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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A crise global e o Plano B

As saídas para evitar um colapso civilizacional são evidentes – mas nunca estiveram tão bloqueadas. A questão crucial: teremos tempo para chegar a um Plano B? Por Ladislau Dowbor.

"Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este desporto: Ganância é Ótima!" (Imagem de Banksy)
É difícil deixar de pensar que estamos a viver num circo gigante. Quando nos sentamos no sofá depois de um dia bizarro de trabalho e horas de transporte, as novelas surreais na TV dão-nos uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados nas fronteiras, os problemas das grandes finanças, os últimos gols de Neymar. Ah sim, e quem, depois da Hungria, a Grécia, a Polônia e o Reino Unido está a ameaçar deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais superiores.
É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62 bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial. Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende do papel as pessoas desempenham no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o condomínio de Alphaville estão murados pela segurança, enquanto os pobres que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa cortar a relva e entregar as compras.
De acordo com o relatório global da World Wild Foundation (WWF) sobre a destruição da vida selvagem, 52% das espécies de animais não-domesticados desapareceram, durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão contaminadas ou prestes a secar. Os oceanos estão a gritar por socorro, o ar condicionado prospera. As florestas estão a ser derrubadas na Indonésia, que substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e da beleza do mogno.
A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 biliões de dólares – comparados a um PIB mundial de 73 biliões de dólares norte-americanos – eram mantidos em paraísos fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais de Basileia mostra que o mercado de derivados, o sistema especulativo das principais commodities, alcançou 630 biliões de dólares, gerando o efeito “ioiô” nos preços das matérias-primas econômicas básicas. O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16 corporações basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou Jean Ziegler em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo, estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição para os nossos tempos: vivemos une époque formidable!
Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação global sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova Iorque e a cúpula sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos. A nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os biliões em especulação financeira precisam ser redirecionados para financiar a inclusão social e para promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este desporto:Ganância é Ótima!
Afogados em números
Estamos a afogar-nos em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo a respeito dos news four biliion – referindo-se aos quatro mil milhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da globalização” – uma hábil referência aos pobres. Temos também os milhares de milhões que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) mostra-nos com detalhes onde estão localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem anualmente por não terem acesso a comida e água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem silenciosamente em lugares pobres, e os seus pais são desvalidos.
As coisas estão a melhorar, com certeza, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente – e este número está a crescer. Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de facto o que significa mil milhõesquando o meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 mil milhões; agora somos 7,2 mil milhões. Não falo da história antiga, falo do meu pai. E já que não é da nossa experiência diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se investe mil milhões de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso, então resta alimentar mais circuitos financeiros, tornando-se ainda mais fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.
Investir em produtos financeiros paga mais do que investir na produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis capitalistas – de modo que não tem forma do acesso ao dinheiro ficar estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente atraído para onde se multiplica mais, é parte da sua natureza, e da natureza dos bancos. Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.
Um suborno global
Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez as suas análises ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão a trabalhar no Próximo Sistema [“Next System”], mostrando, implicitamente, que o nosso sistema foi além de seus próprios limites.
Joseph Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos económicos”. De acordo com sua visão, “igualdade e desempenho económico constituem na realidade forças complementares, e não opostas”. A França criou o seu movimento de Alternativas Económicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino Unido; e estudantes da economia tradicional estão a boicotar os seus estudos em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]
E os pobres estão claramente fartos deste jogo. Sobram muito poucos camponeses isolados e ignorantes prontos a satisfazer-se com a sua parte, seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão crescentemente conscientes de que poderiam ter uma boa escola para os seus filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além disso vêem na TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras têm aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.
Como podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego da juventude está acima de 40%? E eles estão assistir na TV ao lazer e à prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice? A Europa bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance económico. Nada disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.
Cultura e convivência
Sempre tive uma visão muito mais ampla da cultura do que o tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria com os outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou simplesmente se brinca por aí. Convivência. Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os parques e praças ficavam cheios de gente e havia atividades culturais para todo lado.
Ao ar livre, com imensa de gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, um grupo de teatro fazia uma paródia em relação ao modo como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante, noutras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música clássica, e as pessoas estavam sentadas na relva ou em assentos improvisados, enquanto as crianças brincavam por perto.
No Brasil, com Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou que qualquer grupo de jovens que desejasse formar uma banda poderia solicitar apoio, receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os jovens trazem isso na própria pele.
A política foi fortemente atacada pela indústria da música, sob o argumento de que estávamos tirar o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vir abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está florescer novamente. Os negócios têm uma capacidade impressionante para ser estraga prazeres.
O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o Carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas, depois de terem sido domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação magnata da Rede Globo. As pessoas saíram improvisando centenas de eventos pela cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do país. O entretenimento do Carnaval está lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira brincadeira está noutro lugar, onde o direito de todos dançarem e cantarem foi novamente conquistado.
Um caso de consumo
Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o desporto foi reduzido a ver grandes estrelas a fazer grandes coisas na TV, enquanto nós mastigamos alguma coisa e bebemos uma cerveja, não é o desporto – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.
Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranha e gigante conversa global
Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincar em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo lado. Aparentemente, por certo nos desportos, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria do entretenimento penetrou em cada moradia do mundo, em todo os computadores, todo telemóveis, sala de espera, autocarros. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranha e gigante conversa global.
Esse conversa global, com evidentes exceções, é financiado pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos, com doçura, comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com as nossas crianças.
Um punhado de otários consumistas
Que de idiotas consumistas nós somos, com os nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telemóvel, a assistir o que outras pessoas fazem.
Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuir, a nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está à nossa frente, 2,4 por casa. Nos Estados Unidos apenas 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está prosperar, graças ao sofá, ao frigorífico, o aparelho de TV e às guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E as pessoas podem comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido o seu coração está bater depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi, entretanto, enviada ao seu médico.
O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, desportos, música, dança, tudo o que torna a minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e faço uma sesta depois do almoço, como todo o ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse terrível negócio do PIB. Tudo que mencionei não aumentam o PIB – muito menos a minha sesta na rede. Apenas melhoram a nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos construir, eles talvez estejam certos.
Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vão resolver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política suficientemente forte para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas sobre os nossos desafios estruturais). Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar para os analfabetos) mantêm-nos ocupados nos nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.
Artigo publicado no Outras Palavras

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