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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Mutações da crise: do TARP ao ZIRP (I)

Como nunca houve uma verdadeira reforma regulatória do sistema bancário e financeiro, a flexibilidade monetária levou a um mundo mais incerto. E hoje que se aproxima o fim do mundo ZIRP, prepara-se a terceira grande mutação da crise mundial. 

Por Alejandro Nadal

Em setembro de 2008, o senador Sherrod Brown recebeu uma chamada telefônica do secretário do Tesouro, Hank Paulson, e de Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal. Brown não era um grande hierarca do Senado, por isso a sua voz era precisa para lançar uma ideia absurda. Paulson e Bernanke foram ao essencial: Precisamos de 700 bilhões de dólares, e precisamos deles em três dias. Além disso, disseram-lhe, o plano que tinham entre mãos requeria que Paulson tivesse a capacidade de gastar esse dinheiro como quisesse, sem supervisão alguma e sem ter que prestar contas perante qualquer tribunal.

Foto de Ervins Strauhmanis/flickr
Começou assim o processo de chantagem, intimidação e mentiras que culminaria com o programa de resgate de ativos com problemas, o tristemente célebre TARP (Troubled Asset Recovery Program). A 18 de setembro de 2008, às 11 da manhã, Paulson disse a um grupo de senadores: Se o congresso não fizer o que estamos a pedir, mais de 5 trilhões de dólares de riqueza desaparecerão em menos de 24 horas. Ou seja, uma hecatombe está iminente e vocês assumirão a responsabilidade se não fizerem o que vos dizemos.

Para que queria Paulson o dinheiro? O crédito interbancário estava congelado e o sistema de pagamentos ameaçava paralisar. Comprando os ativos tóxicos que os bancos tinham nos seus livros, Paulson pensava que se poderia reativar a confiança entre bancos (e, diga-se de passagem, beneficiar alguns dos seus velhos amigos).

A chantagem e a intimidação não foram suficientes e Paulson teve que adoçar o pacote para conseguir a sua aprovação. Em outubro de 2008 conseguiu que o congresso aprovasse a sua lei de emergência para a estabilização econômica. O artigo 109 estipulava que o Departamento do Tesouro poderia introduzir mudanças nos créditos outorgados para evitar despejos. Mas a promessa de ajudar os devedores foi só um truque para conseguir votos (servindo de escudo a muitos congressistas que precisavam mostrar um compromisso com as suas bases eleitorais). Poucos meses da nova lei ser aprovada, o artigo 109 era já letra morta.

O TARP converteu-se rapidamente num programa de injeção de recursos para os bancos e algumas grandes empresas. E aos bancos beneficiários do TARP nem sequer lhes foi exigido que prestassem contas sobre o que tinham feito com os recursos recebidos. Como se isso não bastasse, aos bancos não foi condicionada a ajuda a que reativassem o crédito para a atividade produtiva e para os consumidores, o que a retórica do TARP tinha prometido. No final, os bancos começaram a usar esses recursos como quiseram.

Diz-se com frequência que o TARP ajudou a mitigar os piores efeitos da crise e imprimiu maior estabilidade ao sistema bancário nos Estados Unidos. A realidade é diferente: os grandes bancos (JP Morgan, Bank of America, Citigroup, Goldman Sachs) tornaram-se maiores e a volatilidade e instabilidade não diminuíram.

Mas o TARP não podia continuar por muito tempo. O congelamento do crédito interbancário era um problema maior e não se podia resolver com um simples resgate pontual de ativos tóxicos. E, por outro lado, o TARP não permitia injetar recursos no sistema bancário sombra. De modo que desde novembro de 2008 o TARP foi sendo substituído por outro mecanismo: uma nova modalidade de intervenção da Reserva Federal. Em finais de 2008, a Reserva Federal já tinha comprado mais de 600 mil milhões de dólares de créditos hipotecários aos bancos com mais problemas.

A Reserva Federal já tinha iniciado a política monetária flexível que desembocaria em taxas de juro próximas de zero, o regime ZIRP (Zero Interest Rate Policy). Assim, sem poder manipular mais a taxa de juro de referência para o crédito interbancário, a Fed decidiu manipular a quantidade de dinheiro que é injetada na economia. E fê-lo através de um programa de flexibilidade quantitativa (QE, na sigla em inglês) que funcionaria através de dois canais, comprando ativos (de má qualidade) dos bancos e adquirindo títulos do Tesouro. O objetivo de comprar-lhe ativos aos bancos era retirar-lhes pressão para que aumentassem o crédito à produção e ao consumo. O propósito de adquirir títulos do Tesouro era reduzir o rendimento desses títulos e, portanto, eliminar o incentivo que os bancos tinham para os adquirir (em vez de emprestar mais recursos à economia real). Mas a realidade é que os bancos não passaram a emprestar ao público em geral e, pelo contrário, dedicaram-se a emprestar ao governo e a especular no mercado mundial. O resultado é que um dos motores mais importantes da economia global é a especulação no mercado de divisas que recebeu um gigantesco estímulo através da política monetária. Como nunca houve uma verdadeira reforma regulatória do sistema bancário e financeiro, a flexibilidade monetária levou a um mundo mais incerto. E hoje que se aproxima o fim do mundo ZIRP, prepara-se a terceira grande mutação da crise mundial.
Artigo de Alejandro Nadal, publicado no jornal mexicano “La Jornada” em 2 de setembro de 2015
Alejandro Nadal
Economista, professor em El Colegio do México.

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