos” que antecipam um futuro melhor. Os sonhos diurnos cumprem uma função exploratória e inconformista. Reclamar o direito a sonhar, de que fala Eduardo Galeano, é imprescindível num sistema que pretende converter-nos em zombies hipnotizados. O capitalismo priva-nos do nosso tempo, explora o nosso corpo e compra a nossa energia a troco de um salário. Mas não lhe basta. Quer a falta de interesse pelos sonhos. Por isso, força os indivíduos a utilizar a imaginação como meio de evasão e inculca-lhes que, para sobreviver, devem usá-la em benefício próprio, fazendo com que se tornem cada vez mais individualistas e competitivos. Disse-o Shakespeare, há vários séculos e convém não esquecê-lo: “Somos feitos da mesma matéria que os nossos sonhos”. Não podemos permitir que os nossos sonhos (de pão, de justiça, de solidariedade, etc.) se convertam num catálogo de frustrações e medos funcionais ao capitalismo. Numa cabeça cheia de medos, os sonhos tornam-se pesadelos. Como diz a canção de Els Catarres: “A força dos sonhos é a arma dos rebeldes”.

O direito à existência. 
No seu célebre discurso “Sobre as subsistências” (1792), Robespierre defende o “direito à existência” como o primeiro dos “direitos imprescritíveis”. Republicanos como ele acreditavam que quem não tenha garantido este direito por carecer de propriedade não eram livres na sociedade civil, pois encontravam-se numa posição de dependência que os convertia em propriedade de outro. O direito à existência aponta para a necessidade de garantir publicamente uma base material e social que permita às pessoas serem donas de si mesmas, proporcionando-lhes recursos mínimos de subsistência em forma de trabalho ou de outros direitos sociais. Nesta direção aponta a proposta de um rendimento básico universal que, integrada num programa mais amplo de combate ao capitalismo, possui uma dimensão emancipadora.

O direito à preguiça. 
Não consiste num elogio gratuito à indolência, mas num convite contra o qual Paul Lafargue, no seu manifesto de 1883, qualifica de “estranha loucura”: “Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, que chega até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua prole”. O que subjaz é uma dura crítica ao capitalismo da época (salários ínfmos, jornadas extenuantes, exploração de mão de obra infantil, etc.) e a reivindicação do tempo livre para a classe operária. Para além desta posição, também se questionam os alicerces da glorificada cultura do trabalho, que nas palavras de Marx concebe o ser humano como uma “simples máquina para produzir riqueza alheia”, e na qual a preguiça é considerada como um vicio execrável: “Os desejos do preguiçoso matam-no, porque as suas mãos refutam o trabalho”, afirma em “Provérbios” (21, 25).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) reconhece o direito ao descanso e ao tempo livre (art.º 24), pelo que as lutas atuais se encaminham para conquistas como a redução da jornada laboral, o adiantamento progressivo da idade da reforma ou o aumento do período de férias. Mas num contexto onde o capitalismo, o produtivismo e os valores do mercado são hegemônicos, o direito à preguiça não é uma aspiração plenamente realizável. Sem dúvida, contém um potencial crítico que sacode uma cultura que identifica a preguiça com improdutividade e permite lutar por um mundo para além do trabalho onde o ócio, como diz André Gorz, não é uma calamidade, mas uma nobre conquista da humanidade.
O direito à paz. 
A paz não é a mera ausência de guerra, nem um estado de paradisíaca harmonia social. É um processo frágil e incerto, imperfeito, como explica Francisco Muñoz, que transforma violências em formas de convivência democrática.

Avizinham-se tempos duros para construir alternativas de paz frente à lógica bélica e ao regime policial, que se está a implantar na Europa. Depois dos atentados, em Paris, o presidente Hollande declarou que o ataque foi um “ato de guerra” cometido por um exército terrorista. Tal como Bush, em 2001, Hollande assinalou a sua determinação em lutar contra o terrorismo utilizando uma retórica belicista (“A nossa luta será implacável”, “A França está em guerra”) que antecipa a resposta que virá. Se os ataques são apresentados perante a opinião pública como um ato de guerra, a resposta militar passa a ser a opção por defeito e o estado de emergência deixa de ser uma violação da Constituição para se converter num reforço e complemento da mesma. As consequências são de sobra conhecidas: vidas arrasadas, “danos colaterais”, negócio armamentista, neocolonialismo, islamofobia, medidas preventivas, militarização da polícia, restrição de direitos, etc. Parafraseando Tácito: “Criaram um deserto e chamaram-no de paz”.
O direito à democracia. 
Democracia é a palavra mais humilhada, abusada e empobrecida de todas as palavras políticas. Palavra, certamente, não consagrada no artigo 21 da DUDH, que afirma o direito de toda a pessoa a “participar no governo do seu país, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos”. Mas reconhecer a participação popular como direito humano não implica avançar necessariamente para formas de democracia real que superem as práticas de representação e participação toleradas pelo capitalismo, que sejam a expressão de um poder instituinte desde baixo e, sobretudo, o resultado duma aprendizagem continuada que, como assinala Boaventura Sousa Santos, transforma relações de poder em relações de autoridade partilhada.

Para gerar um horizonte comum de expectativas e possibilidades, há que abordar como sonho coletivo estas e outras aspirações emancipadoras iludidas pela política institucionalizada. Gandhi escreveu: “Diariamente vêem-se coisas com as quais nunca se teria sonhado. O impossível torna-se cada vez mais possível”. Talvez tivesse razão e o que hoje é um exercício de imaginação seja amanhã uma realidade na teoria e na prática dos direitos humanos.
Antoni Aguiló é filósofo político e professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde é investigador do Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito.
Artigo publicado no eldiario.es, traduzido por António José André.

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