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sábado, 9 de julho de 2016

Liberdade e preconceito

Desidério Murcho

Nos meios homossexuais ingleses, as declarações do Papa Bento XVI da passada segunda-feira causaram protestos. Discordo igualmente desses protestos e das declarações do Papa.
Era o que faltava uma pessoa, só por usar saias, ou por ser Papa, não poder dizer tolices. Não é de esperar grande sensatez em adultos que acreditam que depois de uns gestos mágicos um copo de vinho se transforma em sangue. Mas as pessoas devem ter direito às suas tolices. De modo que os protestos dos homossexuais são indefensáveis porque querem policiar o pensamento dos outros. Era tempo de se assumir que há quem pense que envolver-se em práticas homossexuais é condenar a alma ao inferno, e de se passar a explicar a tolice desta posição, ao mesmo tempo que se reconhece o direito de a ter a quem quiser tê-la, seja um Papa ou um vendedor de hortaliça.

Há quem defenda que a liberdade de expressão não é para toda a gente e que pessoas como o Papa devem ter tento na língua. Mas eu não concordo. Toda a gente deve ter liberdade de expressão e o Papa em qualquer caso fala apenas para os católicos. Para quem haveria de falar? Se ele me disser que não devo entregar-me às alegrias da pederastia com suecos de dois metros de altura e que calçam o 45, estou-me nas tintas. Ele tem o direito de dizer isso e eu tenho o direito de ir para cama com eles.

Quando se começa a defender que algumas pessoas, que desempenham este ou aquele cargo, devem ter tento na língua é porque queremos construir uma sociedade baseada na mentira: é porque sabemos que, não fosse a mordaça, as pessoas diriam o que realmente pensam e o que realmente pensam é uma tolice. Mas então o melhor é deixá-las primeiro dizer as tolices para depois explicar por que razão são tolices.

Por outro lado, não concordo com as afirmações do Papa, porque são puro preconceito. O preconceito a que o Papa está a dar voz é a ideia de que devemos procurar orientação moral na natureza. As práticas homossexuais constituem um pecado porque o pénis e o ânus não foram originalmente feitos para isso, e na sua infinita sabedoria a Natureza fez os homens e as mulheres para se entregarem às alegrias do casamento infeliz contemporâneo. Substitua-se “Natureza” por “Deus” e temos o pensamento do Papa. Isto é uma tolice porque a natureza não é exemplo moral seja para quem for. Ninguém me defende o direito de matar os filhos que a minha mulher teve com outro homem, à semelhança do que fazem os leões. Ou o direito de fazer sexo na rua com quem me der na gana, como os cães. Não devemos procurar orientação moral na natureza, mas sim no nosso pensamento articulado, pesando cuidadosamente os prós e os contras do que fazemos. A natureza não é o fundamento da moralidade. Se o fosse, seria imoral viver até aos setenta anos, dado que estamos biologicamente programados para viver enquanto nos reproduzirmos e depois rebentar. Caso fosse a natureza a orientar-nos a moralidade, ser Papa seria o cúmulo da imoralidade.


Desidério Murcho

Publicado no jornal Público (24 de Dezembro de 2008)

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