“A ter havido um assomo de Trotsky em Cuba, teria sido o Che” - Blog A CRÍTICA

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sábado, 8 de junho de 2013

“A ter havido um assomo de Trotsky em Cuba, teria sido o Che”

O Che Guevara tinha um conhecimento e uma simpatia pelo pensamento trotskista, afirma nesta entrevista o escritor cubano Leonardo Padura nesta entrevista à revista Ñ, do jornal Clarín, a propósito do livro O Homem que gostava de cães, fenómeno de vendas no país. Entrevista por Horacio Bilbao.
Mercader também foi uma vítima, mas foi um homem que obedeceu e nessa obediência chegou à perversão ética mais elementar, diz Padura. Foto de By Dontworry (Own work) [CC-BY-SA-3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons
A última vez que Leonardo Padura esteve na Argentina foi em 1994. A queda da URSS ainda causava estrépito, o “período especial” fortalecia-se em Cuba e aqui [na Argentina] faziam-nos acreditar que um peso era igual a um dólar. O cubano tinha publicado há pouco tempo as primeiras histórias do seu detetive Mario Conde em Havana e passeava-se por esta feira como um perfeito desconhecido. “Eu era outro escritor”, diz agora nesta entrevista. Uma grande parte desse salto para a fama deve-o a O Homem que Gostava de Cães. Publicou esse livro em 2009 e a partir daí não parou de ganhar leitores e prémios, em Cuba e em França, no México e em Espanha. Mas aqui aconteceu uma coisa curiosa: a difusão dessa obra fez-se boca a boca. Assim, Padura é hoje o autor mais vendido da editora Tusquets nesta feira, ultrapassando Milan Kundera, Henning Mankell ou o próprio Haruki Murakami. Cubano mata japonês, sueco e mesmo checo.
No seu livro mais elogiado, Padura percorre os caminhos do assassinato de Trotsky. Investiga este facto crucial para o século XX através da vítima e do seu verdugo, Ramón Mercader. Fá-lo a partir de uma perspetiva cubana, a sua, a de um autor que viveu sempre em Havana. Mas é um livro universal. “Demorei 5 anos a escrevê-lo, com uma procura documental intensa e extensa. Acerca de Trotskyhavia informação abundante, acerca de Mercader, quase nada”, recorda. Por que escolheu contar esta história? Padura diz que pode ter havido alguma nostalgia, mas também o ressentimento que encontrar os culpados lhe provocou. “De repente compreendi algumas das razões pelas quais se perverteu a utopia. O papel do stalinismo, a herança da sua personalidade, foi uma coisa terrível”, diz, e assume-o em carne própria. Está a falar de uma revolução traída quando narra a morte de Trotsky.
Para motorizar a história, Padura inventou o escritor Iván Cárdenas Maturell que, em 1977, conhece um tal López, uma personagem enigmática que passeia pela praia dois belos galgos russos, um homem disposto a confiar-lhe os pormenores mais íntimos da vida de Ramón Mercader, o verdugo de Trotsky. Trotskytem cães, Mercader tem-nos e Iván também. O que significam os cães, Padura? “São recursos que utilizo para ir além das perspetivas históricas e encontrar elementos de permanência”, diz. E fala de outros dois romances seus: um anterior, onde o protagonista é o poeta José María Heredia; e outro, Hereges, o seu novo trabalho que virá a público em setembro e que está centrado no pintor Rembrandt. “Identifiquei-me com Heredia quando descobri que ele gostava de um prato cubano de que também gosto. A sopa de quiabos. No caso de Rembrandt, aproximou-me o facto de sofrer de dores de dentes, de quase não os ter por gostar de comer caramelos holandeses”. Cães, comidas, dores de dentes. É assim que Padura se mete nas personagens. Assim e com muita investigação bibliográfica.
Enquanto investigava para este livro, a raiva do cubano ia aumentando. “Encontrei um documento que me perturbou. Um editorial de um jornal comunista mexicano dos anos 30, stalinista claro, festejava a morte de Sandino. Dizia que ele tinha morrido como um pequeno-burguês e só como um cão, porque a visão de Sandino violava os códigos que se queriam impor através da III Internacional. Quando vi essa mesquinhice comecei a preocupar-me com essas histórias perversas”.
Essa perversão, essa cegueira, é refletida na história por Mercader. Uma cegueira que arrasou figuras como Andreu Nin, o trotskista espanhol que liderou o POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista – Partido Operário de Unificação Marxista), Ewin Wolf e os próprios filhos de Trotsky, entre tantos outros. Através de Iván, o escritor cubano que protagoniza a história, Padura tenta explicar Mercader ao mesmo tempo que se vai aproximando da figura de Trotsky, cuja dimensão o envolve e, simultaneamente, apaixona. Liev Davidovitch Bronstein, Trotsky.
