Terceira e última parte de um texto de Perry Anderson que analisa a
situação política no Brasil que levou ao desenrolar do processo de
destituição de Dilma Rousseff.
Manifestantes contra a destituição de Dilma Rousseff assistem à votação do impeachment. Foto do facebook de Jornalistas Livres. |
Nos bastidores, contudo, o principal repositório das esperanças de
acabar com o PT não tinha desistido. Desde o início da crise, FHC
tornou-se onipresente na mídia – a sua imagem estava em toda parte,
numa enxurrada de entrevistas, artigos, discursos, diários. Bastante
estimado pelos barões da mídia e os seus lacaios, a sua renovada
proeminência era fruto de um cálculo político mais imediato de ambas as
partes.
Apresentado como o estadista ancião da República, a cuja sabedoria se
deve a estabilidade atingida, editores e jornalistas esforçaram-se por
construí-lo como um pensador de renome internacional, a voz da sanidade e
da responsabilidade diante das mazelas do país, inclusive com a
imprensa e a academia anglófona exibindo-o, engolindo todo esse coro de
sicofantia. A razão para toda essa apoteose é bastante simples: a
presidência de Cardoso administrou ao Brasil uma generosa dose de
administração pró-mercado, um remédio que parecia ser mais urgente do
que nunca diante do escárnio populista do PT.
O próprio Cardoso, que quando presidente lamentou a “enorme
dificuldade” porque “o Brasil não gostava do sistema capitalista”,
estava tranquilo por exercer esse papel. Mas ele também tinha uma
questão pessoal no meio de todos esses holofotes. Quando saiu da
presidência, o seu índice de aprovação não era muito mais alto do que o
de Dilma hoje, e por oito anos sofreu uma dura comparação com Lula, um
presidente muito mais popular que repudiou o seu legado e transformou o
país de forma decisiva, assegurando ao PT mandatos que duraram o dobro
do seu.
Isso foi algo duro de suportar. Será que a aura de pensador poderia
suportar a perda do seu prestígio como governante? Objetivamente, o
segundo mandato foi – e isso é bastante normal – menos popular do que o
primeiro. Na busca pela presidência, Cardoso sacrificou não apenas as
suas antigas convicções, que eram marxistas e socialistas, mas com o
tempo até mesmo os seus padrões intelectuais.
A banalidade dessa mudança chega a ser disparatada – discursos
elogiosos para os efeitos da globalização e ansiedade com os seus
efeitos colaterais. Em raras ocasiões, acabava sendo sincero: “Devo
admitir que, ainda que o meu lado intelectual seja forte, eu sou
basicamente um Homo politicus”, disse FHC certa vez.
Mas subjetivamente, a vaidade – atingida pelo apelo político
grandioso de um ex-operário sem educação formal – não permite que
pretensões mais cerebrais sejam colocadas de lado. Tingido pelo verde e
amarelo da Academia Brasileira de Letras, uma cópia tropical da versão
original e pomposa dos franceses – com uma espada a seu lado, FHC
declarou que o sociólogo e o presidente nunca divergiram, demonstrando
uma carreira coerente e uma administração criativa, inteiramente em
sintonia uma com a outra.
Ao longo de anos, ele teve motivos para reclamar que, enquanto
oposição, o próprio PSDB foi insuficientemente leal à memória do seu
líder máximo, evitando qualquer defesa mais vigorosa da sua modernização
nacional e do seu corajoso programa de privatizações. Agora, contudo,
diante da crise do ‘lulopetismo’ – o seu uso mais desdenhoso, implicando
algo ainda focado nas bases, mais demagógico do que o mero suporte
petista, ou ‘petismo’ – fica claro o quão certo Cardoso esteve todo esse
tempo.
Se houve algo de bom durante o governo do PT, isso deveu-se à herança
deixada por FHC. Se houve algo desastroso e terrível, então a culpa não
é dele, pois tinha alertado a todos o que aconteceria. Era tempo de
erguer novamente as bandeiras de 1994 e 1998, sem qualquer inibição,
colocando assim um fim ao desgoverno do PT.
