Pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco analisou dados de 86 casais em que um desenvolveu a doença e outro não; genes candidatos podem abrir caminhos para entender os mecanismos de ação do sars-cov-2
Por Fabiana Mariz - Jornal da USP
Na busca por tentar compreender por que algumas pessoas não desenvolvem covid-19, pesquisadores da USP, Unesp e do Grupo Fleury identificaram alguns genes do sistema imune humano que podem ajudar a entender esse mecanismo. Os genes candidatos são conhecidos como MICA e MICB e pertencem ao complexo MHC (complexo principal de histocompatibilidade, em português), localizado no cromossomo 6. Essas moléculas já foram descritas em estudos anteriores e estão associadas com estresse celular, como câncer e infecções.
Após comparar 86 casais em que um desenvolveu a doença e o outro não (chamados casais discordantes), os pesquisadores observaram, por modelos matemáticos (também chamados in silico), que moléculas MICA estavam aumentadas e as MICB diminuídas nos indivíduos infectados. Por outro lado, as MICB estavam aumentadas nos resistentes.
Um artigo com os resultados do estudo foi publicado no último dia 25 na plataforma MedRxiv, e ainda não foi revisado por outros cientistas. Para que o MICA e o MICB possam agir, as moléculas por eles codificadas precisam se ligar a um receptor chamado NKG2D, localizado na superfície das células natural killer (NK) e linfócitos TCD8+, principalmente.
Quando isso acontece, há ativação de células do sistema imune, com a produção de fatores inflamatórios para combater a infecção, principalmente o IFN- ϒ, e liberação de proteínas “tóxicas”, culminando com a morte das células infectadas.
As células NK fazem parte do sistema imune inato e sua função principal é reconhecer o patógeno invasor e destrui-lo rapidamente. A hipótese dos cientistas é que as moléculas MICA aumentadas sejam clivadas (cortadas) na superfície celular infectada e passem para sua forma solúvel. Nessa mudança, elas podem “inibir” seu receptor e diminuir a atividade de células NK, facilitando o desenvolvimento da doença.
“No caso do MICB, é possível que sua expressão diminuída nos pacientes infectados possa, da mesma forma que o MICA solúvel, contribuir para uma menor ativação de células NK e linfócitos TCD8+ e uma menor resposta imune contra o vírus ”, explica ao Jornal da USP Maria Lucia Carnevale Marin, pesquisadora do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e do LIM19 do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Ela fez parte da equipe que interpretou os dados da pesquisa.
Processo de clivagem

Outro complexo estudado foi o LRC (complexo leucocitário humano), localizado em uma fração muito pequena do cromossomo 19. Após as análises, os genes LILRB1 e LILRB2 estavam cinco vezes mais expressos nos infectados do que nos não infectados. Essas são variantes que atuam como inibidores das células NK, ou seja, não protege contra a infecção.
Os casais discordantes passaram por um critério de seleção rígido para serem incluídos no estudo. Além disso, repetiram o exame de sorologia para certificar que um deles não desenvolveu anticorpos contra o vírus. Dos 100 selecionados, sete ficaram de fora da pesquisa.
“Podemos pensar, futuramente, se seria possível aumentar a expressão do MICB com a ingestão de alguma droga, por exemplo, e ajudar as células de defesa a combaterem a infecção”, afirma a professora Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP e coordenadora da pesquisa.
O estudo foi realizado em 2020, quando as variantes P1 e P2 do sars-cov-2 ainda não circulavam pelo País.
Mecanismos de ação
O complexo principal de histocompatibilidade (MHC) é conhecido por ser a região mais variável do genoma humano e da maioria dos vertebrados. Algumas moléculas codificadas por genes desse complexo desempenham várias funções, como a de apresentar antígenos para as células T e B citotóxicas do sistema imune, que identificam esse corpo estranho e iniciam a resposta imune contra eles.
São conhecidos como genes HLA clássicos de classe I (HLA-A, HLA-B e HLA-C) e classe II (HLA-DR e HLA-DQ). Em caso de transplantes, sua variabilidade pode se tornar um problema, pois a compatibilidade desses polimorfismos é essencial para que o novo órgão não seja rejeitado.
Já o MICA e o MICB, especificamente, atuam como sinalizadores de estresse celular. Quando uma célula é infectada, há um aumento da expressão desses genes, que interagem com receptores das células natural killer (células que apresentam uma resposta mais rápida contra infecções) e as ativam. Eventualmente, as NK conseguem destruir a célula infectada. “Por isso, são candidatos importantes a serem estudados em uma infecção pelo sars-cov-2”, explica Castelli.
O Complexo de Receptores Leucocitários (LRC) é composto de genes que, em sua maioria, codificam moléculas da família das imunoglobulinas. “Além das diferentes sequências dentro de cada um dos genes do sistema, existe mais uma complexidade: o indivíduo pode ou não tê-los”, enfatiza Castelli. O LILRB1 e LILRB2, que estavam cinco vezes mais aumentados nos indivíduos infectados, são moléculas que inibem a ação das células natural killer e também poderiam contribuir para a diminuição da resposta imune contra o vírus.
“É importante ressaltar que a maioria das doenças não está associada a um único gene”, explica Maria Lucia. “Elas fazem parte de um sistema complexo e uma ou outra molécula pode colaborar para a resistência ou suscetibilidade a uma infecção.”



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