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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Os robôs ficam do lado do capital na equação marxista


José Eustáquio Diniz Alves

“O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos
os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente”
Adam Smith, primeira frase do livro “A Riqueza das Nações” (1776)

linha de produção automatizada

Os robôs estão chegando e fazendo muito barulho. Eles conseguem aplausos de uma parte da plateia e recebem apupos e são vistos com desconfiança pela outra parte do teatro que protagoniza a peça sobre o impacto da ciência e tecnologia na qualidade de vida humana e ambiental.
A parte otimista da plateia vê um mundo onde os robôs fazem todos os trabalhos sujos e executam todas as tarefas necessárias à sobrevivência das pessoas, pagam os impostos e garantem as condições financeiras para o Estado fornecer uma Renda Universal para viabilizar o bem-estar e a felicidade de todas as pessoas em todos os países do mundo. O papel da democracia seria definir políticas fiscais e de proteção social visando uma melhor distribuição de renda e uma sociedade mais igualitária, próspera e pacífica.
A parte pessimista da plateia vê os robôs criando um mundo de caos, sem trabalhadores e sem instituições com capacidade de organização sindical e política para se defender do poder das grandes corporações e da sanha gananciosa da elite capitalista interessada, fundamentalmente, na continuada e persistente acumulação de capital.
Nesta interpretação, os robôs contribuiriam para piorar a situação dos despossuídos dos meios de produção, agravando o quadro de heteronomia do proletariado, cada vez mais próximo do “precariado” (parte do proletariado que leva uma vida de insegurança e de empregos precários e sem condições de satisfazer adequadamente suas necessidades materiais e existenciais). Poderia também haver o crescimento do “lumpemprecariado” (termo designativo da camada excluída do mercado de trabalho, sem meios de vida autônomo e sem consciência de classe).
Para os críticos pessimistas do processo de automação, haveria um mundo polarizado, onde os maiores e melhores frutos econômicos da robótica e da Inteligência Artificial (IA) ficariam concentrados nas mãos de uma elite cada vez mais rica e poderosa.
Desta forma, é bom perguntar (neste momento em que o livro “O Capital” completa 150 anos): onde ficam os robôs no modelo marxista da teoria do valor?
Karl Marx (1818-1883), assim como Adam Smith (1723-1790) e a economia clássica inglesa, considerava que o trabalho é a fonte de toda a riqueza civilizacional. Somente o trabalho produtivo adiciona valor e gera lucro no processo de transformação da natureza, criando bens e serviços para atender a demanda do mercado consumidor. Muitas pessoas pensam que os robôs – por substituírem a ocupação humana – entrariam no lado do trabalho na teoria do valor. Contudo, os robôs (por mais parecidos que sejam com as pessoas) entram na parte que representa o capital no processo produtivo.
Indubitavelmente, os robôs aumentam a composição técnica e a composição orgânica do capital e, no longo prazo, ao invés de gerar valor, podem simplesmente contribuir para a diminuição da taxa de lucro geral da economia capitalista. Vejamos o que nos diz o modelo marxista da teoria do valor.
No regime capitalista, o processo produtivo é composto por dois elementos: trabalho (T) e capital (K). O lado da equação referente ao trabalho (T) é dividido em duas partes: o trabalho pago (v) e o trabalho não pago ou mais-valia (m).
(Equação 1): T = v+m
O lado da equação referente ao capital (K) também é dividido em duas partes: o capital constante (c) – que inclui máquinas, equipamentos, construção, pesquisa tecnológica, terrenos urbanos, terra, etc. – e o capital variável (v) que é a parte que destinada a pagar os salários e os benefícios dos trabalhadores.
(Equação 2): K = c+v
A lógica dos patrões, para maximizar o lucro capitalista, é aumentar a parte referente ao trabalho não pago (mais-valia) e reduzir a parte do trabalho pago. Acontece que os trabalhadores não podem ser consumidos instantaneamente no processo de produção, pois precisam sobreviver (necessitam de alimentos, moradia, saúde, etc.) e não conseguem trabalhar 24 horas e 7 dias por semana. Isto quer dizer que a mais-valia absoluta tem um limite físico. Tem também um limite político que depende da capacidade de resistência e de mobilização da classe trabalhadora na defesa de seu quinhão no processo produtivo. A luta sindical em defesa do salário e das condições de trabalho restringe a capacidade capitalista de extrair mais-valia absoluta.
Porém, existe a mais-valia relativa que não depende da superexploração física das horas de trabalho. A mais-valia relativa é aquela que surge da produtividade do trabalho, isto é, do aumento do produto por hora trabalhada. Por exemplo, um trabalhador rural, utilizando um trator para preparar e arar a terra, consegue plantar uma área milhares de vezes maior do que um trabalhador isolado utilizando apenas uma enxada. Com o aumento exponencial da produção o importante não é tanto o valor absoluto do salário ou da mais-valia, mas sim o valor relativo, o que Marx chama de taxa de mais-valia, ou taxa de exploração do trabalhador, representada pela letra (e). A taxa de exploração será tanto maior, quanto maior for a razão (m/v). Isto quer dizer que a taxa sobe, mesmo que o salário também suba, desde que a mais-valia relativa suba, proporcionalmente, ainda mais rápido.