Ainda que ele mesmo não tivesse evocado o impeachment, ele
reconhecia-o como um processo legítimo, desde que tivesse base legal
para isso. E ainda que não tivesse, Dilma ainda poderia ser removida
politicamente. Mas – e aqui os cálculos de Cardoso mostram-se diferentes
daqueles feitos pela nova geração de políticos do PSDB no Congresso,
ansiosos para tomar o poder rapidamente – era melhor esperar pelo
Judiciário, que poderia ser sido um instrumento para que a Justiça
Política fosse cumprida.
Essa confiança vinha das íntimas conexões entre os juízes mais
veteranos e estava longe de estar errada. Indicado para presidir o caso
contra Dilma no Supremo Tribunal Eleitoral estava Gilmar Mendes, um
parceiro próximo indicado pelo próprio Cardoso para o Supremo Tribunal
Federal, ocupando este lugar até os dias de hoje – e que nunca fez
nenhum segredo sobre o seu desgosto para com o PT.
Mas Dilma era o alvo menos importante. Para FHC, o alvo crucial a ser
destruído era Lula e não apenas por questão de vingança, embora isso
tenha sido muito saboreado no âmbito privado, mas porque havia risco,
dada sua antiga popularidade, que ele voltasse em 2018 – supondo que
Dilma sobrevivia até então, algo que assustava o PSDB e o seu programa
de orientar o país novamente para uma modernização responsável.
E assim que as deixas de Cardoso começaram a encontrar eco, uma série
de fugas de informação no caso da Lava Jato passaram a aparecer na
imprensa, implicando Lula em dúbias transações financeiras de tipo
pessoal: viagens em jatos empresariais, palestras remuneradas por
empreiteiras, apartamentos confortáveis, melhorias numa casa de campo,
sem falar nos ganhos obscuros de um de seus filhos. Logo em seguida veio
a apreensão de um amigo milionário fazendeiro, acusado de repassar as
retribuições de um contrato da Petrobrás para o tesoureiro do PT.
Aparentemente, a rede estava a fechar-se sobre ele.
* * *
Rapidamente, durante a primeira semana de março, uma força da Polícia
Federal chegou à porta da casa de Lula às seis da manhã, levando-o sob
custódia para ser interrogado no aeroporto de São Paulo. A imprensa,
informada de antemão, estava à espera do lado de fora para invadir com
as suas câmaras, esperando obter o máximo de publicidade. O pretexto
para todo esse espetáculo é que se Lula fosse convidado a dar
esclarecimentos, ele poderia se ter recusado.
Na semana seguinte, a maior manifestação no Brasil após a Ditadura –
de acordo com a polícia, com 3,7 milhões de pessoas nas ruas – clamou
por justiça contra Lula e impeachment para Dilma. Três dias depois,
Dilma apontou Lula como ‘chefe da Casa Civil’ do seu governo – algo
equivalente a um Primeiro Ministro. Como ministro, Lula teria imunidade
perante as acusações de Moro em Curitiba, permitindo que ele, assim como
os demais membros do governo, respondesse somente ao Supremo Tribunal.
Moro não perdeu tempo. Na mesma tarde, publicou as gravações de uma
conversa telefónica entre Lula e Dilma, na qual ela lhe disse que
mandaria os papéis necessários para que ele assinasse e assumisse, “se
necessário”. O seu diáogo foi ambíguo. Mas o escândalo mediático foi
ensurdecedor: aqui, apanhada com a boca na botija, estava uma manobra
para fugir à Justiça e salvar Lula, deixando-o longe do alcance da lei.
Dentro de 24 horas, um juiz em Brasília impediu a nomeação – um juiz
que, como se soube mais tarde, havia postado imagens nas redes sociais
de quando estava nas manifestações pelo impeachment, ostentando
alegremente uma t-shirt do PSDB. Mas esse juiz foi rapidamente apoiado
por Gilmar Mendes e, naquela mesma noite, o PMDB anunciou que estava a
sair do governo, no qual controlava a vice-presidência e outros seis
ministérios, abrindo o caminho para uma rápida deposição de Dilma no
Congresso.
