Dom Pedro II criou comissões técnicas para planejar canais que levassem água do rio aos pontos mais secos
do Norte do Império. Briga entre províncias, porém, impediu que Parlamento aprovasse liberação de verbas.
Ricardo Westin - Jornal do Senado
Assim que as comportas da barragem cravada na divisa de Pernambuco com a Bahia se abriram, as águas represadas do Rio São Francisco caíram num imenso canal de concreto e rolaram com fúria rumo ao norte, para dar vida às terras mais ressequidas do sertão.
A cena se deu em março, e
quem acionou o botão das comportas
foi o presidente Michel
Temer. Após uma década de
obras, era inaugurado o primeiro
canal, com 220 quilômetros de
extensão, da faraônica transposição
das águas do Rio São
Francisco. O outro canal, com
270 quilômetros, está quase
pronto e irrigará outras paragens
do semiárido.
Embora só agora se torne realidade,
o sonho de fazer o sertão
virar mar tem pelo menos dois
séculos. O primeiro plano de
transposição de que se tem notícia
remonta à década de 1810,
no fim da Colônia, mas a ideia
só começaria a ser levada a sério
anos mais tarde, no Império.
Dom Pedro II esteve bem perto
de executar o “encanamento”
(a palavra usada na época) das
águas do Rio São Francisco.
Vítimas das secas de 1877/1878, no Ceará |
Documentos históricos sob a
guarda do Arquivo do Senado e
do Arquivo da Câmara mostram
que vários projetos de lei que
previam a transposição passaram
pelas mãos dos senadores e
deputados do Segundo Reinado.
— Basta fazer um canal. Não é
difícil. Cavar e atirar a terra para
os lados pouco custa. As mesmas
águas que correm farão o resto
— disse o deputado França Leite
(PB) no Plenário em 1846.
— Uma enxada dirigida por
um homem pode levar água até
o fim do mundo — insistiu no
argumento o deputado Venâncio
de Rezende (PE) em 1852.
As secas cíclicas castigam o
Norte (como se chamava a porção do país acima de Minas Gerais)
desde sempre, dizimando
plantações, matando rebanhos
e levando sede, fome, doença
e miséria à população. Mesmo
assim, nenhum dos projetos do
Parlamento imperial que previam
o “encanamento” vingaria.
Mississipi brasileiro
Da nascente à foz, o São Francisco
mede 2.700 quilômetros —
quase a mesma distância entre
Porto Alegre e Maceió. É o maior
rio localizado integralmente no
Brasil. As águas brotam no alto
da Serra da Canastra, em Minas
Gerais, correm para o Nordeste,
banham cinco estados (Minas,
Bahia, Pernambuco, Alagoas e
Sergipe) e caem no Atlântico. Por
percorrer uma faixa tão extensa
do país, ganhou o apelido de Rio
da Integração Nacional. No Império,
era Rio “de” São Francisco.
— O Rio de São Francisco é o
nosso Nilo, o nosso Mississipi —
comparou o senador Fernandes
da Cunha (BA) em 1871. — Quem
lança os olhos para o nosso
sistema hidrográfico vê os Rios
Paraná e Paraguai circulando
todo o Império ao sul, vê no norte
o vasto oceano do Rio Amazonas
e vê no centro o patriarca das
águas interiores do Império, o
caudaloso São Francisco, rolando
plácida e majestosamente.
Quando cruza o semiárido, o
São Francisco enfrenta escassez
de chuva, evaporação intensa e
falta de afluentes permanentes.
Embora seu volume baixe, o
rio se mantém relativamente
caudaloso, o que faz de suas
margens um enclave verde em
pleno sertão. A transposição
busca espalhar outros oásis pelo
semiárido adentro.
No século 19, o Senado e a Câmara analisaram tanto projetos
de lei que criavam comissões
de engenheiros para desenhar
o trajeto dos canais de água
quanto projetos que liberavam as
verbas necessárias para tirá-los
do papel. Os primeiros foram
aprovados. Os segundos, não.
Cada proposta previa uma província
do Norte como a receptora
das águas — Piauí, Ceará, Rio
Grande do Norte ou Paraíba, a
depender da origem do senador
ou deputado autor da proposta.
Na batalha interprovincial
pela cobiçada vazão do Rio São
Francisco, os parlamentares mais
aguerridos foram os cearenses.
