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terça-feira, 14 de junho de 2016

Venezuela em decomposição

Como se governa um país que se desintegra, uma sociedade em decomposição? Ou, melhor, que sentido tem ser governo numa sociedade assim? A impressão é que todas as medidas que o governo de Nicolás Maduro toma na Venezuela aprofundam uma crise social que tem longas raízes, que se agravaram nos últimos anos. Por Raúl Zibechi


Longas filas para comprar produtos básicos - Foto aporrea.org
Longas filas para comprar produtos básicos - Foto aporrea.org
A comida é poder”, diz Gustavo numa enorme roda de cooperativistas que refletem sobre como a escassez está a afetar todos os projetos, deixando cada família numa situação desesperada para conseguir os alimentos diariamente. A lista de produtos que foram desviados para o mercado negro pelo “bachaqueo” (açambarcamento) é cada dia maior, e isso começa a afetar a coesão social, a tal ponto que não são poucos os que temem explosões sociais.
O outro lado é a noite. Nas grandes cidades, assim que o sol se põe as ruas ficam desertas, governadas pela solidão e pela penumbra, já que o medo dos roubos faz com que as famílias abandonem – e isto já acontece há anos – a tradicional sociabilidade caribenha, bullanguera (festiva), coletiva, de rua, para se fecharem na segurança do lar. Apenas deambulam alguns casais e quase não se vêem pessoas sozinhas desafiando a escuridão de avenidas mal alumiadas.
Surpreende no entanto a circulação de enormes carros dos anos sessenta, os célebres “colachatas” uruguaios há muito desaparecidos da geografia urbana do continente. A falta de divisas para importar carros desperta o engenho e, enquanto podem, os caraquenhos e os habitantes de outras cidades venezuelanas fazem rodar estas engenhocas que mostram os traços de uma sociedade atravessada por todo o tipo de escassez. Juntamente com a segurança, a falta de alimentos e de remédios é o problema maior no dia a dia dos venezuelanos.
Há situações quase ridículas. O dólar oficial mais baixo vale 13 bolívares, mas no mercado negro é cotado a mais de 1.000. É o dólar para importar remédios e alimentos regulados. Há outro intermédio que se venderia a cerca de 300 bolívares. Mas é tudo ficção, porque nenhum dos dois se consegue, sendo o Estado o único que os pode fazer circular. O resultado é que para tudo há que ir abastecer-se ao mercado negro.
Dança de números
As distorções dos preços soam alucinantes e os relatos a realismo mágico. Alguns exemplos. Um quilo de farinha “regulada” tem um preço de 19 bolívares (subiu para 190 há apenas um dia), mas só se consegue no mercado negro pagando mais de 1.000. Certamente, alguns podem comprá-la, mas devem fazer longas filas, de horas e até dias, para ficar com o tesouro a preço oficial. Exceto as pessoas com poder (armas ou influências), que ficam com os alimentos sem ter que passar pelas incríveis filas que rodeiam as lojas e supermercados que os vendem.
Uma garrafa de meio litro de água, que abundam, vale cem “bolos” (bolívares). O litro de gasolina de 91 octanas tem um preço de um bolo e a de 95 octanas de seis bolos. Pode encher-se um tanque de 50 litros de gasolina por metade do preço de uma garrafa de água. As bilhas de 18 quilos de gás custam 11 bolos, mas não as distribuem (ou seja, os que podem ficam com elas), e as pessoas devem pagá-las a 700 bolívares aos açambarcadores (“bachaqueros”).
O salário mínimo é de 18 mil bolívares. Medido pelo dólar a 300, seria de 600 dólares. Mas dividido pelo dólar real, o paralelo, reduz-se a apenas 18 dólares. Ou seja, nada. Por isso, as pessoas brigam por conseguir os produtos aos preços regulados, porque é a única forma de o dinheiro chegar. A maioria vai para as filas, onde se deprime e enfurece, e quando não tem mais remédio vai ao “bachaqueo”.

