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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Apple versus FBI: o impasse do Estado ilegítimo

Após praticarem vigilância maciça contra cidadãos de todo mundo, EUA já não podem usar “terrorismo” como pretexto para atacar privacidade. Por Yochai Benkler, no The Guardian.

O confronto entre a Apple e oFBI (Federal Bureau of Investigation) não é, como muitos sustentam, um conflito entre privacidade e segurança. É um conflito sobre legitimidade.
As agências de segurança nacional dos Estados Unidos insistem em exercer um poder sem controlo juntamente com o discurso “confie em nós, nós somos os bons”, mas a maioria dos cidadãos não tem essa confiança. O terrorismo é real, e a vigilância pode às vezes ajudar a preveni-lo, mas o único caminho para a acomodação sustentável entre tecnologias de sigilo e o policiamento adequadamente informado é através de uma reforma profunda nos travões e contrapesos do sistema nacional de segurança.
O princípio mais importante que o governo Obama e o Congresso norte-americano têm de considerar nesse conflito é: “Médico, cura-te a ti mesmo”.
O FBI, para recapitular, está a exigir que a Apple desenvolva um software que lhe permita aceder aos dados protegidos do telefone de trabalho de um dos autores do ataque de San Bernardinoi.
A Apple recusou-se a fazê-lo, argumentando que, para construir a habilidade de aceder a um telefone, estaria efetivamente a criar um “backdoor” que tornaria vulneráveis todos os seustelefones.
O debate está a ser enquadrado publicamente pelos dois lados como um profundo conflito entre segurança e liberdade; entre direitos civis dos cidadãos para garantir a sua privacidade e os fins legítimos da aplicação da lei e da segurança nacional. No entanto, essa é a maneira errada de pensar sobre isso.
O problema fundamental é a quebra de confiança nas instituições e organizações. Em particular, a perda de confiança na supervisão da estrutura de segurança nacional norte americana.
É importante lembrar que a decisão inicial da Apple de redesenhar os seus produtos de modo a que a própria Apple seja incapaz de obter os dados de um uitlizador foi uma resposta direta às revelações de Snowden. Aprendemos com ele que o sistema de segurança nacional norte-americano passou os anos após o 11 de setembro a esvaziar o sistema de supervisão delegada que limitou a vigilância da segurança nacional após o escândalo Watergate e a denúncia de abusos de órgãos de inteligência nos anos 1960 e 70.
A criação, pela Apple, de um sistema operacional impermeável até mesmo aos seus eventuais esforços para quebrá-lo foi uma resposta à perda global de confiança nas instituições de supervisão da vigilância. Ela encarnou uma ética que dizia: “Não precisa de confiar em nós; não precisa de confiar nos processos de supervisão do nosso governo. Simplesmente precisa ter confiança na nossa matemática”.
Muitas pessoas que conheço e admiro estão preocupadas com o presente impasse. Afinal, e se realmente precisarmos de informações de um terrorista prestes a agir, ou um sequestrador com uma criança de refém? São preocupações reais e legítimas, mas não vamos resolvê-las olhando para os lugares errados. A dependência do FBI no All Writs Act de 1789 diz: “Sou o governo e você deve fazer o que é ordenado!”. De acordo com tal lógica, é irrelevante saber se os atos do governo são legítimos ou ilegítimos – porque o dever dos cidadãos é obedecer uma ordem legalmente emitida.
O problema com a abordagem do FBI é que ela trai exatamente a mentalidade que nos colocou na confusão em que estamos agora. Sem comprometimento do governo norte-americano com a transparência e a supervisão democrática com instituições que funcionem efetivamente, os utilizadores irão escapar para a tecnologia. Se a Apple for forçada a abrir os seus sistemas, os utilizadores irão para outros produtos. As empresas norte americanas não possuem o monopólio sobre a matemática.
Nos dias tumultuosos após as revelações de Snowden, houve diversos comités e task forcescriados para propor reformas. Até mesmo um grupo de revisão formado por ex-funcionários da Casa Branca e da Agência de Segurança Nacional (NSA) propuseram reformas estruturais extensivas sobre como a vigilância operava e como era supervisionada. Nem o governo nem o Congresso conseguiram implementar de forma significativa qualquer uma dessas reformas.
A tecnologia da Apple é uma resposta à sede dos utilizadores por tecnologias que possam garantir privacidade e autonomia, num mundo onde não podem confiar em qualquer instituição, seja do governo ou do mercado.
Por isso, é do interesse vital da segurança nacional dos EUA construir um sistema institucional de supervisão robusta e prestação de contas da vigilância e dos poderes de investigação. Precisamos de restrições significativas sobre a recolha e uso dos dados; precisamos de mecanismos de avaliação verdadeiramente independentes, com completo acesso à informação necessária e capacidade técnica proficiente para exercer tal avaliação.
Talvez mais importante, precisamos de pôr fim à cultura de impunidade que protege as pessoas que dirigem programas ilegais e continuam a prosperar nas suas carreiras depois de serem expostas, mas persegue vingativamente os whistleblowers que expõem tais ilegalidades.
Somente um sistema assim, que oferece supervisão significativamente transparente e consequências reais para aqueles que violam a confiança, possui qualquer hipótese de ser confiável o suficiente para remover a reivindicação global por plataformas que preservem a privacidade do utilizador e segurança mesmo às custas do enfraquecimento das capacidades de policiamento e das agências nacionais de segurança.
O caso da Apple não tem a ver com o equilíbrio entre liberdade e segurança; mas com a fiabilidade das instituições ou tecnologias que dependem de confiança. Não será possível resolver tal caso passando um rolo compressor na tecnologia a serviço de instituições não confiáveis.

Tradução: Rafael A. F. Zanatta para o Outras Palavras

iReferência a atentado praticado em San Bernardino (Califórnia), em dezembro de 2015. Dois atiradores mataram 14 pessoas e feriram 22. Foram apontados pelo FBI como extremistas islâmicos. Leia mais na Wikipedia. [Nota de Outras Palavras]

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