Eles sonhavam com um rio artificial
que alimentasse o Riacho
dos Porcos e os Rios Salgado e
Jaguaribe. Até hoje, os três secam
nos meses de estiagem. Uma vez
concluído o “encanamento”, eles
se tornariam perenes.
Em 1850, o deputado Araújo
Lima (CE) aproveitou a discussão
sobre um projeto que reajustaria
o salário dos juízes e desviou o
debate para a transposição:
— No exame da conveniência
de elevar o ordenado da magistratura,
perguntarei: acaso não
existem no país necessidades
que com maior força podem
ser satisfeitas? O Ceará carece
de melhoramentos materiais. É
preciso que se empreguem os
meios convenientes para fazer
desaparecer as secas que o assolam.
Entre esses meios, o que se
aponta como o mais apropriado
é um canal que comunique o São
Francisco com o Salgado.
O deputado continuou:
— Na falência de melhoramentos
materiais, o Ceará será
despovoado, reduzido a um
deserto. Dispensará, portanto,
as vantagens de uma boa magistratura,
porque os desertos não
precisam de Justiça. Despesas
com a abertura do canal, portanto,
serão infinitamente mais
úteis do que com a elevação dos
vencimentos da magistratura.
Orçamento e compasso
Em 1864, o deputado Liberato
Cardoso (CE) recorreu a uma estratégia
mais criativa. Ele narrou
um cruzeiro iniciado em Minas:
— Nosso barquinho foi contemplar
as maravilhas do Mississipi
brasileiro. Ao chegar à
província de Pernambuco, em
vez de continuar pelo São Francisco,
virei de proa, sulcando
as águas do canal que se abriu
do Cabrobó [PE] ao Riacho dos
Porcos. Saudando a Serra do
Araripe e a rica cidade do Crato
[CE], entrei pelo Rio Salgado.
Deixando à minha direita a bela
e risonha cidade do Icó [CE],
tomei o Rio Jaguaribe.
Com tantos detalhes, os colegas
que o escutavam sentiram
como se estivessem a bordo do
navio. O deputado prosseguiu:
— Saudando a cidade de
Russas [CE], reclinada em seus
verdes tabuleiros de relva, eu
contemplava em poucas horas
o teto de meu berço na rica e
industriosa cidade do Aracati
[CE], onde da borda do navio
dei um aperto de mão nos meus
amigos e parentes, que me cumprimentavam
do cais. Lançando
um derradeiro olhar de saudades
para a terra do meu berço, eu
volvia os olhos para o Atlântico.
Em poucas horas, eu via alvejar
as torres da catedral de Fortaleza
por entre os coqueirais da praia.
Terminada a narrativa, Liberato
Cardoso trouxe os deputados
de volta à realidade. Aquele lindo
cruzeiro jamais fora feito. Motivo:
faltava o canal que unisse o São
Francisco aos rios cearenses.
— Esse sonho, senhores, pode
ser realidade no futuro — continuou
ele. — O que convém? Que
não viajemos com a imaginação,
e sim com o orçamento em uma
mão e o compasso na outra.
Em outras palavras, a transposição
exigia dinheiro e conhecimentos
de engenharia.
Na avaliação dos defensores da
obra, o Império dispunha tanto
do “orçamento” quanto do “compasso”.
O deputado paraibano
França Leite afirmou em 1846
que o salário dos operários não
pesaria nos cofres públicos:
— Aquela gente do Norte acha-
-se sem trabalho e não duvidaria
ganhar a subsistência por meio
do seu trabalho. Um homem
trabalha um dia inteiro de enxada
por 100 réis e de machado
por 160 réis. Com salários tão
baixos, o trabalho se pode fazer
sem grande despesa.
Falas do trono
O mundo já dominava a técnica
das grandes canalizações,
lembrou o deputado Alencar
Araripe (CE). Num pronunciamento
em 1877, ele citou o Canal
de Suez, no Egito, recém-aberto.
— Por que hesitaremos em
empreender obras que tornem
o Ceará um novo Egito, dando-
-lhe um Nilo, canais e lagos? Se
a natureza recusou águas abundantes
ao Ceará, o homem lhas
dê — filosofou Araripe.