Nessa dramática escalada da crise política, o protagonista central
era o Judiciário. A noção de que a operação de Moro estava a agir de
forma imparcial em Curitiba, inicialmente defensável, acabou por ser
prejudicada com a cobertura gratuita e espetaculosa da imprensa sobre a
condução coercitiva de Lula, o que acabou ainda sendo seguida por uma
mensagem pública saudando as manifestações a favor do impeachment: “o
Brasil está nas ruas”, anunciou o juiz. “Sinto-me tocado”.
Contudo, ao publicar as gravações da conversa entre Lula e Dilma,
horas depois da escuta ter sido anulada pela Justiça, ele violou a lei
duas vezes: violou o sigilo das intercepções telefónicas, ainda que
fosse permitida a escuta, e sem falar também no princípio da
confidencialidade que supostamente protegia as comunicações da chefe do
Executivo. Ficou tão evidente que essas coisas eram ilegalidades que
Moro foi repreendido logo pelo juiz do Supremo responsável, mas sem
qualquer sanção efetiva. Ainda que “inapropriado”, o seu superior notou
delicadamente que a ação do juiz tinha alcançado o seu objetivo.
Na maioria das democracias contemporâneas, a separação dos poderes é
uma ficção bem-educada, com os Supremos Tribunais – no que o caso
americano é uma importante exceção – curvando-se perante os governos. Os
contorcionismos do Tribunal Constitucional Alemão – geralmente visto
como exemplo de independência judicial – ao sustentar as violações do
país tanto no Grundgesetz e no Tratado de Maastricht e favorecer os
diferentes regimes de Berlim pode ser visto como uma norma geral.
No Brasil, a politização do Judiciário é uma tradição longínqua. A
figura inverosímil de Gilmar Mendes é talvez um caso extremo, ainda que
seja revelador. Como presidente, FHC defendeu o seu amigo de acusações
criminais ao promove-lo como Ministro antes de o elevá-lo ao STF – e
Mendes agora volta-se contra Dilma por ela fazer o mesmo com Lula. Ao
colocá-lo no posto e tentando evitar chamar atenção, FHC entrava pelo
prédio sorrateiramente pelo edifício da garagem, encontrando Mendes no
estacionamento.
Bastante militante em relação ao PSDB – ‘tucano demais’, considerando
que a ave é o símbolo do partido – até mesmo para Eliane Catanhêde, uma
respeitável jornalista de direita, Mendes era geralmente visto
almoçando com proeminentes líderes do partido, após ter sido absolvido
das acusações e o juiz não hesitou em utilizar dinheiro público para
‘alistar’ os seus subordinados a partir de uma escola privada de
advocacia que ele possui, algo feito enquanto ele já era juiz no maior
tribunal da nação. Os seus ataques contra o PT são constantes.
Sergio Moro, por sua vez, é de uma geração mais jovem e vinho de
outra pipa. Os Estados Unidos, país que visita com regularidade, são a
sua principal referência. Uma pessoa trabalhadora e provinciana, ele
considera que nada deve aos sistemas de patronagem e compadrio. Mas vale
a pena destacar que, quando Moro tinha pouco mais de 30 anos, ele
demonstrou também sua indiferença com os princípios básicos das leis e
das regras num artigo exaltando o exemplo dos magistrados italianos nos
anos 1990, “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, nos termos que
antecipariam os seus procedimentos uma década depois.
Recusando-se a pesquisar na literatura mais extensiva sobre a
Tagentopoli, Moro utilizou somente duas eulogias feitas pela equipe de
Milão e que foram traduzidas para inglês, citadas sem qualquer dose de
reflexão crítica, inclusive confiando no depoimento de um chefe da máfia
que vivia com um salário do Estado enquanto delator, ainda que ele
tivesse sido rejeitado pelo tribunal. A presunção da inocência não
poderia ser tida como ‘absoluta’, tal como ele declarara: ela era apenas
um ‘instrumento pragmático’ que poderia ser desfeita de acordo com a
vontade do magistrado. Ele celebrou os vazamentos seletivos para a mídia
como forma de ‘pressão sobre os acusados’, usados quando ‘os meios
legítimos não podem ser atingidos por outros métodos’.
