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quarta-feira, 25 de março de 2020

Academia repudia mudanças na distribuição de bolsas da Capes

Entidades pedem revogação de portaria que ameaça levar pós-graduação do Brasil “ao colapso”, segundo a SBPC. Capes diz que intenção é corrigir “distorções”



por Herton Escobar - Jornal da USP

Dezenas de entidades científicas e acadêmicas estão reivindicando a revogação de uma portaria da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC), que altera as regras para distribuição de bolsas de mestrado e doutorado entre os programas de pós-graduação de todo o País.

Publicada no dia 18 de março, em meio à eclosão da epidemia de covid-19 no Brasil, e sem qualquer consulta ou aviso prévio à comunidade acadêmica, a Portaria 34 faz alterações cruciais no novo regramento, lançado um mês atrás pela própria Capes. Ela amplia significativamente os limites de variação no número de bolsas que cada programa poderá receber daqui para frente. 

O sistema estabelece novas regras e critérios para determinar quantas bolsas serão destinadas a cada um dos 4,5 mil programas de pós-graduação do País — entre eles, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município onde o curso é oferecido e o número médio de alunos titulados. Pela proposta original, descrita em três portarias anteriores (18, 20 e 21, de fevereiro deste ano), nenhum curso poderia sofrer uma perda superior a 10% ou receber um acréscimo superior a 30% no número de bolsas recebidas anteriormente. Agora, as perdas podem chegar a 50% e os ganhos, a 70%, dependendo da nota de avaliação do curso — conforme descrito no Artigo 8º da nova portaria.

“É um desastre o que eles estão fazendo. Se o objetivo é desmantelar o sistema, estão conseguindo”, disse ao Jornal da USP o bioquímico Carlos Menck, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da área de Ciências Biológicas 1 na Capes. 

Todos os 49 coordenadores de área da agência enviaram uma carta conjunta ao presidente da Capes, Benedito Aguiar Neto, no dia 20, reivindicando a revogação da Portaria 34 e pedindo mais transparência no processo. “Entendemos que qualquer mudança abrupta na distribuição de bolsas (…) pode gerar instabilidade no SNPG (Sistema Nacional de Pós-Graduação) e ter impactos negativos para a qualidade da pós-graduação nacional em um momento ímpar de transição do modelo de avaliação”, diz a nota.

A Capes não divulgou uma lista com os novos números de bolsas que serão destinadas a cada programa; mas é certo que muitos cursos perderão bolsas no processo — inclusive cursos de excelência, avaliados com a nota máxima de qualidade da própria Capes. 

“A redação da referida portaria indica que poderá haver redução significativa de bolsas de mestrado e de doutorado em todos os programas de pós-graduação, independentemente de sua qualidade ou qualquer outro critério objetivo. Assim, sua implementação poderá levar o sistema de pós-graduação nacional ao colapso”, diz uma carta de repúdio, redigida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e endossada por mais de 60 entidades científicas, também enviada ao presidente da Capes no dia 20.

“Conclamamos a Capes a proceder à imediata revogação da Portaria 34 (…) e a restabelecer o caminho do diálogo de que tanto o Brasil necessita, particularmente nesse momento de crise gerada pela pandemia causada pelo covid-19, cujo enfrentamento demanda o fortalecimento da nossa capacidade de produção científica e tecnológica”, escreveu o Fórum Nacional de Pró-reitores de Pesquisa e Pós-graduação (Foprop), principal entidade de interlocução da comunidade acadêmica com a Capes.

Em resposta, Aguiar Neto divulgou uma nota no início da noite de segunda-feira, 24 de março, dizendo que as reclamações da academia “são naturais, mas, com o devido respeito, revelam uma visão parcial do problema”. Segundo ele, o número total de bolsas ofertadas nesse novo sistema aumentou de 81,4 mil, em fevereiro deste ano, para 84,7 mil, em março. “O aumento foi necessário para atender os cursos mais bem avaliados”, diz. 