Dom Pedro II tocou com frequência
no tema da estiagem nas
falas do trono, os pronunciamentos
que ele proferia duas vezes
por ano no Senado. Em 1878,
no meio de uma das secas mais
violentas da história, discursou:
— O flagelo da seca devasta
há quase dois anos uma parte
considerável do Norte do Império,
afligindo profundamente
o meu coração. Para minorar
as consequências de tamanha
calamidade, tem o governo empregado
os meios a seu alcance.
Os “socorros públicos” consistiam
basicamente de cereais
para a população carente e empréstimos
para os fazendeiros.
As falas do trono nunca trataram
da transposição. O tema,
porém, constava da pauta do
governo. Em 1852, dom Pedro
II contratou o engenheiro
alemão Henrique Guilherme
Fernando Halfeld para elaborar
dois projetos: um que tornasse
o São Francisco integralmente
navegável e outro que desviasse
água do rio para outros pontos do
semiárido. Os croquis de Halfeld
seriam engavetados.
Uso político da seca
O que movia dom Pedro II não
era exatamente a benevolência.
Ao mostrar-se consternado com
o infortúnio dos “nortistas”
abatidos pela seca, ele tinha
um objetivo não declarado. O
historiador Gabriel Pereira de
Oliveira, professor do Instituto
Federal do Rio Grande do Norte
(IFRN) e estudioso do São Francisco
no Império, explica:
— No século 19, a ideia de nação ainda não estava cristalizada
no Brasil. As províncias mais
distantes não se sentiam parte do
Império, e havia o temor de que
nelas explodissem movimentos
separatistas semelhantes aos
da Colônia e da Regência. Dom
Pedro II, então, se apoiou na seca
para forjar a imagem do imperador
que não se descuidava de
nenhum ponto do país e criar
nos nortistas o sentimento de
que não sobreviveriam sem ele.
Por essa razão, o monarca fez
em 1859 uma excursão ao Norte
e conheceu o São Francisco. Ele,
contudo, não conseguiu nem
sequer iniciar a transposição.
Faltou o apoio do Parlamento.
Os senadores e deputados rejeitaram,
ano após ano, todas as
emendas ao Orçamento imperial
que destinavam verbas à obra.
Segundo o historiador Pereira
de Oliveira, do IFRN, o “encanamento”
do Rio São Francisco não
foi aprovado por causa da briga
entre as províncias:
— Os senadores e deputados
do Norte estavam rachados,
cada um querendo que a sua
província fosse a beneficiada. E
os parlamentares do restante do
Império boicotaram todos os planos,
desejosos de que a fortuna a
ser consumida pela transposição
fosse destinada a obras em suas
próprias províncias.
A falta de consenso no Parlamento
fica clara num embate
ocorrido em 1852. O deputado
pernambucano Venâncio de Rezende
disse que era preciso “dar
vida ao Ceará”, onde “homens se
deitam ricos e acordam pobres”
por causa da seca. Ele apoiava o
projeto cearense porque, para
chegar ao Ceará, o canal teria
que cruzar Pernambuco.
— Temos de fazer um canal do
Rio de São Francisco que, atravessando
esses sertões estéreis,
não só lhes leve a fertilidade,
como vias de comunicação.
— Isso nem os americanos do
norte fariam — retrucou o deputado
Santos e Almeida (MA),
afirmando que uma obra de tal
grandeza era impossível.
— O nobre deputado não
conhece os norte-americanos.
Se lá fosse, veria que um canal
julgado impossível foi feito só
com despesas do estado de New
York
— argumentou Rezende,
citando o canal navegável de
600 quilômetros entre o Lago
Erie e o Rio Hudson, inaugurado
em 1825.
— Os americanos do norte
não seriam capazes de fazer
passar para o Ceará o Rio de
São Francisco — insistiu Santos
e Almeida.
Em 1846, o deputado Francisco
José da Silva (SE) recorreu ao
aspecto financeiro para pedir
a rejeição de um projeto que
beneficiaria o Ceará:
— Quanto não seria preciso
para a canalização do Rio de
São Francisco pelas províncias
flageladas, atravessando mais de
400 léguas? É preciso incluir no
cálculo a hipótese de encontrar
rochedos que tenham de ser
abertos para dar passagem ao rio.
O país não pode com tal despesa.
O historiador do IFRN explica:
— As províncias que esperavam
pelas águas do São Francisco
não tinham força para
aprovar os projetos. Eram pobres,
pequenas e sem peso político.
Em meados do século 19, o Piauí
contava com apenas 3 deputados
e o Ceará, com 5. Não tinham
como brigar no Parlamento
com as províncias poderosas.