O perigo de ter um Judiciário a atuar nesse espírito é o mesmo no
Brasil do que foi na Itália: uma campanha absolutamente necessária
contra a corrupção que se torna tão infectada com o desdém pelo devido
processo, com um conluio tão inescrupuloso com os média, que em vez de
instalar qualquer nova ética de legalidade, acaba confirmando o longo
desrespeito social pela lei. Berlusconi e seus herdeiros são a prova
viva disso.
Todavia, a cena no Brasil se difere da situação na Itália por dois
aspectos. Não há nem Berlusconi ou Renzi no horizonte brasileiro. Moro,
cuja celebridade agora excede qualquer um dos seus modelos italianos,
sem dúvida está a ser solicitado para suprir o vazio político, caso a
Lava Jato faça de fato uma limpeza sobre a velha ordem. Mas o medíocre
destino de Antonio di Pietro, o mais popular dos magistrados de Milão,
pode ser lido como um aviso para Moro, por mais puritana que seja a sua
aparência, evitar a tentação de se envolver na política.
O espaço para uma ascensão meteórica também tende a ser menor, pois
há uma diferença crucial entre as duas cruzadas contra a corrupção. O
assalto feito pela Tagentopoli foi direcionado contra os principais
partidos do país, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, que
estiveram no poder durante trinta anos. A Lava Jato, por sua vez, não
parece estar focada nos partidos tradicionais do poder político no
Brasil que, diga-se de passagem, estão bastante divididos, mas sim nos
sistemas que possibilitaram que chegassem lá. Nesse ponto, ela parece
mirar somente num alvo e, sendo assim, mais manipuladora.
Tal manipulação pode ser acentuada naquilo que se considera como a
segunda diferença entre a Itália dos anos 1990 e o Brasil de hoje.
Quando a Tagentopoliatingiu o sistema político, a mídia italiana formou
um cenário homogéneo. Jornais independentes passaram a apoiar o
Judiciário de Milão em toda parte. O chefe do conglomerado midiático do
Olivetti, De Benedetti, cujo jornal recebeu a maior parte das fugas de
informação, acusou duramente os democratas cristãos e socialistas, ao
mesmo tempo em que ficou quieto sobre as implicações em outros partidos.
O império de jornais e televisão de Berlusconi enalteceu e instigou
os magistrados. E o resultado foi que, com o passar do tempo, havia
ainda mais questionamentos sobre as ações de diferentes esferas do
Judiciário – muitas delas bastante corajosas, enquanto outras eram mais
dúbias – do que no Brasil. Ali os média têm sido bastante monolíticos e
partidários na sua hostilidade anti-PT e nada crítica quanto à
estratégia de fugas de informação e pressões vindas de Curitiba, do qual
a imprensa age como sua porta-voz. O Brasil possui alguns dos melhores
jornalistas do mundo, cujos textos têm analisado a atual crise num nível
intelectual e literário que vai além do que fazem o Guardian ou o New
York Times. Mas tais vozes são sufocadas por uma enorme floresta de
conformistas que nada mais fazem do que ecoar as visões de
patrocinadores e editores.
Comparar a cobertura da mídia sobre qualquer fuga de informação que
prejudique o PT com o tratamento dado às informações ou rumores que
afetam a oposição é uma forma de medir a extensão da sua política de
dois pesos e duas medidas. Enquanto a Lava Jato se estava a desenrolar,
veio à tona um pujante exemplo.
Em 1989, num dos mais famosos momentos decisivos da história moderna
brasileira, Lula – que na época era visto como um perigoso radical pelas
elites – estava perto de assegurar uma vitória na sua primeira corrida
presidencial, quando, dias antes da eleição, uma ex-namorada sua
apareceu na televisão em nome de Collor, paga pelo próprio irmão de
Collor, acusando Lula de querer que ela abortasse de um filho de ambos.
Aquele momento, amplificado até ao limite pelos média, foi fundamental
na sua derrota eleitoral.
Dois anos depois, Cardoso – na época um proeminente senador do PSDB,
já tido como futuro candidato à presidência – ficou conhecido no meio
político por ter uma amante a trabalhar na mesma rede de televisão que
prejudicou a campanha de Lula, a TV Globo. Quando ela teve um filho do
ex-senador, saiu do país e foi mandada para Portugal. Em meados de 1994,
depois de ter sido Ministro das Finanças, Cardoso estava a disputar a
presidência e o trabalho dela passou a ser somente nominal, ainda que a
Globo continuasse a pagar o seu salário.
