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domingo, 28 de fevereiro de 2016

Adeus ao domínio do capital financeiro?

Os governos dos países que decidiram manter uma taxa de juros negativa estão a submeter o setor bancário a uma severa prova de esforço. 

Por Alejandro Nadal

Os governos dos países que decidiram manter uma taxa de juros negativa estão a submeter o setor bancário a uma severa prova de esforço
Nas últimas décadas, o domínio do capital financeiro sobre a economia mundial tem sido quase absoluto. A esfera financeira constituiu-se num espaço de rentabilidade que mantém um alto grau de autonomia face às atividades produtivas e comerciais da economia real.
Porém, as coisas podem estar a mudar. Os governos dos países que decidiram manter uma taxa de juros negativa estão a submeter o setor bancário a uma severa prova de esforço.
O setor financeiro chegou a dominar a agenda da política econômica. Por exemplo, as últimas quatro décadas caracterizaram-se pelo desmantelamento do sistema de regulação sobre todas as operações do sistema financeiro e bancário. A definição de prioridades para a política macroeconômica ficou para trás. Os objetivos da política fiscal e da política monetária foram os do capital financeiro. Em matéria fiscal, a prioridade número um foi a de gerar um superavit primário para cobrir o pagamento de encargos financeiros. Os objetivos relacionados com o desenvolvimento econômico e social foram subordinados às necessidades do capital financeiro.
Na parte monetária, a política macroeconômica procurou sempre lutar contra outro dos piores inimigos do capital financeiro, a inflação. A política monetária manteve quase sempre uma taxa de juros capaz de conter a procura agregada e travar o aumento no índice general de preços ao consumidor. Quanto aos bancos e às suas funções de criação monetária, a política macroeconômica manteve uma postura passiva e procedeu à redução radical das regulações do sistema financeiro e bancário.
A teoria econômica convencional considerou sempre que o banco central impunha os níveis de reservas necessários para assegurar o bom funcionamento dos bancos comerciais privados. Na realidade, a capacidade dos bancos para criar dinheiro do nada manteve os bancos centrais na defensiva. Em vez do instituto monetário central ditar os níveis de reservas necessários, foi a atividade bancária privada que impôs a criação de reservas necessárias para manter os níveis de atividade econômica.
Pela primeira vez em quatro décadas, a autoridade política adota medidas que têm um impacto decisivo sobre a rentabilidade do setor bancário comercial privado
Vários países importantes introduziram taxas de juros negativas, incluindo o grande espaço econômico da esfera do euro. E a tendência poderá intensificar-se: Os Estados Unidos e a sua Reserva Federal poderão recorrer a este esquema de taxas negativas se a ‘recuperação’ se debilitar mais e acabar por se esgotar (o que muitos analistas e membros da Fed consideram que terá que ocorrer).
Há algumas poucas semanas, o influente ex-diretor da Reserva Federal de Minnesota, Narayan Kocherlakota, afirmou que as taxas negativas de juros eram um instrumento poderoso entre as ferramentas de qualquer banco central. Até onde poderá chegar esta tendência? Analistas do JP Morgan consideram que os bancos centrais do Reino Unido e do Japão, por exemplo, poderão levar as suas taxas para níveis negativos de -2,7% e -3,45%, respetivamente. A Zona Euro poderá atingir taxas negativas de -4,5%, e essa decisão poderá ser anunciada em março. Finalmente, caso considere necessário, a Reserva Federal terá capacidade para impor uma taxa negativa de até -1,3%.
Tudo isto terá um forte impacto sobre a rentabilidade dos bancos. Ou seja, pela primeira vez em quatro décadas, a autoridade política adota medidas que têm um impacto decisivo sobre a rentabilidade do setor bancário comercial privado. Apesar de os bancos terem efetivamente a capacidade de criar dinheiro “do nada”, a sua rentabilidade depende dos diferenciais das taxas de juros (passivas e ativas). E uma taxa negativa sobre os seus depósitos e reservas no banco central afeta-os diretamente.
A luta entre o Estado e o mundo financeiro é uma longa e interessante história na evolução do capitalismo. Estaremos a presenciar o início de uma nova fase desta longa história?
Nem todo o capital financeiro é afetado da mesma maneira por estas taxas negativas, mas é certo que quase todo o espectro de atividades financeiras recebeu um impacto direto. Por exemplo, os rendimentos dos títulos soberanos de curto prazo na Suíça, Suécia e na Zona Euro foram negativos em 2015. A razão é que as taxas de referência do banco central foram sempre uma base para determinar rendimentos nos mercados secundários. Os componentes não-bancários do setor financeiro também foram afetados. Com as taxas negativas, a capacidade de alguns fundos de pensões e companhias de seguros para fazer frente às suas obrigações de curto prazo viu-se severamente limitada.
As taxas negativas têm como objetivo lutar contra a deflação. Talvez terminem por destruir a paridade cambial, e esse é o outro objetivo do banco central. Mas também é provável que as taxas negativas afetem a estabilidade do setor bancário e financeiro de uma forma que talvez não seja muito apreciada. A luta entre o Estado e o mundo financeiro é uma longa e interessante história na evolução do capitalismo. Estaremos a presenciar o início de uma nova fase desta longa história?
Artigo de Alejandro Nadal, publicado no jornal mexicano La Jornada, em 24 de fevereiro de 2016. Tradução de Victor Farinelli para Carta Maior, revista para português de Portugal por Carlos Santos para esquerda.net


Alejandro Nadal
Economista, professor em El Colegio do México.

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