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terça-feira, 22 de maio de 2018

Investimentos públicos, Keynes, lições ignoradas

José Roberto Afonso Economista, pesquisador da FGV IBRE e professor do IDP

Vol. 72 nº 05  MAIO  2018 - Artigo Publicado na Revista Conjuntura Econômica
Uma economia que demora a engatar uma recuperação consistente e rápida depois de enfrentar a pior recessão de sua história. Durante essa, recorreu ao ativismo fiscal que resultou em disparada do endividamento público, como no resto do mundo, porém o fez de forma peculiar, sem elevar investimentos fixos, sem cortar tributos de forma eficiente e com aumento desenfreado de crédito público barato. Mudada essa política econômica e lograda a estabilização de preços, não se consegue entregar o ajuste fiscal tão prometido e desejado, porque gastos seguiram crescendo mesmo com uma nova limitação institucional e a carga tributária não consegue retomar a níveis anteriores da crise. Reformas estruturais, nas raras vezes em que foram propostas, como no caso da Previdência Social, não avançaram. 

Apesar desse cenário ser mais propenso a se ampliar reflexões e debates em torno de alternativas para mudar e ressuscitar a economia, me parece que pouco se tem avançado no Brasil. Entre tantas teorias e experiências, uma opção interessante poderia ser uma volta ao velho John Maynard Keynes, e especificamente em torno de sua produção original Investimentos públicos, Keynes, lições ignoradas e não de seus seguidores, que foram pouco fiéis as suas reflexões quando se tratou de política fiscal. Em particular, tentamos resgatar essas ideias no livro Keynes, crise e política fiscal, Saraiva, 2012. 

Talvez menos em sua famosa Teoria geral, e muito mais nos debates que se seguiram a sua edição,1 Keynes se inquietava há quase um século com crises que se assemelham muito às que assolam o Brasil de hoje. Apesar disso, nunca defendeu a gastança pública, com geração de déficit e dívida, sem controle e de forma permanente, ao contrário de sua lenda. Ele alternou diagnóstico e propostas ao longo do tempo, defendendo políticas econômicas diferentes para circunstâncias distintas. Assim, Keynes foi particularmente inovador na leitura e tratamento das contas públicas, mas ignorado por muitos. É o caso típico da forma de apresentação do orçamento público, sendo sua iniciativa de pressionar as autoridades britânicas para passar a distinguir as despesas correntes das de capital. Ele desceu aos detalhes dos critérios de como classificar os investimentos “abaixo ou acima da linha”. Alegava que assim políticas do governo poderiam ser melhor aceitas pelo parlamento e pelo público: “a questão é essencialmente uma questão de apresentação”. 

Nunca se dá crédito a Keynes por preceitos básicos da contabilidade pública e da transparência fiscal. O mais importante, porém, é perceber sua visão mais abrangente e de economia política. Ele queria corrigir o erro de tratar todo gasto público como se fosse igual para a economia. O erro se repete hoje, ainda que agora aglutinando tudo em despesas primárias de um lado, e as financeiras de outro (quer dizer, quando se lembram que isso também é gasto). 

É fato que, nos tempos de Keynes, tanto o gasto público era baixo, quanto a dívida era irrisória, que não despertava preocupação em como se conseguiria gerar saldos suficientes para honrar o serviço da dívida vincenda. Se perdeu a atenção especial que Keynes dedicava aos investimentos do governo em ativos fixos, peça-chave de sua política fiscal. O chamado orçamento corrente deveria ser sempre equilibrado, mesmo em tempos da grande recessão. Aqui, e unicamente nessa época, ele defendia um ativismo fiscal com dupla função: que o governo aumentasse fortemente o investimento (para gerar demanda) à custa de expressivo endividamento (para dar aos investidores privados saída diante das dúvidas com demais créditos). 

Essa lógica keynesiana inspirou a chamada regra de ouro: é aceitável que o governo se endivide (até além dos limites, como no caso europeu), mas exclusiva e temporariamente para financiar investimentos fixos. Nem é preciso lembrar que o Brasil não consegue cumprir esse preceito básico. 

Keynes aceitava déficit, mas em caráter temporário e focado no chamado de orçamento de capital (até porque obras não são permanentes). Mesmo depois de superada a recessão e a guerra mundial, ele escreveu que preferia o investimento ao custeio: “... questão é de grau ...”. Interpretamos que qualidade importava tanto ou mais, no horizonte mais largo, que apenas a quantidade do gasto – inegavelmente decisivo, mas no prazo curto e específico da depressão. Por princípio, o investimento público impactaria o capital, tanto o preservaria quanto o elevaria, o que não resultaria do gasto com o custeio da máquina governamental. 