Assim que FHC foi eleito, o seu braço direito, o jovem Magalhães,
instruiu à jornalista que não regressasse para o Brasil por medo de
comprometer a sua reeleição. Quando a Globo a tirou da folha de
pagamento, um trabalho ficcional foi criado para ela, a fazer pesquisas
de mercado na Europa para uma cadeia de lojas duty-free que recebera do
próprio FHC direitos monopolísticos nos aeroportos brasileiros. Por
intermédio dessa empresa, ela teria lavado cerca de cem mil dólares por
intermédio de uma conta bancária nas Ilhas Caymão – seria uma pensão
alimentícia ou um suborno para ficar calada?
A história veio à tona em fevereiro, no meio do furacão das denúncias
sobre as renovações na casa de campo de Lula. Os média fizeram de tudo
para que isso recebesse o mínimo de cobertura possível. A empresa agora
está sob investigação por transação criminosa. Cardoso protesta pela sua
inocência. E ninguém espera que ele sofra qualquer inconveniência.
Será que isso pode ser generalizado a toda a oposição? Moro divulgou
as suas escutas incendiárias no dia 16 de março. Uma semana depois, a
polícia de São Paulo invadiu a casa de um dos executivos da Odebrecht, a
maior empreiteira da América Latina, cujo diretor recém tinha sido
sentenciado a 19 anos pelo crime de suborno. Na casa os policias
encontraram uma lista com 316 políticos com quantias de dinheiro ligadas
aos seus nomes. Estavam incluídas figuras tradicionais do PSDB, do PMDB
e de vários outros partidos – um verdadeiro panorama da classe política
brasileira.
Objetivamente falando, essa lista produzia muito mais barulho do que a
conversa entre Lula e Dilma. Mas era um barulho menos conveniente:
diretamente de Curitiba, Moro rapidamente tomou uma posição contrária à
das escutas telefónicas, ordenando que as listas fossem colocadas sob
sigilo para impedir qualquer especulação. Ainda assim, o alarme tinha
soado: a Lava Jato poderia sair do controle. Se Dilma tinha que cair,
era preciso fazê-lo antes que as listas da Odebrecht pudessem ameaçar
seus próprios acusadores.
Poucos dias depois, o PMDB anunciara que abandonava o governo e
começaria uma contagem de votos a favor do impeachment. Os 3/5 de votos
necessários na Câmara dos Deputados, algo que parecia muito difícil de
atingir no início das discussões, estava agora mais perto. A opinião
pública passou a perceber a farsa de um Congresso cheio de ladrões, com
Cunha à frente, solenemente derrubando uma presidente pelo crime de
responsabilidade fiscal.
Quais são as hipóteses de Dilma resistir a este desfecho e as
perspectivas caso o impeachment não aconteça? As esperanças do Planalto
residem em duas contingências: de que com suficiente apoio no Congresso
se possa bloquear o impeachment, oferecendo assim mais ministérios e
cargos para partidos menores que não conseguiriam acesso ao governo
antes, visando com isso reverter a saída do PMDB; e a outra, de que com
muitas manifestações em defesa do governo possam desestimular as grandes
manifestações feitas a favor do impeachment.
Ambos objetivos exigem o retorno de Lula para Brasília, de onde
poderia – ainda que lhe seja negado o direito de ocupar formalmente o
ministério – informalmente cumprir ambas tarefas que lhe foram
atribuídas, ou seja, aproximar-se de deputados relutantes para o campo
governista e de estimular o apoio popular vindo das ruas. Mas o cenário
está a mudar e isso tudo parece cada vez mais distante. As relações
entre Lula e Dilma fragilizaram-se desde que ela optou pela austeridade
após a sua reeleição.
