Judas no Inferno - Blog A CRÍTICA

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." (Millôr Fernandes)

Últimas

Post Top Ad

sábado, 15 de abril de 2017

Judas no Inferno

por Dante Alighieri - traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro

Judas

Na Judeca estão os traidores dos seus senhores e benfeitores. No meio está Lúcifer, que com três bocas dilacera três entre os mais horrendos pecadores: de um lado Judas, do outro Bruto e Cássio, que mataram a Júlio César. Virgílio, ao qual Dante se agarra, desce pelas costas peludas de Lúcifer até o centro da terra. Dai seguindo o murmúrio de um regato, saem e avistam as estrelas no outro hemisfério.

O Inferno, Canto XXXIV
VEXILIA regis prodeunt inferni[1]
Contra nós; pra diante os olhos tende
Disse o Mestre, se a vista já discerne”.


Como quando no ar névoa se estende,
Ou ao nosso hemisfério a noite desce,
Um moinho distante a atenção prende.



Um edifício igual verme parece.
Tanto era o vento, que eu busquei guarida
Atrás do Mestre, que outra não se of’rece.



À parte era chegado, onde imergida
Cada alma em gelo está (tremo escrevendo),
Bem como aresta no cristal contida.



Erguidas umas stão, outras jazendo
Qual sobre a fronte ou sobre os pés firmada
Qual com seus pés o rosto arco fazendo.



Quando distância tal foi superada,
Que aprouve ao Mestre me tornar patente
A criatura bela ao ser formada,



Se afastando de mim, disse: “Detém-te!
Eis Satanás! Eis o lugar horrendo
Em que deves te armar de esforço ingente!



Quanto assombrei-me aquele aspecto vendo
Não inquiras leitor: não te expressara
Com verbo humano o que encarei tremendo.



Não morto, porém vivo não ficara.
Qual me achava te pinte a fantasia,
Se morte ou vida em mim se não depara!



Do aflito reino o imperador eu via:
Do gelo acima o seio levantava.
A um gigante igualar eu poderia,



Se um gigante a um seu braço eu comparava!
Do todo vede a proporção qual fora,
Quando tão vasta a parte se ostentava!



Quem foi tão belo, quanto é feio agora,
Contra o seu criador a fronte alçando
Vera causa é do mal, que o mundo chora.



Qual meu espanto há sido em contemplando
Três faces na estranhíssima figura![2]
Rubra cor na da frente está mostrando;



Das outras cada qual, da pádua escura
Surdindo, às mais ajunta-se e se ajeita
Sobre o crânio da infanda criatura.



Entre amarela e branca era a direita;
A cor a esquerda tem que enluta a gente
Do Nilo às margens a viver afeita.



Via asas duas sob cada frente,
Tão vastas, quanto em ave tal convinham:
Velas iguais não abre nau potente.



Plumas, como em morcego, elas não tinham;
De contínuo agitadas produziam
Os três gélidos ventos, que mantinham



Os frios, que o Cocito enrijeciam.
Chorava por seis olhos, por três mentos
Pranto e sanguínea espuma se espargiam.



Qual moinho, com dentes truculentos
Cada boca um prexito lacerava:
Padecem três a um tempo assim tormentos.



Mas ao da frente a pena se agravava,
Porque das garras o furor constante
Do dorso a pele ao pecador rasgava.



“O que esperneia em dor mais cruciante”
O Mestre disse: “É Juda Iscariote:[3]
Prende a cabeça a boca devorante.



“Dos dois, que estão pendendo, coube em dote
A negra face Bruto: sem gemido
Se estorce da dentuça a cada bote.



“O outro é Cássio, de membros bem fornido.[4]
Mas a partir a noite insta, assomando:
Aqui já tudo havemos conhecido”.



Do Mestre o colo enlaço por seu mando.
Ele em lugar e tempo apropriado,
De Lúcifer as asas se alargando,



Ao peito hirsuto havia-se agarrado;
Depois de velo em velo descendia
Entre os ilhais e o lago congelado.



Chegado àquela parte, em que se unia
Da coxa o extremo dos quadris à altura,
Com grande ofego e mor abalo o Guia



Pôr a fronte onde os pés firmou procura,
Como quem sobe às crinas agarrado:[5]
Assim tornar cuidei do inferno à agrura.