Os produtos que faltam são cada vez mais numerosos – Foto aporrea.org
Os produtos que faltam são cada vez mais numerosos – Foto aporrea.org
O problema agrava-se porque os produtos que faltam são cada vez mais numerosos. Leite não se encontra. Os alimentos básicos (farinhas, massa, arroz) também não. Agora as coisas agravam-se pela falta de gás e, nos últimos meses, pela falta de energia elétrica, devido à seca e que está a provocar cortes de luz rotativos de três a quatro horas diárias. A inflação trepou a mais de 700 por cento em 2015 e espera-se que este ano atinja os quatro dígitos. A maior nota é de 100 bolívares. Mas o autocarro custa 50. O aumento vertiginoso de preços não foi acompanhado da emissão de notas maiores, e as pessoas começam a sair à rua com carteiras carregadas de papéis de 20 e 50 bolívares com o que lhes costumam pagar os salários e as pensões de reforma.
Todos perguntam quanto tempo pode durar esta situação. “O tempo que os militares decidam”, responde um dos participantes na roda cooperativista. Ao que parece começam a ver-se divisões nos corpos militares que tornam imprevisível o desenlace de uma crise que, na realidade, vai muito para além de uma simples crise: uma sociedade que se decompõe, que já não tem referências e que parece estar a ser engolida por uma espiral fora de controle.
Mas os traços da decomposição sentem-se em todos os setores e atitudes, não só a respeito da comida. Há toda uma indústria de falsificação de certidões de nascimento para poder comprar fraldas a preços regulados. Algumas famílias que têm o “privilégio” de ter um deficiente, “alugam-no”, porque há filas especiais para que recebam alimentos a preços reduzidos.
Mas a chave da situação encontra-se na queda da produção, em geral, e de alimentos em particular. O Estado foi ganhando presença na economia, mas à medida que expropriava ou nacionalizava empresas, a ineficiência ia ganhando novos setores. Uma gangrena que começou a chamar-se “rentismo petrolífero” e acabou por afetar todo o corpo social.
No entanto, falar de açambarcamento/bachaqueo pode induzir em erro. Existem, sem dúvida, redes de bachaqueros que contam com a cumplicidade dos uniformizados (polícias e militares) e de poderosos empresários. Seria ingénuo duvidar que alguns deles são cúmplices de poderes globais, o “imperialismo” que o governo denuncia a toda a hora. Mas o bachaqueo é muito mais que isso, está presente em todos os poros da sociedade e impede-a de respirar.

O senhor que compra uma comida num restaurante a preço regulado e sai à rua para vendê-la a dez vezes o que pagou não faz parte de nenhuma rede ilegal. Assim acontece com muitas pessoas, uma percentagem impossível de estabelecer, mas cada dia maior. São atitudes que já se tornaram cultura, para alguns são modos de acumulação e para outros formas de sobrevivência. A verdade é que a sociedade não só as tolera como vive delas: uns como bachaqueros e outros como consumidores. “É o pobre a especular com o pobre”, diz Jorge Rath, da rede de cooperativas Cecosesola. Agora o governo propôs-se entregar uma bolsa de alimentos a cada família como forma de enfrentar a crise de escassez. Mas ao segundo mês já não têm com que encher as bolsas. As empresas privadas não entregam mercadorias se não se lhes pagarem em dinheiro. E as empresas estatais naufragam na improdutividade e no esbanjamento. A entrega de bolsas também tem outros efeitos: as pessoas devem inscrever-se numa lista, e têm sempre medo de que se protestarem sejam tiradas da lista.
Ao que parece, vive-se ao dia. Nem o governo tem um plano a médio prazo. A impressão é que todos os planos, que se anunciam mediaticamente com grande alarde, são levados pelo vento da degradação coletiva. “Estamos a passar do rentismo à depredação”, remata Jorge. Talvez a melhor forma de descrever um modelo de sociedade que adormeceu com os altos preços do petróleo e, quando estes se evaporaram, perdeu o rumo, ficando apenas a olhar em redor para ver quem tem, e assaltá-lo.
Artigo de Raúl Zibecchi, publicado em brecha.com.uy a 27 de maio de 2016. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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