Culpando-a pela falta de habilidade política e pela sua recusa em
aceitar conselhos, Lula teria dito, em privado, que “ela foi a minha
Chefe da Casa Civil e ainda age como tal, não como uma presidente”, ou
então que “é como se fosse a minha filha, que sempre me diz que me ama,
mas nunca presta atenção ao que lhe digo”. Mas é duvidoso se faria
alguma diferença a flexibilidade tática, ainda que importante, diante
das dificuldades enfrentadas por Dilma. Desde o início, a sua segunda
presidência foi apanhada num círculo vicioso de escândalos políticos e
indicadores económicos deteriorados, cuja interação forma um obstáculo
nada fácil de superar para recuperar a autoridade.
O problema da Petrobrás, com inúmeras delações, tem gerado demissões
em massa de trabalhadores; o mesmo tem acontecido com as empresas
empreiteiras cujos diretores e executivos estão na cadeia. A incerteza
sobre onde soprará a Lava Jato tem feito os investidores mais temerosos e
deixado o mercado financeiro assustado: em novembro, o chefe do fundo
bilionário BTG-Pactual, o maior banco de investimento do continente, a
menina dos olhos do Financial Times e do Economist, foi levado algemado
para a esquadra. No Congresso, o corte de gastos neoliberal e o aumento
tributário proposto pelo governo foi derrubado pelo próprio neoliberal
PSDB, procurando criar um constrangimento político: o orçamento de 2016
nem sequer foi aprovado. Mesmo que um virtuoso trabalho de base feito
nos corredores do poder possa conseguir colocar temporariamente o
impeachment em xeque, ele não conseguirá resolver o temível impasse do
atual governo.
A mobilização popular para impedir a saída de Dilma, tal como está
pensada, também tem problemas. Mas isso está conectado diretamente com
os legados dos governos do PT. O partido está numa posição frágil para
convocar os seus beneficiários a defende-lo por pelo menos três razões.
A primeira é simplesmente porque se a corrupção fez com que a classe
média perdesse a simpatia da qual o partido desfrutou antes, a
austeridade alienou a base de classes populares que tinham conquistado.
As manifestações feitas para impedir o impeachment foram, até agora,
muito menos impressionantes do que aquelas feitas por aqueles que querem
que ele aconteça. Os manifestantes têm sido arregimentados
principalmente entre funcionários públicos e sindicatos: os pobres ainda
não compareceram nessas manifestações. A força rural do Nordeste, onde o
PT se consolidou, está ainda socialmente dispersa, enquanto as grandes
cidades do Sul e Sudeste são as fortalezas da nova direita no momento.
Há também a inevitável desmoralização do partido à medida que surgem
sucessivos escândalos com o seu nome, criando um sentido de culpa
coletiva difusa, ainda que não explícita, mas que enfraquece qualquer
espírito de luta. E por fim, mas fundamentalmente, na época em que Lula
chegou ao poder, o partido tornou-se uma máquina eleitoral, financiada
principalmente por doações de grandes empresas, em vez de – como era no
início – pelas doações de membros e simpatizantes, com eles inclusive
aderindo passivamente ao nome do seu líder, sem qualquer vontade de
construir uma ação coletiva com os eleitores.
A mobilização ativa que fez o PT ser uma força nas regiões urbanas e
industriais do Brasil tornou-se uma memória distante conforme o partido
passou a ganhar força em regiões sem indústria, enraizadas numa tradição
de submissão à autoridade e medo da desordem. Isso foi uma cultura
política entendida por Lula, que não fez nenhuma tentativa séria de a
terminar. Na sua própria visão, Lula considerava que mudar isso teria um
custo potencial alto demais. Para ajudar as massas, buscou harmonia com
as elites, para as quais qualquer polarização vigorosa era um tabu. Em
2002, finalmente ganhou a presidência, na sua quarta tentativa, com o
slogan de “paz e amor”. Em 2016, perante um linchamento político, ele
ainda continuou a dizer essas palavras para uma multidão que esperava
por algo mais combativo.
Tal descompasso entre partir para o ataque e o discurso de
responsabilidade é uma marca comum de um padrão que, desde a viragem do
século, tem distinguindo a política do Brasil em relação à América
Latina. O país não é o único que viu um conflito de classes tornar-se
uma crise. Mas em nenhum lugar isso foi tão unilateral como no Brasil.