“Não houve cortes. A rigor, a parcela de bolsas que deixa um curso de menor qualidade passa para cursos com melhores indicadores”, diz o presidente da Capes. “O modelo corrige um cenário de intensa distorção.” Leia a íntegra da nota aqui.
Em comparação com anos anteriores, porém, a tendência continua sendo de diminuição no número de bolsas, segundo pesquisadores. Paulo Inácio Prado, professor do Instituto de Biociências (IB) e orientador no Programa de Pós-Graduação em Ecologia da USP, estima que a implementação do novo sistema levará a uma redução de 9,3% no número total de bolsas de mestrado e doutorado ofertadas pela Capes, comparado a 2018.
“Há uma variação muito grande de perdas e ganhos de bolsas entre áreas e entre regiões”, avalia Prado. “Nada disso foi discutido.” O programa de Ecologia da USP, segundo ele, perdeu 5 das 26 bolsas de doutorado que tinha previstas para este ano.
Em 2019, segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, 7.590 bolsas de pós-graduação foram canceladas pela Capes, reduzindo o total de bolsas ofertadas pela agência para 84,6 mil (praticamente o mesmo número citado por Braga Filho para comprovar “aumento” no número de benefícios). Até então, o patamar de bolsas oferecidas era superior a 90 mil.

“A situação é calamitosa”, diz o biólogo José Alexandre Diniz Filho, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), que publicou um vídeo no YouTube criticando a portaria e explicando como ela impacta negativamente a pós-graduação no País.
Perplexidade
Outras entidades também se manifestaram por escrito, de forma contundente, solicitando o cancelamento da medida e criticando a Capes pela falta de transparência na condução do processo. As portarias de fevereiro implementavam o novo sistema na forma como ele havia sido discutido com a comunidade acadêmica ao longo de 2019; mas a mudança introduzida pela Portaria 34 pegou todo mundo de surpresa.
“Foi uma decisão tomada de forma isolada, sem nenhuma participação da academia”, diz o geneticista Márcio de Castro Silva Filho, professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e presidente do Foprop até o ano passado — quando participou ativamente das discussões do novo modelo. 
Havia um consenso entre as partes de que o modelo de distribuição de bolsas precisava de ajustes, “para corrigir distorções e fazer uma distribuição mais justa” dos benefícios, diz Silva Filho. As mudanças introduzidas pela Portaria 34, no entanto, segundo ele, favorecem demasiadamente os programas de nota mais alta (6 e 7), em detrimento dos programas de notas mais baixas, sem levar em conta que muitos desses são programas jovens, criados recentemente em regiões ou instituições menos consolidadas, que necessitam desse apoio da Capes para crescer e melhorar de qualidade.
“Alguns vão ganhar muito, enquanto outros vão perder muito”, critica Silva Filho. “As universidades que têm uma concentração maior de cursos com nota 3 e 4 vão caminhar para uma situação de quase fechamento desses programas.”
Numa visão individualista, ele nem teria tantos motivos para ficar descontente — o programa de Genética da Esalq-USP, por exemplo, passará a receber mais bolsas no novo modelo. Mas é preciso pensar no desenvolvimento da ciência brasileira como um todo, em todas as regiões, e não apenas nos centros de excelência já consolidados, diz Silva Filho.
“Tirar bolsas de um programa nota 3 jovem é dar uma facada de morte nesse programa”, ressalta Menck, do ICB-USP. Muitos dos programas de excelência que vão receber mais bolsas, segundo ele, talvez nem precisem delas — porque já estão consolidados e têm acesso mais fácil a bolsas de outras agências, como a Fapesp. “Estão dizendo que é uma política de qualidade, mas não apresentam nenhum argumento de qualidade para justificar isso”, diz.
Frustração
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), declarou em carta que a Portaria 34 “desconsidera os critérios estabelecidos anteriormente e o esforço dos programas de pós-graduação no planejamento da distribuição do seu fomento, e frustra milhares de pós-graduandos”.
Foi o que aconteceu com o aluno Micael Santana de Souza, de 24 anos, que contava com uma bolsa de doutorado da Capes para desenvolver um projeto de combate à dengue com mosquitos transgênicos no ICB-USP, dentro do Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia da universidade.
Depois de dois anos fazendo iniciação científica no laboratório da professora Margareth Capurro, ele resolveu pleitear uma bolsa de doutorado da Capes, em dezembro. No fim de fevereiro, recebeu a notícia de que havia sido selecionado, e comemorou. Mas a alegria durou pouco.
Alguns dias depois, passou na secretaria do programa para pegar sua carteirinha de aluno USP e foi informado de que todas as bolsas haviam sido recolhidas para “reavaliação”, e que algumas delas estavam sendo canceladas — incluindo a dele. “Fui pego totalmente de surpresa”, conta Souza. “Parece que a gente não é nada; que o que a gente faz não tem importância.”
Ele agora só tem duas opções: abandonar o sonho do doutorado ou fazer a pesquisa “de graça”, enquanto trabalha fora da universidade para pagar as contas e sobreviver — o que é inviável. “O principal sentimento é de tristeza, porque sem ciência nada vai para frente”, lamenta o jovem cientista.

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