Minas Gerais, por exemplo, era
representada por 20 deputados.
Os parlamentares que pediam
a transposição se irritavam com
o desequilíbrio político. Como
consequência, segundo eles,
suas províncias eram tratadas
pelo Império a pão e água enquanto
as províncias poderosas
nadavam em privilégios.
— O Ceará não é considerado
para os benefícios. Só é considerado
para dar soldados e dinheiro
para o Império — queixou-se o
senador Pompeu (CE) em 1871.
— Nunca mais acabará o
sacrifício do Império a bem da
dotação das empresas [empreendimentos]
do Sul? Nunca raiará
a aurora dadivosa em que deve
começar o desenvolvimento do
Norte do Império? — questionou
no mesmo ano o senador baiano
Fernandes da Cunha, apesar de
sua província ser uma das mais
influentes.
— As províncias que são
amparadas com grandes representações
podem tudo, conseguem
facilmente os favores do
governo, o que não acontece
com as outras, haja vista a minha
pouco afortunada província —
lamuriou-se o senador Mendes
de Almeida (MA) em 1874.
— Tudo se concede para Minas,
ao passo que para o Ceará
é preciso pedir licença, uma
petição com muito cuidado,
um “espero receber mercê” —
comparou o senador Viriato de
Medeiros (CE) em 1884.
Bancada desunida
Outro problema contribuiu
para que a transposição naufragasse:
nem sequer os parlamentares
cearenses caminhavam
unidos. Embora a maior parte
dos projetos beneficiasse o Ceará,
houve senadores e deputados
da província que, incrivelmente,
votaram contra as obras.
Numa audiência na Câmara
em 1854, o deputado Jerônimo
Macário (CE) disse ao ministro
dos Negócios do Império, Visconde
do Bom Retiro, que seria
um erro o Império “mandar
engenheiros examinarem as possibilidades
de um encanamento
de águas do Rio São Francisco”
até o Ceará:
— O melhoramento de que o
nobre ministro quer dotar o Ceará
não é aquele de que se deveria
ocupar. Esse melhoramento promete
frutos tão tardios, que me
faz desanimar. Oxalá, porém, que
os frutos sejam apenas tardios, e
não uma quimera [utopia].
A falta de unidade da bancada
cearense tinha origem política,
segundo o historiador Pereira de
Oliveira. A transposição levaria
água do São Francisco para localidades
cearenses como Crato
e Aracati. Fortaleza e Sobral,
situadas no outro lado da província,
não teriam ganho nenhum.
Temendo perder a supremacia, a
elite dessas duas grandes cidades
agiu para barrar a transposição
e impedir a ascensão do Crato e
de Aracati. O deputado Jerônimo
Macário era de Sobral.
O plano de irrigar pontos do
semiárido com água do São
Francisco ressurgiria de tempos
em tempos. Presidentes como
Epitácio Pessoa, João Figueiredo
e Itamar Franco tentaram
executar a obra, sem êxito. As
prioridades acabaram sendo
os açudes, os poços artesianos
e as cisternas.
Após dois séculos de promessas,
os canais do Rio São Francisco
começaram a ser abertos em
2007, no governo de Luiz Inácio
Lula da Silva.
O primeiro canal está pronto.
O segundo, quase concluído,
depende do julgamento de uma
ação judicial movida por empreiteiras
que disputaram a licitação.
Quando toda a obra terminar, a
água chegará a 400 cidades de
Pernambuco, Ceará, Rio Grande
do Norte e Paraíba, beneficiando
12 milhões de pessoas.
A transposição está sob a responsabilidade
do Ministério da
Integração Nacional. O senador
Fernando Bezerra Coelho (PSBPE),
titular do ministério de 2011
a 2013, diz que a obra é o pagamento
de “uma dívida histórica
do Brasil com os nordestinos”.
— O Nordeste foi o responsável
por praticamente toda a riqueza
nacional nos primórdios da
nossa história, com a cana-de-
-açúcar e o algodão. Depois foi
esquecido pelos governos. Se a
transposição tivesse sido feita lá
atrás, tantos nordestinos não teriam
vivido na miséria, migrado,
morrido. O Nordeste não seria hoje lembrado pelo problema.
Estudo de Gabriel Pereira de Oliveira sobre o rio no Império: http://bit.ly/RioCaminhoNatural
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