Mesmo quando Lula estava no auge do seu prestígio enquanto estava na
presidência, sempre houve uma assimetria entre as políticas moderadas e
comodistas do PT e a hostilidade de uma classe média enragé e
da mídia contra ele. Nos últimos dezoito meses, essa expressão de
abominação unilateral tornou-se ainda mais violenta. Um vereador
[Roberval Fraiz, de Araraquara] do PMDB no interior de São Paulo disse
publicamente que Lula deveria ser morto como uma cobra, pisando na sua
cabeça. No Rio Grande do Sul, no Sul do país, uma pediatra recusou-se a
atender uma criança de um ano porque a mãe era uma ‘petista’, e foi
absolvida de infração ética pelo Conselho Regional de Medicina e pela
Associação de Médicos. O juiz do Supremo Tribunal, Teori Zavascki,
responsável por ter repreendido Moro, foi presenteado com uma série de
faixas e cartazes que o chamavam de “traidor” e “pilantra do PT”,
enquanto manifestantes cantavam a sua canção símbolo que diz que o
“capitalismo veio pra ficar”.
À medida que se aproxima o Dia D do impeachment, os militantes
fanáticos receberam as moradas dos deputados indecisos ao redor do país e
intimidaram-nos, acampando à frente das suas casas. Meticulosamente
deve dizer-se que o mercado de ações tem mantido um ritmo: subiu quando
Lula foi preso, caiu quando foi feito ministro e subiu novamente quando a
sua tomada de posse foi impedida.
Um golpe teatral (um coup de théâtre) ainda é possível, com uma
viragem de eventos a salvar Dilma no último minuto, mesmo que não pareça
que isso irá acontecer. A maior probabilidade é de que se forme um
regime liderado pelo vice-presidente que a abandonou, o veterano
sepulcral do PMDB – comparado com o mordomo de um filme de terror –
Michel Temer. De fala mansa e cerimonioso, Temer preparou o caminho há
alguns meses atrás, criando um programa para deixar claro que o país
estaria seguro assim que ele assumisse.
O seu pacote trata-se de um plano de estabilização convencional,
agilizando privatizações, reforma da Segurança Social e abolindo os
gastos mandatórios constitucionais em saúde e educação, acompanhados de
promessas de cuidar pelos menos afortunados. Se Dilma sofrer o
impeachment, com uma maioria de 3/5 do Congresso apoiá-lo, Temer não
teria nenhum problema em formar um governo de coligação junto com o
PMDB, PSDB e uma grande quantidade de partidos pequeno, colocando uma
mancheia de tecnocratas em ministérios centrais.
Já que tal combinação poderia passar uma série de leis, que Dilma não
pode, isso garantiria o regresso da confiança do mercado, isso
certamente traria melhorias aos indicadores económicos feitos pelos
mercados financeiros, não importa quanto isso custaria aos pobres. Mas
dada a conjuntura global adversa e a teimosa baixa taxa de investimentos
que persiste no Brasil desde o fim da Ditadura, é difícil ver qualquer
alívio para o país num horizonte futuro.
Politicamente, também a estabilidade não estaria garantida. Uma
questão óbvia que surge é se será que o choque do impeachment irá
sufocar o que resta do espírito de luta daqueles que apoiam Dilma, ou o
contrário, ou seja, que isso provoque uma resistência ainda mais feroz
contra as elites do país. Ambas as alternativas não são fáceis para a
fileira dos vitoriosos – se eles de fato conseguirem o impeachment da
presidente.
Um juiz do Supremo Tribunal Federal ordenou que Cunha também
colocasse em votação o impeachment de Temer, usando a mesma referência
legal do impeachment de Dilma, já que quando ela estava fora do país,
ele também assinou os decretos de responsabilidade fiscal que lhe são
atribuídos – algo que apanharia desprevenido aqueles que querem
derrubá-la e esperam instalar Temer como presidente rapidamente. Caso
esse ataque seja evitado, outro curioso problema se avizinha.