Essa preferência não se aplica no Brasil, apesar de ser uma economia emergente com carga tributária acima de 30% do PIB, próximo da mé- dia das economias avançadas. Isto é necessário face a um volume de gasto público na casa dos 40% do PIB, mas que não consegue ostentar uma taxa de investimento governamental minimamente decente: 2,05% do PIB foi a média entre 2002 e 2015, oscilando entre um piso de 1,53% em 2003 e o pico de 2,63% em 2010 – ver gráfico. Comparado ao resto do orçamento, foi de 6,4% da despesa primária e 5,2% da receita líquida, na média dos mesmos 15 anos.2 

Esse cenário ficará ainda pior. A expansão dos benefícios previdenciários e sociais, bem como da folha salarial dos servidores, segue mesmo com sinais de queda estrutural da receita. Como o limite ao crescimento do gasto federal e exigido também dos estados, se baseia na despesa primá- ria e não diferencia sua composição, forçará ainda mais o corte e ajuste de investimentos (também pouco protegido por vinculações de receita), bem assim outras ações continuadas de custeio (caso típico de pesquisa e inovação ou serviços de saúde). 

É um momento mais do que oportuno para relembrar as lições de Keynes. Ele insistia que se mostrasse o orçamento decomposto e se privilegiasse os investimentos. As razões eram tanto econômicas (um gasto no presente que incrementaria a economia e geraria retorno financeiro no futuro que pagasse o serviço daquela dívida), quanto se pode dizer que físicas (pelo impulso no estoque de capital, especialmente vinculado à infraestrutura). O economista não pensava o investimento apenas como uma forma de gasto autônomo (para segurar e também impulsionar a demanda, combalida pela depressão), mas assumia um perfil de engenheiro a defender como crucial que um país elevasse o estoque de capital para assegurar bem-estar social. 

À parte reflexões teóricas e mesmo trabalhando com o governo britânico, Keynes notou que os investimentos precisavam ser executados de forma descentralizada (elogiava esse traço mais típico e histórico nos Estados Unidos que em um império centralizado) e requeriam um planejamento de longo prazo (defendia uma junta para identificar oportunidades e construir um banco de projetos). Mesclando tais projetos, o grande defensor do capitalismo pregava um planejamento estatal forte, que trocasse o improviso por ação coordenada, em que o governo central acompanhasse e incentivasse, mas deixasse a maior parte das obras aos cuidados dos serviços e governos locais. 

Mais uma vez, se trata de questão muito sensível ao caso brasileiro, pois os governos municipais e estaduais responderam, respectivamente, por 40% e 37% do investimento do governo geral, na média do período 2002-2015. O governo federal, no pior ano, executou apenas 11% do investido em 2003, e, no melhor, chegou a 29% em 2011, refletindo uma forte oscilação, que espelha no gasto agregado – ver gráfico anexo. As prefeituras, mesmo com ciclo eleitoral, sempre investiram mais que a União, em cada um dos últimos 15 anos (e em apenas quatro anos, perderam dos governos estaduais). Isso evidencia quão descentralizado é o investimento no país e, ao mesmo tempo, quão dependente se torna da saúde e equilíbrio federativo. Apesar dessa constatação, não se tem sequer um sistema de informação, quanto mais ações coordenadas para ampliar e melhorar a qualidade do que os governos investem. 

Enfim, quando a incerteza domina ou cega as perspectivas fiscais e macroeconômicas, talvez ajude em resgatar debates econômicos, sobre como se entra e como se sai de grandes crises, pensados há quase um século atrás. Em particular, muito se poderia aprender relembrando os ensinamentos de Keynes sobre como investimento público e política fiscal podem ser decisivos para a política macroeconômica. Se até em economias avançadas tem sido constatado impacto positivo da inversão para o crescimento, que dizer de emergentes.3 Um país que despreze tal caminho pode ser condenado a submergir.


1 A leitura obrigatória é o volume 27 de The collected writings of John Maynard Keynes: activities 1940-1946, shaping the post-war, editado por Donald Moggridge, Macmillan/Cambridge University Press, 1980. 2 Ver séries históricas decompostas dos fluxos do governo geral em Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, “Resultado primário e contabilidade criativa: reconstruindo as estatísticas fiscais ‘acima da linha’ do governo geral”, Texto para Discussão 2288, Ipea, abril/2017. 
3 Ver Abdul Abiad, et.al. “The macroeconomic effects of public investiment: evidence from advanced economies”, Working Paper 15/95, IMF, may/2015.

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