(Equação 3): e = m/v
Na luta entre o capital e o trabalho, o capitalista tende a substituir o trabalhador por máquinas para criar uma superpopulação relativa (ou exército industrial de reserva), enfraquecendo o poder de negociação dos sindicatos e aumentando a produtividade do trabalho, isto é, aumentando a mais-valia relativa. Outro fator que induz o capitalista a investir em maquinaria e nos processos intensivos em capital é a concorrência intercapitalista, pois só os mais produtivos sobrevivem. Por isto se diz: “quem não tem competência não se estabelece”. Ou seja, a luta de classe entre capital e trabalho e a luta intercapitalista impulsiona o aumento da composição orgânica do capital (k).
(Equação 4): k = c/v
Na verdade, o segredo do capitalismo nos últimos 250 anos tem sido aumentar a taxa de exploração (taxa de mais-valia), não pelo aumento da mais-valia absoluta, mas sim pelo aumento da mais-valia relativa. E a forma de fazer isso é aumentando a quantidade de capital no processo produtivo, especialmente a parte do capital que incorpora ciência e tecnologia e energia extrassomática. Quanto mais produtivo for um trabalhador, maior poderá ser o seu salário e também a mais-valia. É nesse ponto que entram os robôs, que nada mais são do que máquinas que incorporam ciência e tecnologia de forma bastante avançada e no sentido de elevar o grau de automação da cadeia produtiva para minimizar o trabalho pago (v) e maximizar o trabalho não pago, ou mais-valia (m).
Até aqui tudo são rosas, pois trabalhadores e patrões podem ganhar com o avanço da produtividade do trabalho e com a incorporação da ciência e tecnologia no processo produtivo. Acontece que a taxa de mais-valia é diferente da taxa de lucro (r), representada na equação 5.
(Equação 5): r = m/(v+c)
Esta diferença é fundamental, pois quanto mais capital constante (c) for incorporado no processo produtivo maior será a taxa de mais-valia (m), porém há uma relação inversa no que diz respeito à taxa de lucro (r). Pela equação 5, vemos que a incorporação de capital constante no processo produtivo só aumenta a taxa de lucro se houver um aumento concomitante, mais que proporcional, na geração da mais-valia relativa.
Esse ponto é que torna o processo bastante complexo, pois o capitalismo – a despeito das crises conjunturais – tem conseguido, estruturalmente, aumentar a produtividade do trabalho por meio do aumento da composição orgânica do capital e desta forma tem conseguido aumentar muito a taxa de mais-valia, sem deixar diminuir significativamente a taxa de lucro global (que é repartida entre o lucro industrial e comercial, a renda da terra e os juros do setor financeiro).
O processo de substituir trabalhadores por máquinas está na origem do capitalismo. Cada empresa em particular (ou cada ramo de produção) aumenta a composição orgânica do capital e reduz o número de empregos em nível microeconômico. Mas com o crescimento da demanda agregada, há geração de emprego em novos setores produtivos e, no global, bem ou mal, tem havido aumento do emprego macroeconômico, nos últimos 250 anos. O aumento da composição técnica do capital e desemprego tecnológico faz parte da história do capitalismo e é um componente central do sistema.
A dúvida é se o estágio atual está potencializando tanto este mecanismo que possa levar a uma mudança dialética entre quantidade e qualidade. Ou seja, o uso generalizado de robôs pode ser tão forte e universal que gere um desemprego tecnológico, de tal monta, que o trabalho global perca sua função essencial de gerar valor e o aumento da composição orgânica do capital acabe influindo mais sobre a diminuição da taxa de lucro do que sobre o aumento da taxa de mais-valia.
Esta é uma questão empírica. Só a análise dos dados econômicos vai dizer se os robôs, inclusive os robôs sapiens superinteligentes (com Inteligência Artificial), vão contribuir para aumentar exponencialmente a taxa de mais-valia ou vão diminuir a taxa de lucro. Mas, de qualquer forma, seria ilusão achar que existe a possibilidade da Revolução 4.0 criar um mundo onde os robôs façam todas as tarefas e a humanidade (composta majoritariamente por trabalhadores) passe a viver apenas de brisa e poesia.
Uma coisa é certa, não existe na teoria econômica clássica (Adam Smith, David Ricardo, Stuart Mill, etc.) e nem na teoria marxista a possibilidade do robô gerar mais-valia. Ou seja, o robô entra do lado do capital na equação produtiva. Seria ilusão achar que a robótica possa dispensar o trabalhador de sua função essencial que é gerar valor. Como já disse Beto Guedes, “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”: sem o trabalho humano é impossível gerar riqueza (bem-estar).
Referência:
Karl Marx. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, 1867 (Boitempo, 2013)


José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/08/2017

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