Ainda está pendente no Supremo Tribunal Eleitoral uma acusação de que
a campanha de 2014 de Dilma e Temer violou o regulamento eleitoral, uma
acusação trazida pelo PSDB quando ainda esperava forçar a situação de
novas eleições. Se levada adiante, a ação derrubá-los-ia a ambos. O
processo não pode ser retirado e seria um constrangimento se o
impeachment de Dilma fosse concretizado e Temer tomasse o poder. Mas
desde que Gilmar Mendes se torne presidente do Supremo Tribunal em maio,
a Justiça brasileira provavelmente superará essa questão sem
dificuldade.
Mas, claro, uma interrogação maior surge sobre qual o impacto
subsequente que a Lava Jato poderia ter sobre os deputados
pró-impeachment. Acelerar o procedimento do impeachment serviu para
desviar os olhares da opinião pública sobre a lista da Odebrecht. Mas
essas listas podem ser apagadas da consciência da população após o
impeachment? Dentre das suas fileiras, toda a classe política está em
risco. Será que a Justiça brasileira também poderia minimizar essa
dificuldade, nos interesses, digamos, de uma reconciliação nacional?
Que o Partido dos Trabalhadores se tenha juntado, por uma
transformação ocorrida internamente, às deformadas fileiras do resto da
fauna política brasileira – PMDB, PSDB, PP e o restante da corja – não
pode ser negado. Até agora, dois presidentes do partido, dois
tesoureiros, um presidente e um vice-presidente da Câmara dos Deputados e
o líder do partido no Senado foram presos, afundados na lama da
corrupção que desconhece fronteiras políticas.
De forma emblemática, o último dos notáveis e com a delação mais
volumosa, o senador Delcídio do Amaral era um refugiado do PSDB, uma
importante engrenagem do partido de FHC nas operações da Petrobrás. Mais
de metade do Congresso está na lista de pagamento das empresas
empreiteiras, cujas doações financiam as suas campanhas eleitorais. A
degradação do sistema político tornou-se tão evidente que no outono
passado o STF – que está longe de ser algum tipo de areópago da
integridade imparcial – finalmente decidiu que o financiamento privado
de campanha era matéria inconstitucional e proibiu as empresas de doarem
para as campanhas.
O Congresso imediatamente reagiu com emendas constitucionais para
permitir as doações, mas o assunto continua congelado na Câmara. Se
confirmada a decisão do Supremo sem ser fintada, a decisão permitirá uma
espécie de revolução no funcionamento da democracia brasileira: a única
coisa inequivocamente positiva no meio a toda esta crise.
O Partido dos Trabalhadores acreditou, durante um determinado
período, que ele poderia se valer da ordem institucional brasileira para
beneficiar os pobres sem prejudicar os ricos – e até mesmo contando com
a sua ajuda. E de fato houve benefícios para os pobres, tal como eles
se propuseram. Mas uma vez aceite o preço de entrar num sistema político
moribundo, a porta para voltarem atrás fechou-se. O próprio partido
passou a definhar, tornando-se um enclave do Estado, sem qualquer
autocrítica ou direção estratégica, tão cego que chegou a ostracizar
André Singer, o seu melhor pensador, para colocar uma mistura de
marketeers e relações públicas, tornando-se tão insensíveis que passaram
a conceber o lucro, independentemente de onde viesse, como condição
para o poder político.
As suas conquistas ainda permanecerão. Mas se o partido terá o mesmo
destino, isso é uma questão em aberto. Na América do Sul, um ciclo está a
chegar ao fim. Por uma década e meia, sem a pressão direta dos Estados
Unidos, fortalecidos pelo boom das mercadorias, e amparando-se em
grandes reservas de tradição popular, o continente foi a única parte do
mundo em que os movimentos sociais rebeldes coexistiram com governos
heterodoxos. No despertar de 2008, há agora cada vez mais desses
movimentos. Mas já não há nenhum desses governos. Uma exceção global
está a chegar ao fim e sem nenhum sinal de mudança positiva no
horizonte.
Artigo publicado integralmente no Blog da Boitempo a 21 de abril de 2016 e publicado originalmente na edição de Abril da London Review of Books. Tradução de Fernando Pureza.
Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da
UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista
de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido
pelo seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do
Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de "Espectro,
Afinidades seletivas" e mais recentemente "A política externa
norte-americana e seus teóricos", além de ser colaborador da revista
semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.
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