Padura defende que um dos problemas da literatura cubana é a sua falta de universalidade. Essa é a sua grande preocupação, que aprendeu de Alejo Carpentier que, por sua vez, a foi buscar a Miguel de Unamuno. Louva o facto de a literatura ter hoje na ilha um espaço maior que a imprensa. Mas sofre por falta de difusão. «Quando alguém, em 2040, ler um dos meus romances e ler um jornal Granma, vai pensar que se trata de dois países diferentes. E creio que o meu país se assemelha mais à realidade que o do jornal”, avisa. E acrescenta que esse é um problema que o próprio governo cubano critica. “Conheço pouco o fenómeno dos blogues, mas aí há um embrião de um jornalismo diferente”, sugere. E diz que a sua independência como escritor talvez radique no facto de nunca ter militado na Juventude Comunista. “Eles não me quiseram”, esclarece e diz que passou muito tempo até se ter apercebido da importância deste facto. Hoje, Padura tem melhores condições de vida que a maior parte dos seus compatriotas. E aplaude algumas das mudanças que se verificam, embora se altere quando conta que está mergulhado em burocracia para conseguir comprar um carro: “Não fazem ideia!”.
- Há dois Paduras, um autor de livros policiais e outro que faz um trabalho mais documental e jornalístico?
- Não. A minha obra tem uma preocupação fundamental, a procura das origens. Nos livros policiais há uma procura, a da verdade. E em romances como O Homem que Gostava de Cãestambém utilizo certas estruturas do romance policial para tornar mais evidente essa busca de uma verdade que pode ser filosófica, histórica ou política.
- Nesse caso, Conde, o detetive dos seus livros policiais, e Iván, o escritor que desfia a história de Mercader, têm pontos comuns.
- Conde é a expressão da minha geração, uma figura metafórica, mas Iván é uma personagem simbólica, a que junto elementos que o superam enquanto indivíduo. Tem uma vida tão cheia de frustrações e contradições que ultrapassa o verosímil. Eu precisava desse revés dramático, para que essa única personagem significasse o que pode ter sido a frustração de um pensamento, de uma vocação das ideias de uma pessoa em Cuba.
- Iván, ou Padura, sentem compaixão por Trotsky?
- Sentem-se tentados à compaixão. E é possível que a sintam, mas não tenho a certeza. Esse foi um matiz que discuti muito comigo mesmo e com os amigos que leem sempre os meus livros. No fundo, Mercader também foi uma vítima, mas foi um homem que obedeceu e nessa obediência chegou à perversão ética mais elementar. Não lhe serviu de nada, porque o condenaram ao ostracismo, primeiro em Moscovo e depois em Cuba, onde viveu com outra identidade. Talvez isso leve à compaixão, mas ainda não tenho resposta.
- Permito-me uma crítica: os espiões russos, a NKVD, parecem tirados de um filme de Hollywood.
- Os espiões são parecidos em todo o mundo. É um trabalho sujo em que se tem de mentir, de usar os outros, essa essência é comum. Mas não nego que possa haver uma influência de John Le Carré. Os seus espiões, homens infelizes e incompletos, fascinam-me.
- Houve um Trotsky na Revolução Cubana?
- Não creio. A culpa do desvio político de Cuba, para muitos, tem-na a política norte-americana. Naquela época, os Estados Unidos estavam habituados a governar a América Latina de uma maneira e a revolução destruiu-lhe esse esquema. Nessa altura Che Guevara, do poder dos seus cargos, começa a fazer determinadas leituras e declarações que, vistas em perspetiva, eram anti-soviéticas. A ter havido um assomo de Trotski em Cuba, teria sido o argentino. Diz-se que o Che teve uma relação muito próxima com o grupo de trotskistas originais cubanos. No início da revolução, a projeção socialista do governo cubano não estava definida. Mas havia ali um grupo de revolucionários trotskistas com quem o Che se relacionava. Houve uma altura em que o Che saiu de Cuba e, quando voltou, tinham afastado dos seus postos muitos desses trotskistas. E graças ao Che muitos recuperaram os seus lugares. Isso quer dizer que havia um conhecimento e uma simpatia pelo pensamento trotskista.
- Havana, Cuba, é um íman para o mundo. Corre com vantagem ao escrever a partir daí?
- A cultura cubana foi sempre maior que a geografia da ilha. Escrever a partir de Havana é ter alguma vantagem. Tal como Buenos Aires, tem uma tradição cultural reconhecida.
- O que resgataria da sua experiência para o futuro da vida socialista?
- Há uma experiência que considero fundamental, tanto que a ela dediquei o meu último romance. É a de poder realizar a sua liberdade individual. O indivíduo que não pode exercitar a sua própria liberdade, não pode construir uma sociedade livre. É preciso resolver os problemas individuais para depois resolver os coletivos. Um dos problemas do socialismo foi ter feito as coisas ao contrário. Se dizemos a um crente que tem de deixar de crer, para essa pessoa esse mundo já não é melhor.
7/5/2013
Publicado na Revista Ñ
Tradução de Helena Pitta para o Esquerda.net

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