“Segura-te! Por tais degraus alado”
Lasso Virgílio já disse anelante,
“Deste império do mal serás tirado”.



De uma rocha então sai por fresta hiante;
Sobre a borda me assenta cauteloso;
Depois a mim se acerca vigilante.



Olhos alcei julgando curioso
Ver Lúcifer, qual de antes o deixara;
De pernas para o ar vi-o em seu pouso!



De que enleio a minha alma se tomara,
Deixo ao vulgo pensar pouco instruído,
Que o ponto não compreende, em que eu passara.



“Eia! Vamos!” o Mestre diz querido,
“Longa jornada e mau caminho temos;
E a meia terça o sol já tem corrido”.



De paço em salas nós de andar não temos;
Mas de antro natural em solo duro
Os passos nossos dirigir devemos.



“Antes que eu deixe em todo o abismo escuro
Erro, em que estou, meu Mestre, desvanece”
Disse erguendo-me um pouco mais seguro.



“Onde o gelo? Por que nos aparece
Assim Lúcifer posto? E já tão presto,
Cessando a noite, o sol nos esclarece?”



“Tu cuidas ser, do que ouço é manifesto
Lá no centro, onde ao pêlo me prendera
Do que atravessa o mundo, verme infesto.



“Ali stiveste, enquanto descendera
Ao voltar-me do ponto além tens sido,
Que o peso atrai na terreal esfera.



“Foste àquele hemisfério transferido,
Que se opõe ao que a terra está lançado,
Em cujo excelso cume há padecido;



“Quem nasceu, quem viveu sem ter pecado[6]
Sobre uma esfera estreita os pés agora,
117 Da Judeca ao reverso, tens firmado.



“É noite lá; nós temos luz nesta hora;
E o que nos velos seus nos deu a escada
Na postura se firma, em que antes fora.



“Caiu aqui da altura sublimada,
E a terra, que se alçava entumescente,
Do mar fez véu e veio de enfiada



“Para o nosso hemisfério de repente.
Também fugiu de medo, a que se avista;
Vácuo deixando aqui, fez monte ingente”.



Lá no profundo há um lugar, que dista
Tanto de Belzebú, quanto se estende
Seu sepulcro: ali não penetra a vista.



Revela-o som de arroio, que descende[7]
Por brecha do rochedo, que escavara,
Em torno serpeando, e pouco pende.



Para voltar do mundo à face clara
Nessa vereda escusa penetramos:
De nós nenhum de repousar cuidara.



Virgílio e eu, logo após, nos elevamos,
Té que do ledo céu as cousas belas[8]
Por circular aberta divisamos:



Saindo a ver tornamos as estrelas.

Notas

  1. Ir para cima
     Vexilas etc — Aparecem os vexilos do rei do Inferno. É o primeiro verso de um hino da Igreja. [N. T.]
  2. Ir para cima
     Três faces etc., Lúcifer tem três faces em contraposição à Trindade divina. [N. T.]
  3. Ir para cima
     Juda Iscariote, que traiu Jesus. [N. T.]
  4. Ir para cima
     Bruto e Cássio, que mataram Júlio César. [N. T.]
  5. Ir para cima
     Como quem sobe etc. Passado o centro da terra, Virgílio para encaminhar-se ao hemisfério oposto deve subir e não mais descer. [N. T.]
  6. Ir para cima
     Que se opõe etc., ao hemisfério que cobre a terra em cujo cume (Jerusalém) foi crucificado Jesus Cristo. [N. T.]
  7. Ir para cima
     Arroio, o rio Lete que desce do Purgatório. [N. T.]
  8. Ir para cima
     As cousas belas, as estrelas que Dante percebia da pequena abertura a que chegaram. [N. T.]



Dante Alighieri

Dante Alghieri

Durante degli Alighieri (cerca de 1265 - 1321), foi um grande poeta italiano do final da Idade Média. Sua Divina Comédia é amplamente considerada a maior obra literária composta na língua italiana e uma obra-prima da literatura mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Post Bottom Ad

Pages